sábado, 19 de dezembro de 2020

À espera da revolução

Portugal nunca fez o tal 25 de abril.

A esquerda nunca se fez compreender, talvez porque ela própria nunca se compreendeu.

Portugal precisa de uma revolução, a sério.

A esquerda nunca conseguiu explicar porquê e para quê.

Muitos dos seus porta-vozes, sem nenhuma convicção e menos argumentos, seguiram o natural rumo do fazer barulho até que se cansassem de os ouvir.

Mas não passava de barulho, para ganharem uns votos para as despesas.

Tal como há muitos padres ateus a celebrar missas, há bastantes esquerdistas que, não só nunca leram os respectivos evangelhos, como não têm a noção do que andam a fazer.

Se não se recusam a jogar dentro das regras do capitalismo, o que é legítimo que façam, tampouco as contestam e esse devia ser o núcleo mínimo do seu programa.

E já nem digo, do seu programa de acção, porque, uma vez definido, como é suposto que a esquerda o tenha, aquilo que deve ser feito, e para eles isso é científico, só restaria e faltaria e haveria que o fazer.

Hoje, vemos claramente visto que o 25 de abril pode ter sido uma revolução dos cravos, mas não foi a revolução de que o país precisava e continua a precisar.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Os aristocratas de espada e os argentários

O saber, a filosofia, a ciência, as artes, ao longo dos tempos, foram mais ou menos instrumentalizados pelos poderes e, em muitos casos, menosprezados e considerados indignos da realeza e da aristocracia que cairia na lama se se desse ao trabalho de aprender a ler e a escrever. 

Do mesmo modo que um argentário não frequenta cursos de computadores, porque paga a um especialista, um rei não precisava de aprender a ler e a escrever, porque podia contratar o Aristóteles. 

Os nobres de espada arrogavam-se e detinham um estatuto que fazia empalidecer os escribas, ainda que na óptica de outros, um cronista, mesmo sem ser do reino, tivesse mais hipóteses de ser considerado um pensador. 

No mercado dos valores (não confundir com Bolsas de valores) a espada, ou o argentum, não eram os mais preciosos só no tempo do Afonso Henriques. E, se até para educar e ensinar as letras e o pensamento crítico, é necessário recorrer a esses valores, está visto por que ocupam eles o topo da hierarquia. Isto é o que me ocorre também quando alguém, impotente na sua ira, grita por el-rei.

Os nobres de espada, e os argentários, ainda deslumbram mais pelo facto de terem quem faça o seu trabalho.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Filosofia e sentido

A filosofia chega a ter semelhanças com uma cobra que, faminta, toma a própria cauda por uma presa e se põe a engolir-se a si própria, anestesiando-se com o próprio veneno, senão quando já desenvolveu imunidade o que, nem assim, deixa de suscitar a questão: até que ponto se pode ser autofágico? Ou, a partir de que ponto a cobra se pode considerar engolida por si mesma?
Não se sobrevive nutrindo-se de si mesmo.
O cérebro é um órgão muito especial que, segundo alguns neurocientistas, não evoluiu para encontrar a sabedoria, mas para sobreviver. 
A maioria das pessoas, incluindo talvez a maioria dos poucos filósofos que a história produziu (é possível saber os nomes e o que escreveram, sem ter uma grande memória), não pensam, verdadeiramente, não pensam, no sentido em que aquilo que percepcionam, leem, parece não lhes passar pelo cérebro, pelo menos por aquela parte do cérebro, que é suposto termos, "responsável" pela inteligência, ou pelos processos de inteligibilidade. 
As "coisas" entram pelos ouvidos, pelos olhos, enfim, pelos sentidos e, muitas vezes, saem pela boca, ou pelas expressões gráficas, etc., sem terem indícios de haverem passado pelo tal cérebro. 
Isto, assim sendo, nem é bom, nem mau, não é bonito nem feio, não está certo nem errado, não é melhor nem pior, mais ou menos verdadeiro do que se fosse diferente. Se for, é o que é e não tem de ser, nem pode ser outra coisa, pelo menos enquanto for assim.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Do sentir ao pensar

O nosso corpo é maior, é mais, do que a nossa consciência. A realidade é incomensuravelmente maior, mais, do que o nosso conhecimento, do que o nosso saber, mesmo implícito.

A representação que fazemos da realidade é como um fogo de artifício da linguagem.

Do que não esquecemos, ficamos com o osso da memória, essa construção labiríntica de que a humanidade procura a chave, não uma chave, como se a realidade fosse a memória e o seu discurso e não também o corpo e a linguagem à revelia de qualquer consciência.

O corpo e a linguagem são a memória, ainda antes de sabermos que existem e de sabermos o que eles são, o mais complexo edifício que não obedeceu a um projecto, embora possamos tentar desenhá-lo, “a posteriori”, e licenciá-lo nalguma câmara de racionalidade.

A memória é viva o suficiente para acordar, ou adormecer, quando menos desejamos ou esperamos e é muito maior e mais do que a nossa consciência. Não sei se a memória é mais ou maior do que o corpo, mas é mais inteligente do que a consciência e do que a linguagem e o discurso.

Pode ser muito difícil de apagar, sem apagar o corpo e, ainda assim, pode sobreviver através de outros corpos. E pode ser ainda mais difícil de recuperar, o que é desesperante quando dela mais precisamos.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Ornatos e razões puras de uma ideia para enganar crédulos

A meritocracia, a aristocracia e a própria democracia são formas de entronizar nos imensos e superiores poderes do Estado, e de os colocar nas suas mãos, aqueles, indivíduos ou grupos, ou partidos, já posicionados no mais alto nível de privilégios, prerrogativas, vantagens.

Na realidade, são formas de plutocracia e de cleptocracia, com os evidentes perigos que isso representa para a sociedade em geral, sobretudo para aqueles que têm de se sujeitar às condições económicas, políticas, de acesso à justiça e à saúde e ao poder.

O poder do Estado, sendo o "activo" mais valioso que há, nem por isso está a salvo e não vemos mérito, ou confiança que o mereça, nem superioridade moral, intelectual, humana, de alguém, que justifique a colocação do poder nas suas mãos.

Sobretudo porque a guarda e gestão desse bem público não tem sido vista e entendida como tal pelos titulares dos órgãos de poder. O poder tem sido uma oportunidade, legitimada e insindicável, de fazer desse património incomensurável do Estado, a maior fonte de rendimentos, para quem o gere, sob todas as formas, incluindo a corrupção.

Se há uma forma menos perversa de tomada do poder é a que ocorre por efeito da democracia pluripartidária, se esta não estiver instrumentalizada por algum partido que abusa das fragilidades e das contradições do sistema, nomeadamente eleitoral e se o dogma da bondade da democracia não dispensar a vigilância das pessoas induzindo-as a confiar que o poder está em boas mãos. Esta confiança inerente e esta falta de alternativas à democracia garantem a qualquer formação política um monopólio da oferta política com os grandes defeitos e inconvenientes associados.

Os eleitos não apenas se arrogam uma legitimidade, muito para além do formal, como ainda agem em consciência de que não há alternativa, de que mais do que "democráticos", são "aristocráticos"(os melhores) e o preço a pagar pela governação, ou seja, a “entrega” do poder nas suas mãos, são eles que o estabelecem.

Isto tudo é muito triste, na perspectiva dos contribuintes que acreditam na racionalidade do sistema e nos méritos do apregoado Estado de direito democrático.

Que estes méritos pouco mais sejam do que ornatos e razões puras de uma ideia para enganar aqueles, crédulos e fiéis, impotentes, que são sobre quem esses méritos se fazem sentir e justificar, sem escrúpulos, por abuso da subserviência e do temor deles, é ainda mais inaceitável e revoltante.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O positivismo de Auguste Comte e de Platão

O filosofar é uma actividade severamente ameaçada por se desenvolver mediante um discurso cuja linguagem não nos pertence senão na medida em que a utilizarmos e não nos serve senão na medida em que a dominarmos na medida em que os nossos interlocutores a dominarem. Se juntarmos a isto o problema de, ao filosofar, o discurso filosófico ser o objecto do filosofar, porque não se trata de filosofar senão sobre ideias, ou conceitos, ou imagens, cujos contornos e conteúdos é impossível estabelecer, o que retira a esperança de duas pessoas, ao filosofarem uma com a outra, terem a mínima segurança ou certeza de estarem a pensar a mesma coisa ou algo bastante parecido, há motivos para pensar, como parece que Comte pensava, que há que ser positivo, no sentido de adoptar uma atitude construtiva com base na utilidade e no valor daquilo que pode promover a humanidade como aposta ganha.

A proposta dele partiu dessa necessidade de ordem e progresso social e que ele acreditava ser possível apenas através da religião. A experiência da Revolução francesa, que Comte vivera de perto, era a prova de que a igreja católica não tinha conseguido mobilizar a sociedade e menos ainda a Humanidade, em torno de um valor supremo que não ela própria. 

Deus não era suficientemente apelativo, nem suficientemente convincente para ser afectivamente adoptado como bem supremo.

Comte, talvez acreditando que o que move as pessoas são os afectos e as necessidades que geram solidariedades em torno de interesses e objectivos colectivos e individuais, elaborou um catecismo com a doutrina de uma religião universal que, no lugar de Deus, teria o amor por princípio, a ordem como base e o progresso por finalidade.

Essa seria a forma de alicerçar a construção da sociedade humana ideal.

A unanimidade seria obtida por efeito da verdade da ciência, que teria como sacerdotes os cientistas e cujo carácter experimental e verificabilidade não estariam sujeitas a refutação.

As ramificações, os desenvolvimentos, as interpretações, as versões e os sucedâneos desta ideia de positivismo (por oposição a negativismo-que afirma a impossibilidade de conhecer o ser), foram inúmeras e tiveram aplicações adaptadas em regimes políticos autoritários concretos.

Entrevejo algum paralelismo entre a situação histórica de desordem vivida por Comte, a vivida pelos filósofos Sócrates e Platão e o tipo de resposta que deram ao problema de, sendo filósofos, o que sabiam e podiam fazer face à violência e às guerras.                                                  

Sócrates, não tinha escola, dizia que não tinha nada para ensinar e é famosa a declaração “só sei que nada sei”, que lhe é atribuída.                        

No entanto, segundo o oráculo de Delfos, Sócrates era o único sábio. Então, ele terá concluído que, se era o único sábio, era porque só ele sabia que nada sabia. Os outros nem isto sabiam. Com esta alegação, talvez Sócrates irritasse muita gente que acreditava que o oráculo não mentia. 

A filosofia parece ter nascido, assim, da necessidade de fundamentar até à irrefutabilidade as opiniões sob pena de elas não passarem de expressão de interesses, instintos, desejos, paixões, ilusões, frustrações...

Mas Sócrates não acreditava que fosse possível fundamentar o que quer que fosse até à irrefutabilidade, nem a sua ignorância. E, neste ponto, ele parecia brincar com a "infalibilidade" do oráculo a seu respeito. 

Sócrates adoptara uma posição, digamos, “negativa”. Contestava os outros, porque só tinham opiniões e porque ter opiniões não é saber, mas ficava por aí, não sabia mais.   

Platão não aceitava esta saída e entendia que a filosofia “tinha a obrigação” de fazer mais. Esta posição era, digamos, “positiva”, no sentido que me parece ser o do positivismo de Comte.


segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A neutralidade da ciência

A neutralidade da ciência não é um ponto fraco nem um defeito ou uma insuficiência da ciência, bem pelo contrário, é uma condição sem a qual o conhecimento ficaria comprometido, quanto à credibilidade e objectividade. Aliás, quando se trata de ciência física dos objectos materiais, a neutralidade não será um problema de maior, porque a determinação e estabelecimento dos factos não dependem muito da neutralidade dos juízos. O problema coloca-se principalmente nas ciências humanas, sociais e económicas, na medida em que aí os factos são actos humanos ou uma sucessão desses actos. Aqui, a neutralidade da ciência pode ser mais difícil de conseguir e o próprio estabelecimento dos factos pode não ser possível. E, sem factos apurados, provados, incontroversos e incontrovertíveis, não pode haver juízo de valor, seja ético, jurídico, moral, estético, económico, que mereça concordância e aceitação.

A maior parte da história assentou, e ainda assenta, num conjunto de ficções religiosas, crenças, idolatrias, mentiras reiteradas pelos poderes e pelas ideologias de domínio social que, à míngua de investigação e de conhecimento científico, eram impostas por autoridade como factuais e assim cultivadas e admitidas, sob advertência severa de que não poderiam ser postas em causa.

Assim se prova que se pode viver e construir impérios com base em ficções e mentiras.

Mas eu acredito que é preferível viver com base na verdade e, melhor até, sem construir impérios sobre cadáveres de escravos.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A razão de ser e de dever ser

Estou profundamente focado na área de conhecimento das ciências humanas, sociais e económicas e não me distraio de as referenciar às ciências físicas e biológicas. 

A filosofia é a razão a laborar no conhecimento da realidade, do que existe, qualquer que seja a forma, incluindo o próprio conhecimento e ela própria, como realidade que é, ainda que não seja material. 

A filosofia é a razão que descobrimos e buscamos na identificação do domínio do conhecimento com o domínio da realidade (a realidade de cada um nunca será mais ampla do que a que conhece), que nos permite explorar e descobrir e reconhecer a realidade e comunicar representações significativas de factos, e sentenciar como tais (verdadeiros) e emitir juízos de não neutralidade ética, moral, estética, emotiva, sensorial, sobre os mesmos, sem deixar de os explicar, de se explicar, de os justificar e de se justificar. 

A filosofia é a razão à prova, ou exercida sobre constrangimentos (nem a experiência deve ser um constrangimento para a razão, na medida em que o valor, validade, verdade a extrair da experiência dependem da razão, incluindo a experiência da razão; é a razão que valida a experiência e não esta que valida aquela) e sem as limitações do método científico, designadamente, de objectividade, neutralidade e imparcialidade. 

A filosofia não é neutra, porque a razão não é neutra. 

A ciência é neutra porque o método científico é etica e esteticamente neutro.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A razão como critério dos valores

Parece acentuar-se a tendência para pensarmos em abstracto, em detrimento do pensamento das condições concretas da vida e isso pode esvaziar a linguagem, reduzindo-a a jogos inconsequentes de palavras, quando a carne dos interesses é, e não pode deixar de ser, determinante, tanto mais que o império da razão e o império dos valores se miram num espelho de juízos que nem todos conhecem, pelo menos para lá do egoísmo.

Qualquer pessoa normal está dotada da capacidade de fazer juízos de valor, estéticos, éticos, morais, com base numa educação, formação, que todos, de algum modo, têm.

O mesmo não acontece com juízos de carácter científico, juízos de ciência, nem com juízos de verdadeiro falso. Estes requerem o domínio de algumas técnicas de pensamento reflexivo intencionalmente dirigido e controlado, que são menos espontâneas e, quanto mais deliberadas, melhor.

Se se pode viver à margem destas tarefas e destas preocupações “científicas”, já estas não deixam de estar no mercado dos valores, que é ou tende a ser “totalizante”, no sentido em que tudo, antes de mais, tem um valor.

Assim, o universo dos valores, inclui a própria razão e as leis da razão. Mas haverá alguma forma de primazia do valor relativamente à razão? Ou vice-versa? Haverá algo que o indivíduo (à luz da razão) julgue, ou deva julgar (são duas situações distintas) um valor, ainda que prejudicial, desvantajoso para si? Qual é, em suma, o critério da razão e o critério do valor? Razoável é o valor, ou o valor é o razoável? Qual tem sido a demanda dos humanos? A razão ou o valor? Mas o que é a razão senão juízo de valor? Haverá algo (de juízo científico) que seja contra o interesse humano?

Por ex., temos todas as razões para sermos bons? Ou para não sermos maus?

Há um problema quando se tem razão para ser mau.

E um problema maior quando se é mau.

Atualmente, parece-me que há mais pessoas empenhadas em coleccionar razões para serem más do que em procurar razões para o não serem. Já nem falo em procurarem razões para serem boas.

O espectro partidário das forças políticas, a meu ver, é um espectro de hordas que continuam a acreditar na posição dominante para disciplinar o “mercado dos valores”.

Mas a democracia não pode estar sujeita a isto e tem de, ela própria, exigir o respeito intransigível da razão como critério dos valores.

sábado, 19 de setembro de 2020

O amor da sabedoria e a medicina

O amor da sabedoria foi e é um grande amor. 
Esta paixão revelou-se, para mim, o melhor antídoto contra outras paixões. 
Fosse por questões de senso, de nexo, de coerência, de sentido, de valor, de entendimento e de harmonia com quem me rodeava, a forma de haver entendimento e harmonia com a catequista, o padre, as beatas e as professoras, era reproduzir de cor e salteado o que eles mandavam. 
Havia outras pessoas, analfabetas (de escrever, ler e contar), que me transmitiam a noção empírica de que todo aquele teatro, à volta de uma escola e de uma igreja e, lá mais em cima, na sede do concelho, o tribunal, o quartel e a esquadra da GNR, era de tal modo simbólico e cifrado, para não dizer enigmático, que tinha mais pena deles, com as suas plumas e vestes ritualizadas, quando não cheios de jactância na hierarquia das procissões coroadas de interminável e poderoso foguetório, do que dos pedreiros cobertos de pó, a tossicar na taberna, vítimas da silicose e do cancro do pulmão pela sílica, enquanto os filhos deles, que eram meus colegas de catequese e de escola, passavam fome e aprendiam a agradecer a Deus a sorte que tinham. 
As minhas dores e as minhas raivas e as minhas frustrações, por mim e pelos outros (familiares, amigos…) encontravam eco no conforto religioso das pessoas ignorantes que me rodeavam, em casa, na aldeia, na catequese diária, fosse da escola fosse da catequista, ou no castigo de algumas dessas pessoas que exerciam a autoridade, com violência, sem necessidade de a justificarem, fazendo recair sobre mim, criança, jovem, adulto, o ónus de justificar a minha conduta.
Quando entrei na fase de saber que o mundo não tinha começado quando nasci e que não era apenas o meu quintal, a minha aldeia, paróquia, professora, e que havia uma cidade, e médicos e farmácias e hospitais e depois, outra e outra e oceanos e filmes, tudo era mais difícil de conciliar, mas o amor da sabedoria, impaciente, tantas vezes cruel e ingrato, foi-se mostrando vantajoso como uma arma de defesa pessoal, ou de defesa geral, numa guerra. 
A todas as tentativas, mais ou menos reais, mais ou menos disfarçadas de ordem, ou simplesmente perpetradas, de me conduzirem, ou subjugarem, ou ignorarem, ou desprezarem, eu aprendi a perceber que a razão é a arma dos fracos e que a sabedoria é como um grande exército de razões. 
Esta consciência, resultante de muito pensamento construído sobre o pensamento e as ideias de tantos filósofos e pensadores e escritores, permitia-me colocar um médico, ou um juiz, ou um engenheiro, no seu lugar profissional, do mesmo modo que a mineralogia, a zoologia, a botânica, a química, estavam nos compêndios respectivos. 
A minha passagem pelas ciências, numa altura em que o país fervilhava por todo o lado e todo o tempo era pouco para nós, jovens à procura de saber quem tem razão, mostrou-me que a vida, a acção, a dinâmica, os desafios, os combates, a adrenalina, não estavam numa bancada de minerais, ou num laboratório de química, ou na exploração e conhecimento da flora. 
O carácter de urgência de certas situações, altera as prioridades.
Havendo prioridades a considerar na construção de um currículo académico, ou de um plano de formação profissional, estas têm mais a ver com questões de ordem técnica e prática, funcional, do que com razões de ordem teórica ou filosófica. 
Está fora de questão que um estudante, qualquer que seja a função ou a profissão que venha a desempenhar, só por ser estudante deva estudar tudo o que há para saber sobre todos os domínios.
Outra questão será: estará em melhores condições para abordar clinicamente um humano, do ponto de vista das medicinas, um médico robot, que só sabe de medicina (isto é possível?-esta era a provocação de Abel Salazar), ou um médico humano?
Para não me alongar, e deixando implícito muito do que poderia explicitar, não acredito que um robot possa filosofar. Que, tomando a realidade (que equivale ao que conhece) possa definir o ser tendo em consideração: o ser como um poder ser que foi /um dever ser (pelo menos quando falamos de ética) que é, e como ele, robot, quer ou deseja que seja…
Mas o médico, enquanto homem, é um filósofo que vive integrado num sistema de acção e de pensamento e de valores que, em grande parte, já assimilou o que os sistemas de cultura assimilaram ao longo da história. Este sistema de pensamento e de acção é um sistema de linguagens e de lógicas, nomeadamente matemática, cujo domínio varia muito de pessoa para pessoa e de robot para robot.
Não acredito que os robots decidam com base em valorações próprias, que não sejam programadas por humanos, mas os médicos fazem-no.
Neste capítulo, por ex., se é indiferente para o mundo que uma pessoa viva ou morra, já quanto à vantagem política e económica na sua sobrevivência, ainda que enfermo, ou na sua morte, os médicos e a indústria farmacológica e as tecnologias da saúde e todas as profissões que dependem do tratamento das pessoas, tanto ou mais do que os direitos fundamentais do homem e do cidadão, são um baluarte e uma fortaleza, cujos interesses, quando mais não sejam, de facto, garantem o respeito pela saúde e pelas vidas, por mais inúteis ou absurdas que sejam do ponto de vista de qualquer filosofia, religião, ideologia ou sistema de valores.

domingo, 30 de agosto de 2020

Pena de morte

O argumento que me faz hesitar perante a pena de morte é que ela seria mais um instrumento dos usurpadores do poder e dos poderosos. 

De resto, aceitaria, sem pestanejar, a pena de morte para um assaltante, de um carro, de um apartamento, de uma casa, de uma pessoa, desde que fosse julgado e, quanto mais facilidades apresentasse em indemnizar os lesados, mais difícil seria a sua absolvição. 

Compreendo mais facilmente um homicídio do que um roubo ou um furto. 

Tenho horror a ladrões. 

Os ladrões não roubam só os anéis, mas não roubam as consequências, nem a memória. 

E não venham com a treta de que todos são ladrões, porque isso é falso. 

Há imensas formas de roubar, é verdade. Mas, na minha escala de valores, que vale o que vale, roubar é o pecado capital. 

E há sempre os bons e os maus. 

Mas não há ladrões bons. 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

É só uma questão de tempo

Estou convencido de que é só uma questão de tempo e que deixará de fazer sentido dizer "eu sou português" ou "eu sou camaronês". 
Cheguei a acreditar piamente que era cidadão do mundo e que, em França, nos EUA, ou na China, não tinha que me preocupar se estava a "desrespeitar" alguém por manifestar a minha opinião. 
Estar num país estrangeiro não deve ser e, futuramente, não será, estar fora do seu país. Muito menos será como estar em casa da sogra e ter que "abaixar as orelhas". 
Um homem deve poder ser o que é, independentemente do sítio em que se encontre. 
A territorialidade não deve ser, e não será futuramente, critério ou condição para a liberdade de expressão. Aliás, nações colonialistas, ou colonizadoras, deviam saber isto melhor do que ninguém.
Quanto à polícia e às forças da ordem e da segurança, incluindo militares, ainda não se queixaram, nem se queixarão, porque isso não faz parte da definição de polícia...
Basta-lhes fazer cumprir e cumprir a lei. Para isso têm todos os meios. 
Aqueles que não compreendem isto e promovem manifestações "com pena" das polícias, parece que pensam que ser polícia é andar a levar porrada, sem poder defender-se.
Do mesmo modo, quando virmos um Estado rico e poderoso, que sempre fez "quase" tudo o que quis, que sempre teve "quase" tudo o que quis, ainda que nem sempre, ou raramente, dentro da legalidade e do direito, a queixar-se de que são os outros o problema ou a causa dos problemas, haja quem compreenda.
Um homem, porque fala em Paris não tem menos razão do que se falasse na lua, a menos que dissesse qualquer coisa como "estou na lua", estando em Paris, ou "estou em Paris", estando na lua.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Comunismo, fascismo, nazismo, democracia

O comunismo deu e dá argumentos aos fascistas.
O nazismo é uma forma de interpretação e de aplicação à letra do marxismo-leninismo, mas pelo lado do capitalismo, legitimados pela lógica da luta de classes.
Aliás, os partidos comunistas, mais pelos princípios e pela doutrina do que pela prática, não só inspiraram os movimentos fascistas e "legitimaram" o nazismo, como lhes deram razões para existirem.
Historicamente o fascismo é um reflexo/espelho/réplica das teorias marxistas-leninistas.
A política e o futebol e as religiões padecem do mesmo problema de os partidos, clubes e igrejas, não estarem interessados em justiça, ou direito, se isso não lhes der jeito e vantagens.
A humanidade está refém desta lógica do egoísmo e da esperteza, deste determinismo "invencível", desde que sinta alguma onda de ameaça. E há especialistas que, sem encontrarem obstáculos, se dedicam a gerar estas ondas.
A democracia, para funcionar, deveria impedir isso, que partidos anti-democráticos, que preconizam a violência e a desigualdade e o racismo e o chauvinismo e a xenofobia...pudessem candidatar-se a lugares no parlamento. E deviam responder por ataques ilícitos, não apenas à democracia, como à Declaração Universal dos Direitos do Homem e à Constituição da República Portuguesa.
E devia haver um controlo, explícito e expressamente assumido pelo Estado, das pessoas e dos grupos que ameaçam a democracia e os valores do Direito. Essas pessoas e esses grupos deviam ser identificados e, se necessário fosse, chamados a responder pelos seus actos, nomeadamente, apresentando provas de cidadania.E não estou a pensar apenas nos desgraçados dos "sem abrigo", estou a pensar em elites.
Pela via democrática, um dia poderemos ver fascistas, comunistas, cristãos, ateus, muçulmanos, etc., a imporem a sua ditadura. A democracia não deve ser a porta para qualquer tipo de ditadura.
A democracia não deve conter em si mesma a possibilidade da sua negação.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Estado deveria ser laico

O Estado deveria ser laico, não apenas relativamente à religião e às igrejas, mas também relativamente ao capitalismo. Capitalismo e Estado não devem promiscuir-se.


segunda-feira, 20 de julho de 2020

Pensamento crítico

Pensar é difícil, dá muito trabalho e pode ser frustrante, sobretudo quando se pensa com a própria cabeça, com alguma independência e liberdade. 
A sociedade tem vindo a "dispensar" a necessidade e o esforço de as pessoas pensarem pela própria cabeça, como se isso fosse uma forma de facilitar a vida a toda a gente. 
Basta ser adepto de um clube, de uma seita, de um partido, ou um sindicato, de uma fé, ou corrente filosófica, para, do ponto de vista do pensamento, ter todas as dificuldades e dúvidas resolvidas. 
Dentro de cada uma dessas bandeiras funciona um sistema de argumentação que é adoptado acriticamente pelos seus adeptos e que parece satisfazer todas as suas necessidades de conhecimento. 
Quando o indivíduo está inserido, ou tem preferências, numa corrente, grupo, igreja, seita, clube, partido, mercado...não podemos esperar qualquer pensamento crítico do mesmo, porque ele já tomou a sua posição relativamente aos problemas. 
Ainda que seja capaz de questionar a posição dos outros, o mais provável é que não se coloque a si mesmo em questão.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Dentro das capelas de muitas disciplinas.

Os processos de aprendizagem não são menos complexos do que os processos de ensino e não existe grande correspondência entre uns e outros. Todas as disciplinas se perfilam na linha do pensamento crítico, do domínio da linguagem e de algum modo ou tipo de conhecimento funcional. Mesmo que os resultados não sejam imediatos, podem aparecer dezenas de anos mais tarde, vale sempre a pena apostar e investir na provisão de dados e de informações sobre a realidade, individual, social, física...
Promover nos estudantes hábitos de pensamento científico é fundamental, mas muitos têm dificuldade em integrar o método científico nos seus processos de abordagem e análise da realidade. As coisas não são simples quando tudo se passa num plano de linguagem, que é preciso dominar. As várias disciplinas, no modo como são enquadradas e posicionadas, induzem logo a considerar diferenças que perturbam no único e fundamental objectivo de todas elas, qual seja, o de proporcionarem o acesso mais adequado e fecundo possível ao conhecimento, seja de que matéria for.
A escola e as suas disciplinas não devem estar estruturadas por forma que sejam o processo pior (mais difícil, complexificador) possível de chegar ao conhecimento, seja de que matéria for.
Por exemplo, nós usamos os métodos de conhecimento, muito antes de nos dizerem que esses métodos são dedutivos, ou indutivos, científicos, empíricos, racionais, etc..
Por outro lado, nas ciências físicas, não raro, ficamos com a sensação de que nos querem dizer que foram os cientistas que criaram o sistema solar, a gravidade, ou a electricidade, etc..
Ainda há imenso pensamento encriptado, reverencial, sacerdotal e esotérico dentro das capelas de muitas disciplinas.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Racismo é racismo

Racismo é racismo e não é para tentar desculpar, porque isso não o torna menos mau.  Não adianta tentar consolar as vítimas, dizendo-lhes que não acontece só a elas, etc..., ou que a sociedade é e sempre foi racista. 
O pior que tem acontecido, ao longo dos tempos, é a adaptação e a resignação ao racismo. As sociedades e as suas culturas assentam em factos consumados de racismo, que se tornam situações inelutáveis de ordem social. 
E é sabido que a humanidade tem uma aptidão espantosa e assustadora para banalizar e até sacralizar os crimes mais hediondos. 
Olhando para o passado e o presente e fazendo algum tipo de introspecção e pensamento crítico, ao ajuizarmos, sem dó nem piedade, sobre as condutas humanas e as suas motivações, tantas vezes frívolas e vaidosas, é difícil não odiar o "humano", tão deprimente se mostra a história política e social, mas aqui está também uma armadilha e um perigo, porque o discurso e a cultura do "ódio ao humano" e do "ódio ao humano racista" são autodestrutivos e tendem a racionalizar o ódio pelo que não satisfaz os supostos modelos e padrões de algum elitismo fervoroso, para não dizer religioso, e levam à cegueira, quando não perversidade, do julgamento em tribunais com vistas para o abismo. 
No entanto, esse ódio não justifica nem pode justificar qualquer tipo de agressão ou extermínio, como já ocorreram e ocorrem, por ódio, indiferença, desumanidade ou alienação, desinteresse..., por exemplo, com a pandemia da fome. 
O maior desafio continua a ser o de saciar a fome de justiça. 
Que cada ser humano o seja entre humanos e respeitado como tal, quer se goste, quer não, e nunca permitir que alguém coloque outra pessoa numa situação de subjugação, ou de privação do que é seu por direito natural, ou positivo, nem que essa subjugação ou privação, eventualmente, tenha consagração legal, como já aconteceu e, provavelmente, ainda acontece. 
E que haja concertação e institucionalização de mecanismos político-jurídicos universais nesse sentido.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

O que alguma vez foi jamais deixará de ser?

A linguagem é um sistema poderosíssimo que permite comunicar e que não está, nem de perto, nem de longe, nas nossas mãos controlar. 
Se isto é bom, também pode ser mau, como tudo, aliás. 
Ela adquire "vida" própria e é uma realidade que nos escapa cada vez mais. 
Quanto mais tentamos fazer dela nossa aliada, mais ela nos trai, e vice-versa. 
Ela muda a realidade do que alguma vez fomos ou poderíamos ter sido, e torna-se a realidade que as coisas já alguma vez deixaram de ser para sempre.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

A função do livro é indomável e imprevisível


Para evitar desvantagens de estarmos dependentes e condicionados pelo mercado da atenção, é indispensável que se leia, sobretudo, o que não é o discurso da "verdade oficial". A função do livro é de tal modo indomável e imprevisível, que os autores da clandestinidade, os desmancha-discursos, os "malditos", os "proscritos", os "excomungados", todos quantos não alinham nem servem cartilhas, grémios, associações, partidos ou religiões, são a melhor garantia de podermos aprender alguma coisa importante sobre o que pensam outros, loucos ou não ou só um pouco, ou aqueles que são tomados como tais, algo que nos interesse ou sirva de aviso e de esclarecimento, ou lição, ou de visão, ou de, outra, chamada de atenção. Podem ser como as raras pessoas que se incomodam a dizer verdades que normalmente ninguém deve saber. Os livros podem ser a única forma de acesso a verdades que não têm o direito de existir, por qualquer razão, conhecida ou desconhecida, a informação muito relevante, que não poderemos encontrar noutro lugar, nem de outro modo. Os livros, que não chateiam ninguém, que estão quietinhos e não fazem barulho, são dos objectos que, ao longo da história, mais foram odiados, perseguidos, queimados e que, ainda assim, sobreviveram aos seus algozes e inimigos, muitas vezes, devido ao amor dos seus leitores.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Valor moral, sacrifício e felicidade

Seria interessante não dar como suposto o que é o bem e o que são boas acções. Assim, somos colocados abruptamente numa espécie de teoria do pecado ou do mérito, justamente o que precisamos de analisar. Em qualquer caso, nas questões morais, ou de ética (política, profissional, religiosa, jurídica...), estando em jogo um interesse egoístico e um sentido de dever, o foro da consciência, se não for o tribunal supremo, será o critério para ajuizar sobre o "valor moral", que será tanto maior quanto menos coincidente for o interesse egoístico com o dever de sentido contrário. Qualquer juízo moral ojectivo deparará com a impossibilidade de acesso à consciência do sujeito. Salvaguardando isto, o valor moral de uma acção tenderá a ser inversamente proporcional, ou mais, ao interesse egoístico do sujeito da acção, se este interesse não for coincidente com o interesse que "transcende" aquele. E se for? Ou seja, praticar acções que nos fazem felizes, independentemente de serem boas acções (segundo qualquer suposto critério de bondade), terá tanto menos valor moral quanto mais nos fizerem felizes? A minha (in)felicidade é a medida do valor moral daquilo que faço ou deixo de fazer? Claro que não. A questão nem é de felicidade, mas de sacrifício. Todo o comportamento só adquire valor moral a partir de certo momento que envolve consciência e "escolha" de algum tipo ou forma de sacrifício. A felicidade até pode ser fruto disso.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Eu a pensar acerca do cérebro, ou este a pensar que me engana?

A educação e o ensino e a política e a religião não se propagam como um vírus, mas têm algumas semelhanças. 
Vislumbro, à primeira vista, uma diferença que me interessa: enquanto o vírus se limita a estar onde está e a ser o que é, aqueles não. Mas todos dependem de um hospedeiro.
E, em todos, mais ou menos, o hospedeiro sobrevive se e na medida em que desenvolver anticorpos.
Até pode ser uma declaração gratuita, mas a maior parte dos humanos não "sobrevive" e adoece e morre de qualquer modo, por efeito da educação, do ensino, da política e da religião. 
Mas é uma fatalidade, o lado mau de algo que não podemos evitar, como se morrêssemos de viver, ou vivêssemos de morrer. 
Se o cérebro fosse um órgão capaz de substituir a vida pela imaginação?!, mas não consegue completamente!
No paradigma da evolução foi concebido para sobreviver e ainda não evoluiu bastante. 
Há uma cultura e uma realidade sociológica e humana que precisa de um cérebro adaptado a descobrir a verdade (isto não deve ser o meu cérebro a pensar de si mesmo!!!).
Pedir aos alunos, aos eleitores, aos fiéis?...O que é isso? ...O que é isso?

quinta-feira, 7 de maio de 2020

A minha arte é ser eu

Fernando Pessoa, como muitos dos humanos que nos habituamos a admirar, sem dificuldade e até a cultivar, tal é o fascínio que exercem, pela obra e pelo que foram/são, é criação dele próprio, é uma obra de arte de si próprio, e tinha plena consciência disso, ao declarar "A minha arte é ser eu". 
Quem diria melhor? E merece que se fale dele e da sua obra.
A toda a volta da rua onde sentaram a sua estátua, podiam revestir as paredes exteriores com frases e versos que ele escreveu, que não falta material de beleza e riqueza inigualáveis.
Era um homem que vivia, como qualquer um, dentro do seu universo, de uma narrativa pessoal e social muito própria e, no caso de Pessoa, muito especial, de que parecia ter o comando, os objectivos, os mapas, os instrumentos, o leme e a consciência aguda disso e do que tudo isso representava em múltiplas perspectivas plausíveis, incluindo a dele (que eram várias). 
Não tinha nada de desgraçado e era feliz, à sua maneira, porque não se sentia frustrado e adorava a cidade palco, Lisboa, ou espaço de interacção, representação dos papéis que ele, com incrível determinação e lucidez, escolhera e criara para si. 
E sentia-se como peixe na água dentro da sua própria narrativa. 
Muitos dos sentimentos e dos pensamentos que todos temos e frequentemente expressamos, como mundo oco e arbitrário, cercado de gente mas solitário, ficarei contente neste mundo sem gente de repente...Fernando Pessoa, pura e simplesmente, não conhecia.

sábado, 25 de abril de 2020

Arte de pensar

Para quem gosta de pensar, não só pela necessidade de pensar mas também, e sobretudo, pelo prazer/sofrimento de pensar, que o pensar, entre ser espontâneo e ser acto pode não ser nada e pode ser muito. 
E se for expresso em palavras e se forem gravadas, sobreleva às armas e às bombas e a todas as batalhas e guerras, como é fácil de comprovar na história. 
Apesar de, ou embora perdurem os ecos das explosões e dos gritos e os efeitos da destruição de há mil anos, não passam de ecos distantes, a que quase todos são surdos e, mesmo assim, é preciso procurá-los em alguma forma de escrita. 
Tem mais impacte e poder demolidor sobre uma cultura, e é mais subversiva, a declaração de uma "verdade", do que uma bomba atómica. 
As armas e as bombas calam-se de imediato, as vítimas também, mas as palavras, mesmo soterradas, podem ressuscitar milénios depois. 
Platão, Aristóteles...calaram-se, mas as suas palavras falaram cada vez mais e mais.
Entre as forças da natureza que a física declarou, ainda falta declarar, em alguma fórmula consistente, a força do pensamento.
Muitas vezes os pensamentos parecem surgir e fluir por si mesmos, permitindo-nos o prazer de os “observar” e de os avaliar, podendo até conduzi-los, detê-los, recuar e retomá-los, de igual modo ou de modo diferente.
Outras vezes, eles tomam-nos de assalto e brotam sem que os possamos simplesmente parar, podendo mesmo atormentar-nos fazendo-nos desejar desligar o cérebro e descansar.
As características do pensamento são muito curiosas porque este parece desdobrar-se, uma vezes mais facilmente do que outras, em pensamento e pensamento que se pensa a si mesmo, com intensidades que variam de um para o outro, por razões que nem sempre podemos controlar muito bem.
Este pensar sobre o próprio pensamento é algo como ter uma ideia e pensar sobre ela e pensar sobre este pensamento e sobre o outro e assim sucessivamente, dependendo a dificuldade do empenho que pusermos em não perder de vista a teia de raciocínios, de silogismos ou de ilações, ou de induções.
Assim sendo, há a possibilidade de uma disciplina sobre o pensamento, pelo menos enquanto acto, e é possível desenvolver estratégias e habilidades e arte de pensar.

domingo, 19 de abril de 2020

Que a justiça seja a última a morrer

É sempre bem vindo um pensamento que salta o muro ou que, se não pode sair pela porta sai pela janela e, se não puder sair pela janela sai pelo buraco da fechadura, porque é livre, porque é livre.
Obrigar a pensar.
É possível pensar que um sistema político, económico, social... não pode ser confundido com uma ordem natural das coisas.
De qualquer modo, o sistema capitalista tem a aptidão para capitalizar tudo, incluindo o próprio prejuízo e a própria falência.
O sistema capitalista sobrevive a tudo e ganha com (quase) tudo, com a morte, com a guerra, com a destruição, com a fome, com o talento e com a falta dele, porque é basicamente um modelo de contabilidade, em que as próprias preocupações humanas (saúde, bem-estar, justiça, paz) correspondem a um valor contabilístico e, nesta medida, até consegue capitalizar o socialismo e os afectos (o Marcelo é um caricato exemplo disso).
Na minha opinião, o capitalismo só perde quando for "capitalizado" por um socialismo qualquer que sobreponha, às veleidades e excentricidades e atrocidades do capital de indivíduos ou grupos, o interesse e a sobrevivência do colectivo.
Atualmente, a concentração de riqueza é de tal ordem que já dispararam os alertas mundiais automáticos...
Irónica e paradoxalmente, esta concentração de riqueza, com todos os seus defeitos e perigos, parece ser uma bênção para a preservação do planeta. Se distribuíssem a riqueza por todos, era o descalabro total.
O capitalismo é autofágico, mas só até ao ponto em que não é capaz de permitir a sua própria reprodução.
Exemplo disso é esta crise. Menos de um mês bastou para vermos o capitalismo a pedir socorro àqueles que sempre maltratou e injuriou e abominou e, mais grave do que isso, a defender para si mais providência do Estado do que aquela que alguma vez admitiu para os mais desfavorecidos da sorte.
Por outro lado, é sabido que o capitalismo, ou outro sistema qualquer, só irão até onde os deixarem ir.
Quando o capitalismo, ou outro sistema qualquer, deixa de servir os interesses da sociedade e começa a ser perverso e nocivo para a mesma, a distribuição de talentos cá estará para "garantir" que a justiça seja a última coisa a morrer.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Entre deus e o diabo


Convidaria um grupo constituído por cientistas de todas as áreas, filósofos, historiadores, pintores, arquitectos, teólogos de todas as religiões, professores de todos os níveis de ensino, políticos de todos os partidos, militares de todas as armas, críticos de arte, de todas as artes, economistas, fotógrafos, poetas, navegadores, cantores, anacoretas, jardineiros, feiticeiros, romancistas, cronistas, psicólogos, pedagogos, banqueiros, capitalistas, arrivistas, astrólogos, malabaristas, agricultores, operários fabris, alfaiates, trolhas e pedreiros, santos, sábios, altezas, vedetas, adivinhos, adultos, crianças, polícias e advogados, juízes, médicos e coveiros...
...Para comentarem este quadro, 

sob a advertência de que isso seria uma prova de avaliação feita por um júri constituído pela santíssima trindade, um Deus e três pessoas distintas, como condição de entrada no paraíso que fica à entrada do paraíso, onde se junta uma multidão de felizes cujo destino é aspirarem à felicidade. Mas, para alívio e incentivo à criatividade, os critérios de avaliação seriam muito gerais, não tão gerais que o Diabo tivesse intervenção na sua formulação, nem tão específicos que Deus recusasse a César o que é de César, nem ao ideal o que é do ideal.
Rafael, neste quadro, ultrapassa tudo o que alguma vez imaginei sobre o que seria a escola ideal, Platão apontando para o céu. Rafael, neste quadro, ultrapassa igualmente o que imaginei sobre o que é a escola que temos, Aristóteles apontando para o chão. E, em vez de deuses ou demónios, santos ou anjos, pinta, na sua escola, sábios, que sabem, que sabem fazer e que fazem. Em vez de símbolos do que deve ser feito, símbolos do que é feito.
Eu gostava de entrar numa escola como quem entra num templo, onde é omnipresente a voz dos sábios que não mandam ajoelhar, mas dos que proíbem que se ajoelhe, dos que provocam a luta e a rebeldia e a crítica e a justiça, a luta entre Deus e o Diabo até que um deles morra.
Rafael estava em pleno século XV, a respirar os ares da Reforma.

sábado, 28 de março de 2020

O que não é possível a Deus

Se a vida não fosse maior do que nós e nós não fossemos maiores do que a vida, ter-me-ia por certo esquecido, ou nem sequer teria ouvido, ou entendido, ou dado importância, a uma tentativa do professor de português, do Básico, de explicar para crianças o significado de absurdo. 
O facto é que ficaram gravados na minha memória, o professor, o que ele disse, o contexto e a sala de aula. 
Provavelmente, nem esse professor voltou a pensar no assunto. 
E, dessa aula, apenas recordo esse momento. 
Achei incrível que um padre (esse professor era padre) dissesse, sem subterfúgios, que absurdo é o que nem Deus pode fazer. 
E deu como exemplo que, se a caneta caísse ao chão, nem Deus era capaz de fazer com que ela não tivesse caído. 
Fiquei deslumbrado, porque isso punha em causa o que sempre ouvira dizer, que a Deus nada era impossível. 
Mas o que não é possível a Deus, felizmente, é possível aos cientistas, aos músicos, aos pintores, aos filósofos, aos professores e aos poetas.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Equações=

A discussão sobre o conhecimento e sobre a linguagem, sobre as humanidades, as artes, as expressões, as ciências...não pode ignorar a ciência feita sobre essa mesma discussão e que é uma vasta filosofia, no melhor sentido da palavra, considerando as duas vertentes privilegiadas de produção de conhecimento, a dedução, a partir do que se conhece e a indução, partindo de hipóteses...
As equações são um bom ponto de partida para pensarmos na consistência dos nossos conhecimentos, sejam eles mais matemáticos ou menos. 
No fundo, estamos constantemente a equacionar e a procurar resolver equações. 
Neste pormenor, o que me parece distinguir mais as ciências, o conhecimento científico, das outras modalidades de conhecimento, competências, respostas, comportamentos, é sobretudo o modo e a linguagem em que equacionam os problemas e o modo e a linguagem em que resolvem, quando resolvem, as equações.
Todos nós passamos os dias a equacionar e a resolver equações e deitamo-nos com as equações, acordamos com elas e não nos livramos delas. 
Quando resolvemos umas, logo emergem outras e isto tanto acontece na música, como nas línguas, como na pintura, na moral, ou na religião...
Na matemática, as equações, tanto quanto sei, são da ordem numérica, do mais, do menos, da multiplicação, da divisão, da proporção, da progressão, regressão, finito, infinito, etc., e o significado, muitas vezes, depende de algum atributo dos números, como, por exemplo, "3000 mortos", em que mortos é decisivo no significado.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Precisas de ter algo mais do que razão

O pragmatismo e o realismo aconselham a que analisemos os problemas em escalas adequadas, concedendo a cada realidade a respectiva representação relativa. 
Ainda não vi um método, que urge criar, de "elaboração de mapas à escala dos problemas e das soluções...". 
Sem isso, andamos à deriva, como tontos, uns que colocam o problema do álcool no centro do universo, outros que colocam o centro do universo no álcool e por aí adiante.
O que me faz estar aqui a escrever, em vez de estar numa manifestação contra o governo? 
E que seria melhor? Para mim ou para os outros? 
Enquanto estou aqui a escrever, morre gente que outras pessoas tentam acudir, mesmo depois de mortas, com orações...
São poucas as pessoas que têm predisposição para a razão. 
Na realidade, nem os crentes/praticantes da religião estão sequer tentados a interrogar-se e, muito menos, discutir, seja o que for.
Ninguém vai à igreja por uma razão que seja a de ter razão, do mesmo modo que um político não quer ouvir falar em razão, nem precisa de ter, nem esse é o seu negócio. São os interesses, o nepotismo, as alianças, os compadrios, a corrupção, os apoios, os votos, as aclamações, que valem.
Ter razão não vale nada.
Ninguém está interessado em algo que vale nada.
Alguém está interessado na morte de Deus e, mais ainda, na suspensão da morte de Deus de Nietzsche?
Os nossos governantes (a quem tudo devemos, excepto a razão) têm horror à razão e, com razão.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

O professor é um escravo de todos os deveres

Pode-se dizer coisas lindíssimas sobre o papel do professor e os professores merecem e precisam que se digam. Uma delas não é certamente o mito, ideal, ou mesmo utopia, em que o professor foi sendo transformado. O professor tem muitas razões para odiar muita coisa, mas não tem outro poder ou outra saída que não seja amar tudo e todos, e de um modo que o torne ainda melhor professor.
O professor é um escravo de todos os deveres.
Não conheço outra profissão, e já exerci também, pelo menos, a de advogado, que tenha tantos deveres e esteja sujeita a tantas exigências e expectativas e críticas e manipulações ou tentativas de manipulação e assédio moral e "bullying" e comiseração.
É a única profissão em que, até os sindicatos não os representam e os tratam mal.

sábado, 25 de janeiro de 2020

Democracia, poder de uma minoria?


É preciso dar atenção à abstenção e tirar ilações, em vez de eleições, porque a democracia já se tornou, também nos EUA, um regime de domínio de uma minoria, a dos super-ricos, em contraste com a ideia de democracia que está na base da própria Constituição dos EUA. Não obstante, a alternativa que alguns partidos nos apontam não é melhor. Estou a pensar naqueles que acusam (falsamente) os governos de terem andado a favorecer os mais carenciados e os que trabalham, e que pedem mais proteção para os que vivem da exploração e da especulação e da corrupção, que já detêm o grosso da riqueza que outros andaram a criar.