segunda-feira, 22 de julho de 2024

Ainda sobre o problema da existência/essência

Entende-se melhor o problema da existência/essência, reportado ao existencialismo e às doutrinas existencialistas, se considerarmos a existência como existir (facto natural) e essência como ser (pensamento sobre o facto de existir). 
A essência é da ordem da cultura, do pensamento, do intelecto, do conhecimento, do discurso epistemológico, científico. 
De qualquer modo, estamos perante duas faces da mesma moeda transparente. 
Ao pensarmos na essência da existência, estamos a existir, ou seja, estamos a ser aquilo que queremos "definir", mas que ainda é um processo em curso. A existência está a "produzir" a essência. A essência não será, ainda assim, diferida em relação à existência. Isto seria ilusório, porque o "ser diferida" não quer dizer que não existe como tal, que não é o modo de ser da própria existência. Salvaguardadas as devidas diferenças, se, por exemplo, um cão tenta apanhar a própria cauda, isso não pode ser visto como um cão em que a cauda precede o focinho, ou vice-versa. 
A questão é que o cão tenha consciência da ilusão de que é vítima, ou em que incorre. 
O existencialismo ressalta o facto de que, se, com mais ou menos consciência, tu existes, então, o busílis da questão,  está na consciência.
                    Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 16 de julho de 2024

A controvérsia


Lá está a controvérsia

Por acaso

Controvertida

De sempre amiga

E controvertível

Em versos e inversos

Dis e indis ponível

Nas luas da idade

Vaga mente opo nível

A questão é essa

Se é possível que algo

Faça perder a cabeça

Ainda que nos saúde.

      Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 28 de junho de 2024

Perdigão perdeu a pena não há mal que lhe não venha


Quando Camões regressou da Índia e aportou em Cascais a bordo da nau Santa Clara em 7 de abril de 1570, já não via Lisboa, desde 1553 e teve de esperar umas semanas, antes de desembarcar, por causa da peste que grassava em Lisboa. Quando aqui chegou, os cenários, com que deparou nas ruas , eram do mais tétrico, o número de mortos e de mascarados, com máscaras em funil, que tornava as coisas ainda mais tenebrosas, era aterrador e, ainda assim, tinha a vaga esperança de reencontrar a mãe viva. Esta, se o fosse, provavelmente, não o esperava, nem o reconheceria e tê-lo-ia por morto.
Caminhava com uma pequena bagagem, de manuscritos, que lhe era preciosa. Ia no sentido do sítio onde vivera, antes de partir, para a longa viagem de navegação, há 17 anos. Depois de ter indagado um moribundo, na esperança de ouvir dizer que sua mãe estava viva, parou um pouco a cismar e sentou-se num degrau a meio das escadas que lhe traziam lembranças complicadas... Isto daria um romance, não é?
A máscara até não é muito difícil de aceitar, já nesses tempos em que as epidemias impunham quarentenas.
Camões foi, realmente, um perdigão azarado. De mal a pior, não sabemos com que estado de espírito acompanhou a azáfama, as incertezas e agoiros que estalaram nos preparativos da campanha para a batalha de Alcácer Quibir, que viria a ser travada no norte de Marrocos perto da cidade de Alcácer Quibir, entre Tânger e Fez, em 4 de agosto de 1578, nem como viveu e comentou essas graves crises, como podemos supor que o fizesse. Também não sabemos o estado de espírito com que soube da derrota portuguesa, com o desaparecimento em combate do rei D. Sebastião e o aprisionamento ou morte da nata da nobreza portuguesa. 
Na falta de qualquer registo escrito do próprio Camões, ou de testemunho de declarações, ou de posições que tivesse tomado acerca de assuntos tão relevantes e tão graves para o reino de Portugal, não deixam de abrir-se à nossa imaginação esses dolorosos e trágicos tempos, que já lhe não coube, como grande poeta, tratar, apesar de os ter vivido com grande proximidade e presumível sofrimento, pelo sentimento de perda e desaire brutal que se abateu sobre os portugueses, cerceados assim os últimos laivos de pretensão à glória pátria da expansão trágico-marítima dos egrégios avós. E ainda assistiu à crise política e às lutas de sucessão ao trono, com a consequente perda de independência de Portugal, em 1580, ano em que morreu, dez anos após o seu regresso do oriente.
Uma biografia com um balanço em que as dificuldades, o sofrimento e a tragédia, mormente dos últimos dez anos da sua vida, levaram de vencida o homem, mas não obliteraram a obra.


quinta-feira, 20 de junho de 2024

Eclipses


O eclipsar das luzes

Não é para todos os olhos

E dura o instante

Impecável

Da geração do escuro

Todos têm acesso

A uma lanterna

Na escuridão

Que dura um tempo

Suficiente para criarmos

Todas as fantasmagorias

Até os quadros mais antigos

Retratam a decadência nascente

Do que virá a ser

Decadente

Até as fotografias captam

O instante

Em que as luzes deixam

De iluminar

O momento seguinte.

                               Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 31 de maio de 2024

A lira

Quem se deixa tocar pela lira começa por ser surpreendido pelas palavras e não deixará de se render ao seu fascínio e poder de efemeridade, mesmo quando este é o reverso intangível dos decretos.
Ao eclipsar-se, por amor da relativa arbitrariedade das sentenças, trafega promessas de além e acústica vocabular, em toada de pregoeiro oculto, afinando em realejo de sonoridades arrepiantes, critérios de um fruto estético que, rogada e avaramente, haverá de surtir poético.
Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Se desvelam

Se desvelam

É muito mais o que

A si revelam

Se aos olhos

Mostram

Promessas

Talvez só

Na imaginação

A pujança

Tão delicada

Da dança

Dos sentidos

É uma explosão

Tão subtil e disfarçada

Que nem parece

Que não estão

A mostrar nada.


Carlos Ricardo Soares