"Ser feliz é uma actividade que requer toda uma vida e não pode existir em menos tempo" - Aristóteles, Ética a Nicómaco
quinta-feira, 29 de dezembro de 2022
terça-feira, 20 de dezembro de 2022
De cigarro na boca
Havia homens e mulheres procurando
Sombras atrás de uma cortina
Escutando música para preencher vazios
Das palavras da canção clássica
No momento de abraçar a imortalidade
Eram abraçados pela novidade
De estarem num cantinho escuro
Que os olhares não devassassem
Com um significado mesquinho
Que não via magia na dança impossível
Nessas devoções em templos improvisados
Invocando deuses e deusas do cabelo
E da roupa perdida
Com tanta humanidade na comoção
Como estavam implorando à solidão
Por felicidade que ninguém alcança
De cigarro na boca.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2022
Estrada
Encontrei uma estrada
Que estava perdida
Que ia de um lado para o outro
E não saía daí
E só então percebi
Por que estava abandonada
A razão de ninguém seguir aquela estrada
Era que ela não levava a nada
E eu quis que essa estrada fosse minha
Como já alguma vez pensei que era
Para um mundo que tivesse sido criado
Só para mim porque sim
E dado assim
Para que eu pudesse fantasiar
O porquê de ter sido abandonada
Antes de saber o que é ser abandonado
Um poema que fosse a resposta ao desejo
De encontrar o fim
Desse poema ainda inconsistente
Que é fundamental escrever
Que é urgente concluir
Mas como? Mas qual?
Se a estrada continua para o desconhecido
Se o poema não resolve a ânsia
E torna maior a dor
Da distância donde vim
Até ali
Por nada e sem nada
Cada vez mais sem nada
Só
Porque encontrei
Uma estrada.
segunda-feira, 12 de dezembro de 2022
Se ao menos
Se ao menos fosse cavaleiro pela neve
Sem saber a hora nem o dia
Se ao menos fosse o passo ou a neve
Que pensamento seguiria
Sabendo apenas que a beleza morde
Como um lobo salta para as gargantas?
domingo, 4 de dezembro de 2022
Felicidade dos bichos da fruta
Dizer que me fazes tanta falta
Que muitas vezes me recolho ainda
No pomar onde me surpreendias nua
Quando andava a estudar a felicidade
Dos bichos da fruta
Sem fazer ideia de quem tu eras
Te tomava por uma depravada astuta
Destapando-se maliciosamente
De entre as videiras
Atravessando-se nos meus olhos incrédulos
Que te fixavam
Como ofegante me apressava para ti
Dizendo espera espera
Enquanto desaparecias
Furtando o sexo ao meu desejo
E eu ficava com as uvas
E o sol
Em todas as partes que tocava
Projetava a tua sombra.
sábado, 19 de novembro de 2022
Falar idiota
Os estranhos sentidos das coisas transformadas
Em sombras de outras coisas
Que não foram
Em barcos ancorados sobre o dorso
Que alguma vez tiveram
Quando foram nadas
Ou apenas eram
Desejadas
Estranhas ilusões
Que nos povoam realmente
E nos percorrem
Como se fossemos estradas
Que deixamos para trás
Porque não imaginamos
Que viriam sequer a existir
De uma forma que está longe
De ser a melhor possível
De alguém sentir outonos
Ou falar idiota.
terça-feira, 15 de novembro de 2022
Sensacional
O hábito ao que é sonante
E ensurdece
Ao que destoa e preocupa
Ao ruído esgotante
Às ladainhas e às rimas
Ao esquerdo direito
“Up” is...
Esquerdo
Como um rio murmurante
Que fica para trás
E se ouve constante
Ao que é doce
E viciante
Ao se não é
Que fosse
Comediante
À espoleta do relógio
E ao monólogo do lente
Entediante
É uma azáfama
Frustrante
E por aí adiante.
quinta-feira, 10 de novembro de 2022
O poeta é o criador das musas
Sem pretender acrescentar um chavo ao que se tem dito e escrito sobre poesia e poetas, não resisto a expender algumas notas sobre uma matéria que sempre tive no centro dos meus
circunlóquios, não apenas para escapar a uma força centrípeta insuportável, mas também para não me perder em coisa nenhuma, porque, sem poesia, a função da vida
é muito mecânica e, com poesia, pode ser menos satânica.
De modo que o poeta, se constrói memórias, é sem o saber e evita essa cilada que o tempo coloca no caminho de que reflete
e sente o que lembra e pensa isso tudo de um modo que não é de todo inocente e ingénuo e "naïf".
O poeta desconstrói memórias, dele e dos demais, do que aconteceu fora
e dentro do seu mundo, como se elas desconstruíssem os mundos, interiores e exteriores, de tal modo que ele não encontra o seu lugar, por mais que lho reservem.
O poeta é desconstruído pelas
memórias, que tem, que perdeu e que não foi capaz de reconhecer, como um corpo pelo oxigénio em que arderam as suas células.
O poeta é o criador das musas que o enjeitam e julga saber
disso, até certo ponto.
quinta-feira, 27 de outubro de 2022
Se o coração falasse
Esteja onde estiver
Faça o que fizer
Pense o que pensar
Diga o que disser
Tenha o que tiver
Sinta o que sentir
Está onde não estou
Estou onde não está
A pedra a ouvir
Se o coração falasse
Diria mil poemas
À tentativa de possuir
Outros mil ao sentir
A falta
Muitos mais ao engano
Que há nisso tudo
E no que falta sentir
Que nunca é de mais
Se for beleza
Por mais que confunda
A céu aberto
Até o desejo doer
Na cava profunda
Da sombra suave
De castelos de areia
Diria mil tolices
Às flores por perto
Sem fazer ideia do tempo
Sem sepultura
A voltar para trás
Aos gritos
Para fazer a vontade
Aos versos aflitos.
domingo, 23 de outubro de 2022
Emboscadas
Por onde vão sem estradas
Nem marcas de ninguém
Se houver escadas
Para o além
Por onde vai sem música
O deambulo sem senão
Das ninfas disfarçadas
De mulheres de alguém
E o alvoroço que resta
Um pouco mais aquém
Por onde vão não há senão
Mundo de ninguém
E não conforta senão
A quem liberta
Não ter porta
Nem cerca.
sábado, 15 de outubro de 2022
Viver
Ai o sublime prazer de coçar
A metafísica comichão
A divagar
Com pródiga comoção
Que ora enxota a pulga
Ora exalta o cão
A elevar a imagem
Que não faz questão
Senão do valor
Da opinião esfarrapada
Sobre uma ópera interrompida
Por uma sorte avara
Que mudou a vida
E esquecer que a saudade
É a última a morrer
Que não se mata saudades
De ter sido
E de não ter sabido
Viver
Peculiares são os rios
Que tortos dançam
Na nitidez dos olhos
Avançam
Na noite alcançam
Definires
De momentos belos
Que nos esquecem
Quando menos esperamos
Onde havia castelos
Só nós estamos.
domingo, 9 de outubro de 2022
Confesso que vivi
Confesso que vivi
Sem pensar em preservar o que tinha
O espaço e a minha liberdade
A visão do meu mundo
Da casa grande
Das vistas largas
Onde cabiam
Quase todos os sonhos
Que havia
Da tranquilidade
Da interminável vinha
Onde nidificavam as aves
Que eu conhecia pelos nomes
Todos os sóis e chuvas
E todas as luas
Que ali me encontravam
Com a alegria e as uvas
Que não faltavam
Na paz criativa da fantasia
De falar incansavelmente
Com as coisas
E de elas falarem comigo
Como se fossem encarnações
Do maior amigo
Que era Deus
Anunciando o outono
E o inverno
E a primavera
Naquele paraíso privado
Em que havia mistérios
Sombras por todo o lado
E estrelas no firmamento
Mas tudo com tal significado
Que até a tristeza
Ali acontecia
Como concretização
De alguma profecia
De milhões de anos
Nem nos dias de nevoeiro denso
Me perdia
Porque havia no ar
Um cheiro dos lugares
Da beira rio
Ou o ladrar dos cães
À passagem das muares
Do moleiro pelos socalcos
Se a noite caísse nos becos
Sem chegar a casa
Bastava um assobio
Para ouvir os ecos
De socorro
Do mundo inteiro.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Metáforas
Os que fecharam as portas
Deixaram o silêncio de fora
A vadiar como um penitente
Até que o silêncio
Tomou conta de tudo
E quando as portas se abriram com o vento
Ele saiu de dentro
E pos-se a vadiar como um rio novo
A que não se chamaria rio ainda
E talvez não venha a ser
Senão metáfora de deus.
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
Derivas ideológicas
Vale a pena pensar no problema das derivas ideológicas e equacioná-lo no tempo, para termos uma perspectiva espácio-temporal que nos ajude a medir proporcionalidades e tentar compreender os fenómenos.
A mim, intriga-me e instiga a minha curiosidade, por exemplo, que no extraordinário curto período de cerca de 60 anos, numa época sem TV, de analfabetismo generalizado, muito longe das comunicações do nosso tempo, o marxismo, os movimentos sindicais, as lutas e reivindicações dos trabalhadores se tenham generalizado e disseminado por toda a parte, com grande sucesso.
E que, o muito que a esses movimentos devemos, apesar dos custos de revoluções, guerras e conflitos de todo o tipo, tenha sido tão facilmente ofuscado e ignorado numa época em que dispomos de meios sofisticadíssimos de comunicação social.
Parece que as condições que explicam o sucesso daqueles movimentos socialistas foram sendo afastadas a tal ponto que o sucesso desses movimentos ditou que perdessem algum do seu sentido, como alguém que abandona a medicação por se sentir curado.
Ora, estamos a assistir a um recrudescer das infecções por abrandamento de anticorpos.
É certo que já não estamos nos alvores da revolução industrial e da exploração do proletariado e que podemos contar com um armário cheio de medicamentos e de terapias. Os próprios vírus sofreram mutações irreversíveis.
Tudo isto exigirá que se actualizem os antídotos, uma vez que as vacinas já não produzem efeitos.
terça-feira, 20 de setembro de 2022
Elogios
Elogio a pluma
Que toca a tua face
A rapsódia de luzes
Do teu cabelo
O disfarce
No escuro dos teus olhos
Submersos acenos
Do fino traço
Da tua silhueta
Dardos pestanejam
De estrela para planeta
Recados sem venenos
De uma caneta
Da espessura da boca
Elogio a seda
Da tua nuca
A escorregar dos ombros
Para o dorso
Destapando íntimos contornos
Ao suave decalque
Dos dedos
Num código tátil
Que abre
Sem quaisquer medos
Algemas secretas
Túmidos fonemas
Numa excitação desenfreada
Elogio as tuas pernas
No centro da tempestade
Bonança de poemas.
terça-feira, 13 de setembro de 2022
Perfeito só Deus
Até a ideia de perfeição está longe de ser perfeita.
Deus tem de ser perfeito, porque não seria Deus se o não fosse.
Mas isto é circular, é o homem a inventar a hipótese de um absoluto que devia existir.
Deus foi criado porque devia existir.
Mas, tal como a perfeição, não existe.
Faz
falta? Não sei se faz e não temos outro remédio senão tentar fazer aquilo que é preciso, tanto do ponto de vista dos juízos de ciência, como dos juízos estéticos,
éticos, morais e religiosos.
Aliás, e esta é uma teoria inovadora, que estou a trabalhar e a testar desde há algum tempo, o homem, quer como indivíduo, quer como pessoa individual, escolhe
o melhor em todo o tipo de situação em que poderemos falar de escolha, racional, consciente, ainda que a melhor escolha não seja boa e, muitas vezes, seja má.
Parece-me plausível que
a noção de perfeição tenha sido trabalhada e cultivada sistematicamente na esfera do entendimento do que sejam as virtudes e como prato forte da moral religiosa e das teologias, incluindo as pagãs.
Ao
entrarmos nesse capítulo, vamos abrir a porta a um museu em que podemos entrar para aprender sempre muito, até da história dos homens que acreditaram que a perfeição é algo que já
existiu, que tem vindo a degenerar sucessivamente e que até Deus não consegue, ou não quer remediar, convivendo com a imperfeição de todas as coisas, excepto dele próprio, o que parece
ser insólito.
De acordo com a teoria que estou a desenvolver, tudo parece mais simples e coerente se aceitarmos que não há cultura para além da humana, que só o homem dá sentido
à realidade, que nenhuma outra realidade senão o homem dá sentido ao homem e que as escolhas do homem são as melhores.
Se assim for, estamos naturalmente determinados a uma melhoria tendencial,
por via dos nossos actos individuais e das deliberações sociais a que não chamaria progresso, mas efeito de vivermos sob a égide do dever-ser, no sentido em que, para o homem o ser é o que
deve ser (categórico, por imperativos de verdade, de necessidade, de lógica, hipotético, nas situações em que as escolhas têm como critérios meras crenças, de ordem estética,
ética, moral, política, económica...).
segunda-feira, 29 de agosto de 2022
A democracia dá muito trabalho
A democracia pode ser sempre mais democrática, mas o liberalismo, o socialismo, o comunismo, as religiões, não são democráticos. Diferentemente destes, a democracia não é doutrina.
A democracia é o que permite e obriga à coexistência do que, sem essa coexistência, a democracia não existia. Todos os poderes tendem a usar a democracia para a aniquilarem.
No fundo, ninguém, nenhum partido, nenhuma doutrina política, nenhuma igreja, é democrática, ou, se o são, é porque não têm outro remédio.
Apesar disso, a democracia, entre nós, e por notáveis pergaminhos nos EUA, tem sido capaz de obter as mais cínicas declarações de amor, de todos os partidos, com destaque dos partidos comunistas, que se aproveitam dela, enquanto puderem, enquanto ela o permitir.
A democracia tem estado debaixo dos ataques de todos e há cada vez mais loucos que acreditam que acabar com a democracia é uma verdadeira expressão de democracia, mas isso já é uma subversão dos termos, é pretender anular a evolução das realidades políticas e regredir para épocas anteriores às grandes conquistas da cultura.
A democracia, o estudo da democracia, devia ser uma disciplina para ser trabalhada numa perspectiva científica, como se estuda, por exemplo, o Direito do Direito.
sexta-feira, 26 de agosto de 2022
Falar de amor
Quando nos encontramos
Já tinha percebido
Que não iriamos falar de amor
Porque não sabíamos como
Senão ficarmos a olhar
As palavras não faziam falta
Não havia perspectiva
De nós próprios
Nem do que é amar
Os silêncios ancoravam
Naquele bar sem música
Sem imaginação
Sem perspectiva nenhuma
Quando estávamos a olhar
Se viessem os ensurdecedores
Com foguetes e tambores
Sairíamos daquele lugar
Em que nos encontrávamos
De mãos dadas
E só pararíamos nalgum sítio
Por alguma razão que desconhecemos.
sábado, 20 de agosto de 2022
Não há sonhos que o sejam mais
Todos temos os nossos momentos únicos
Os nossos tempos de glória divertida
Para recordar e fazer a história
Depois vêm outras experiências
Demonstrar que todos estiveram no centro
Do que vale a pena ou já não vale a pena
Recordar
E é triste perceber que não somos especiais
Porque cada um é especial à sua maneira
Com a história que ninguém sabe contar
Ou simplesmente não conta
Porque não conta
Senão para si próprio
Mas nada impede
E nada dispensa
Nem substitui
A própria narrativa da vida
Não há duas iguais
E os sonhos não se trocam por nada
Nem há sonhos que o sejam mais.
sexta-feira, 19 de agosto de 2022
A criação e a descrição dos processos criativos
Quando ficarem descritos e conhecidos e explicados os processos criativos, continuar-se-á sem saber e sem poder prever o que vai ser criado. E isto já era assim, quando no princípio era o verbo (dos processos criativos).
Até as descobertas científicas com mais repercussão nos nossos tempos, não criaram as coisas existentes mas deram-lhes uma "existência", ou representação, que elas não tinham. O que, por exemplo, Newton e Einstein descobriram, e que corporizaram nas suas teorias, não são realidades novas, não são naturezas novas. São realidades culturais novas (e nesse sentido são naturais, porque são humanas), entendimentos sobre realidades que talvez já existissem, acontecessem, funcionassem, muito antes do aparecimento do homem.
Até que ponto esses entendimentos, representações, modelos explicativos, podiam ter sido outros, ou serão substituídos por outros, é um dos aspectos mais intrigantes e fascinantes da aventura do conhecimento.
E é, no fundo, o intrigante e fascinante funcionamento da relação entre realidade, linguagem e conhecimento, ou, de como é viável falar de realidade senão pela linguagem e que conhecimento é esse.
sábado, 13 de agosto de 2022
Seca e sede
Este ano tem sido seco
Como a eternidade
Não há palavras que molhem
A palha que arde
Nem chuvas que deem de beber às fontes
Que têm sede
De verdade.
quarta-feira, 27 de julho de 2022
Inteligência A./consciência A.
Estou até convicto, embora não convencido, de que a inteligência artificial, sob todas as suas formas (pelo menos as que eu suponho), veio incrementar extraordinariamente os processos de inteligibilidade e de inteligência e de consciência humanos.
sábado, 16 de julho de 2022
Valores da literatura
Os autores, para mim, são indissociáveis das obras. E, acima de tudo, a literatura é o paradigma da liberdade, tanto na perspetiva do autor, quanto na perspetiva do leitor.
Mas, para isso, para ser paradigma da liberdade, não pode ser uma literatura ao serviço de uma propaganda. Quero dizer com isto que literaturas há muitas e que não me interessa por aí além uma literatura militante, pré-feita, ou pré-formatada, por mais habilidoso, criativo ou genial que seja o escritor a manusear conteúdos e formas e formatos.
Divulgadores de cartilhas ideológicas, militantes de qualquer espécie, doutrinadores e pregadores talentosos capazes de nos fazerem chorar contra nossa vontade e de até nos fazerem termos vergonha disso, como se tivéssemos sido hipnotizados, não há muitos, se é que os há, mas não me seduzem.
Isso de tocar violino num serrote, pode fazer-me arrepiar e até aguar dos olhos, como me acontece nos funerais, mas não é a arte da minha vida.
Há autores de quem gosto e, independentemente das histórias e dos enredos que contam, que pouco me interessam, me transmitem visão, inteligência, humanidade dos bichos e desumanidade dos deuses, irrelevância dos anjos, bravura dos touros, integridade dos burros, coragem dos ignorantes, força dos destemidos, paixão dos simples e ingénuos, espírito guerreiro dos ofendidos, insubmissão dos maltratados, revolta dos empobrecidos, inconformismo dos caluniados, capacidade de abnegação, pela verdade, pela autenticidade, pela justiça e pelo direito, contra tudo e contra todos, sem cedências a partidos, religiões, conluios, arranjinhos e trapaças palacianas ou de alcova, que não perdoam a ninguém que seja um verme, quer ele esteja nas instâncias superiores dos intocáveis, ou não. Se fossem feras eram puras, respeitáveis como leões, ou águias, ou serpentes, que não fazem mal a uma pomba, mas são implacáveis e inclementes com eles próprios, segundo os seus critérios, ainda que só em ficção.
Quem não sonha passar num crivo destes?
Autores que ousaram, ou ousam, enfrentar os poderes, todos os tipos de poderes, seja o poder do sexo, ou do dinheiro, ou das armas, da democracia, ou da ciência, ou da religião, mesmo sem esperança de os vencerem?
Que, inclusivamente, ousaram, ou ousam, enfrentar os poderes da literatura?
Autores que foram vencidos por ela, e ainda bem?
Não só pelos poderes da literatura, mas pelos seus valores, que não cabem na frincha de nenhum mealheiro?
sexta-feira, 1 de julho de 2022
Poderá um professor ensinar mais do que aquilo que sabe?
Poderá um professor ensinar mais do que aquilo que sabe?
Ou um aprendiz aprender só aquilo que o mestre lhe ensina?
Nenhum aprendiz aprende só o que o mestre lhe ensina, nem tudo o que o mestre lhe quer ensinar.
A maior parte das vezes temos aprendizes que aprendem de inúmeros mestres.
Muitas vezes aprendem com os próprios pensamentos e com a própria sombra, com o eco dos próprios erros.
A questão é então sobre o que se pode e deve potenciar num processo que é inevitável porque é natural.
A base da educação e do ensino é a ideia de que se deve socializar e integrar o indivíduo num determinado sistema social e económico, político e religioso, de modo a torná-lo funcional e proveitoso para o sistema e para si próprio, evitando que ele possa vir a ser um problema para si próprio e para o sistema.
Parte-se da ideia geral e abstracta de que há princípios e valores em que todo o indivíduo deve ser educado e que, desde que os respeite, tem toda a liberdade para agir.
Entre esses princípios e valores estão a honestidade, o trabalho, o respeito, o jogo limpo, a solidariedade e o mérito.
Mas há toda uma casta de valores que, numa cultura de exacerbação da esperteza e da inteligência na viciação do jogo, para disso tirar proveito, não propriamente indevido, mas inacessível ao comum dos mortais, não fazem parte do cardápio de aprendizagens e de práticas institucionalizadas. Ou seja, a escola, a igreja, o tribunal, a catequista, o partido, o professor, o mestre-escola, as estruturas distribuidoras do sentido do dever, cumprem a função de ensinar e educar para as regras dos jogos, ou para as leis da natureza, mas dificilmente, ou nunca, ensinam e preparam para o jogo, para os negócios, para as posições de vantagens e como tirar desforço de um golpe do adversário.
O desfasamento da escola relativamente à vida é brutal quando de um lado da corda estão os mais nutridos e desinibidos traficantes/negociantes de milhões e do outro os anémicos e anacoretas alquimistas, ou lunáticos alfarrabistas.
E não estou a dizer que estes não sejam os activos realmente importantes para os negócios daqueles.
segunda-feira, 13 de junho de 2022
Máquinas pensantes que sentem
A máquina pensante assemelha-se em tudo a um estômago triturador, cujos refluxos não dependem da vontade, por mais incómodos e indesejáveis que sejam. Mas, com ou sem refluxos, a máquina aprende sempre e aprende com tudo.
sexta-feira, 3 de junho de 2022
Todas as ciências são ciências do homem
Há que evitar uma tentação, que é uma tendência dos processos de pensamento, de tomar a análise pelo analisado e, daí, fazer todo o tipo de inferências, ou colocar um computador a fazê-lo, ad aeternum, no éter.
Uma sugestão, para o desafio colocado pela ideia de uma hierarquização dos conhecimentos e das ciências, é partir do princípio de que, realmente, todo o conhecimento, todo o discurso, toda a ciência, são humanos e que todas as ciências, em última instância, são tentativas de responder a questões e resolver problemas do homem.
Neste sentido, todo o conhecimento é "antropologia" e a importância das ciências deriva do serviço ou da utilidade que elas possam ter para o homem, para a sociedade, para a humanidade.
Neste sentido, seríamos tentados a considerar que nenhuma ciência é tão importante e relevante para o homem como o é a antropologia, ou, em geral, as ciências humanas e sociais. Continua a ser válido o brocardo antigo "conhece-te a ti mesmo" como algo cuja importância não pode ser diminuída nem substituída.
Só que, como referimos, todas as ciências existem e concorrem para esse conhecimento, apesar de enfoques específicos de cada uma sobre a realidade.
O nosso modo de conhecer é descontínuo e é em diferido, mas a realidade não.
sábado, 30 de abril de 2022
As democracias dão muito trabalho
Mas as democracias, que mais de metade do mundo nunca experienciou e que quase não sobreviveram ao hitler e ao staline e outros de igual vocação, baralharam, deram cartas, jogaram dentro das regras, tiveram paciência para enfrentar os desafios e as ameaças, suportaram todas as pressões, e ganharam aos batoteiros, usurpadores sem vergonha, nem princípios, e sem moral, que apostaram tudo na violência demolidora e mortífera e na crença da sua posição dominante.
As democracias são mais fortes do que parecem. Mesmo derrotadas pela força das armas, mantêm-se invictas pela força propagadora e indomável da moral que estará sempre onde estiver um humano (que não seja uma besta candidata a besta do apocalipse).
domingo, 17 de abril de 2022
Fala o almirante
quarta-feira, 13 de abril de 2022
Aproximações à verdade XVIII
Hilário: estou a pensar no sofrimento, na função que desempenha
Amiga: só os seres vivos sofrem
Hilário: sofrer e sentir são duas funções biológicas complementares
Amiga: sentir dor, mal-estar, é indissociável de sentir bem-estar, alegria, satisfação
Hilário: viver é estar nessa tensão, nessa adaptação constante a graus e tipos de satisfação que não têm de ser dolorosos, mas que podem ser extremamente dolorosos e até insuportáveis
Amiga: o homem tem desenvolvido uma cultura de prevenção de situações em que, por exemplo, a privação de bens essenciais, de água, de alimentos, de cuidados de saúde e de protecção contra as intempéries, seriam rapidamente muito dolorosas e insuportáveis, causando imenso sofrimento
Hilário: mas não é apenas para evitar desconforto, dor ou sofrimento que a cultura produziu mecanismos de prevenção e defesa, grande parte da cultura é um acervo de atividades e de objectos e de formas de dar satisfação aos nossos desejos e vícios, ao prazer pelo prazer
Amiga: nesse caso, o desejo aparece como desconforto e, ao mesmo tempo, como antecipação da satisfação que se obteria ou obterá e, se for muito fomentado, se se tornar obsessivo, pode ser fonte de dor e de sofrimento, moral e físico
Hilário: um prazer, ou uma fonte de prazer, nessas situações transforma-se num desprazer ou numa fonte de sofrimento, como acontece nos vícios
Amiga: parece que estar vivo é um processo em que, por desconforto, mal-estar, ou sofrimento, ao buscar satisfação e ao obtê-la, o ser vivo passa para um estado temporário, relativamente breve e passageiro, de homeostasia
Hilário: se este estado não fosse passageiro, se fosse definitivo, isso corresponderia à morte, ou a um estado fantasmático de consciência sem corpo, em que as religiões do espírito acreditam, mas que ninguém sabe o que é
Amiga: um dos aspectos mais interessantes e preocupantes dessa condição dos seres vivos, em geral, e do homem em particular, é que a dor e o sofrimento têm sido instrumentalizados, ou usados como meio de dominar e de controlar e de obrigar e de sujeitar os seres vivos e os humanos
Hilário: é como se o desconforto, a dor e o sofrimento, e não apenas os desejos e as ambições e os vícios, fossem uma espécie de moeda de troca em relações humanas mercantilizadas
Amiga: mas quando se chega ao ponto de provocar dor e sofrimento e morte, em pessoas que se sentem bem, que estão em paz, porque dessa forma se pretende obrigá-las a realizar algo que elas não querem, nem devem fazer, para satisfação, por exemplo, de um objectivo político-militar-económico de um grupo, ou de uma organização, estadual, ou outra, creio que se atingiu um pico de sordidez e de imoralidade e de aberração, que excede tudo
Hilário: isso é a manipulação perversa das nossas funções biológicas, como a função do sofrimento, que referi no início.
Amiga: nada é tão odioso como a guerra
Hilário: nada é tão nobre e sublime como a guerra defensiva
Amiga: e o que dirias do contra-ataque?