sábado, 23 de outubro de 2021

Democracia e Cultura (visível e escura)


O tema Democracia e Cultura é susceptível de árdua, mas muito proveitosa ponderação e análise, no âmbito da democratização, seja da cultura, seja da própria organização política, que o é da cultura, se considerarmos, como eu considero, que cultura é acto humano, tendo em mente que acto é uma forma de manifestação do indivíduo humano, racional, voluntária, consciente, num quadro de possibilidades das quais ele escolhe a melhor. 

A cultura é isto. É tudo aquilo que a humanidade, através dos indivíduos que a constituem, produziu, de alguma forma objectivada, em sons, imagens, sinais, artefactos, enfim, meios de comunicação, construções, marcas, registos, efeitos, resultados, intencionalmente, exercendo uma escolha, numa panóplia de possibilidades, entre as quais, escolher não escolher, conquanto as não escolhas não tenham originado cultura, por falta de objectivação. Essa matéria escura da cultura, ainda hoje, até pode ser mais abundante e determinante do que a outra, que se manifesta em acto de objectivação, mas não deixa rasto.

A organização política da sociedade, pela sua própria natureza, é cultura que se objectiva. E entre os seus desígnios está alargar ou encolher o horizonte de possibilidades de escolha, sendo que a possibilidade de o indivíduo escolher não escolher, está sempre presente, quer o indivíduo tenha consciência, ou não, de que não escolher tem implicações, corresponde a uma escolha.

Democratizar a cultura faz sentido, até porque, se a cultura é produzida pelos humanos, nem todos os humanos produzem cultura em igual medida e nenhum humano produziu ou produz a cultura toda. De igual modo, nenhum humano tem acesso à cultura toda, senão a uma pequeníssima parte.

A democracia, porém, enquanto domínio da expressão da maioria, exprime os interesses dessa maioria como eles se configuram no quadro de possibilidades vigente. A democracia, por si só, não altera o quadro de possibilidades, porque este é uma das limitações, condições, da democracia. 

E democratizar a cultura não significa, nem corresponde a produzir cultura democraticamente.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

A realidade como ela é


Não nos basta bater com a cabeça na parede para podermos responder às questões do que é a realidade, se a parede é real, se o que pensamos é real e se essa realidade é como é, se tem de ser como é, se sempre foi o que é e se alguém sabe se será e o que será, etc..

O título do livro, o mundo como ele é, do físico sueco Ulf Danielsson, independentemente daquilo que o autor defenda, é sintomático de que estamos perante um problema de magnitude filosófica e científica, mas não nos permite esperar que o mundo seja “como ele é”, a não ser no sentido em que “o ser” do mundo é “não ser como é”. E não apenas num plano estrito de processo ou de possibilidade de provar o que se diz, o que reduziria o problema a uma limitação teórico-científica. O ser do mundo é não ser como é, essa é a sua realidade. Nenhum fenómeno se repete. Nada ocorre duas vezes. Neste ponto, mesmo as experiências e verificações científicas reconhecem uma dificuldade.

A necessidade de explicar como é que o mundo é não parece ter tanto a ver com as aparências de ser (que são) mas sobretudo com o que parece mas não é (parece mais uma contradição).

Os filósofos sabem-no desde que reflectiram sobre a natureza, pelo menos desde os jónicos e os cientistas, nomeadamente os físicos, parece saberem-no melhor do que ninguém, não apenas ao tentarem saber como as coisas (realidade) funcionam, mas também ao tentarem explicar porque é que funcionam assim, se sempre funcionaram e se funcionarão.

Há pelo menos duas questões que podemos colocar para experimentar as dificuldades com que deparamos no tocante à realidade: saber/dizer/declarar o que é “isto” e provar/demonstrar o que se declara. À dificuldade de responder à questão, concreta, por exemplo, “isto é uma pedra?”, acresce a dificuldade de provar e demonstrar. Normalmente, as pessoas não questionam, nem discutem se a parede existe ou não, se é real ou não. O que tem suscitado discussão é “o que é a parede?” e a prova e demonstração do que se diz. Não é se a parede está lá. Os físicos também não discutem se existe o sol e a terra. Mas a questão não me parece disparatada.

Voltando à questão de saber “o que é isto?”, os cientistas têm dado um imenso contributo, é certo, mas ainda não chega, como se pode ver do facto de a física manter em aberto questões fundamentais sobre a realidade física. Mas também temos de considerar a existência de realidades que os físicos não estudam, como os pensamentos e os sentimentos e a biologia que, ao que parece, não deixam de ser realidades físicas, ainda que mais efémeras umas do que outras.

Não obstante, e isto toca com o problema de o mundo “ser como é”, se fossemos capazes de responder à questão “o que é isto?” e de o provar, essa resposta, provavelmente, teria de responder às outras questões “o que isto foi?”, “o que isto será?”, sabendo nós, por experiência, que, na realidade, mesmo para os físicos, se há um modo de ser das coisas esse modo de ser é que elas (mesmo se sabemos como foram), não são como são, nem sabemos como serão.

Haverá forma de saber se este problema se resolveria se um poder para isso suspendesse o movimento dos corpos (e das partículas, ou cordas, ou outra coisa desconhecida, cancelando a gravidade, a força electromagnética e as forças nucleares)? Os cérebros não seriam suspensos também?


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A toque de caixa

Ao toque de tambores e de clarim. Muitas batalhas foram perdidas porque o fragor dos ferros e dos gritos não permitiram que os combatentes ouvissem os toques da ordem. Ficavam assim à mercê do inimigo, desorientados, em vez de fugirem, resistiam, mas sem rectaguarda, ou fugiam desordenadamente na direcção errada. A comunicação, nas batalhas, sempre foi um dos pontos chave e mais difíceis de conseguir e de coordenar, sobretudo antigamente, em que os sinais sonoros para chegarem às tropas, não deviam confundir-se com os sinais do inimigo, perderem-se no espaço ou serem distorcidos pelo ruído produzido durante a batalha. A comunicação é, se prestarmos alguma atenção ao problema, o calcanhar de Aquiles, da  guerra como da paz.

A guerra é para especialistas, como a ciência é para especialistas, mas as técnicas e os combates são para todos. À ciência não pode ser imputada nenhuma responsabilidade. A pólvora não tem culpa de ser explosiva, nem as máquinas têm culpa de demolir, nem o fogo tem culpa de devorar e liquefazer tudo, até um certo ponto. Nenhuma droga, ou aeronave, podem ser responsabilizadas dos danos que causam. Assim como um cão ou um vulcão. Mas podemos sempre tentar metê-los a todos numa prisão. Só que, enquanto o homem continuar a existir, à solta, ou não, vai ser obrigado a lutar pela sobrevivência e isso tem de ser colectivo. Infelizmente, a humanidade não tem sido muito bem-sucedida na tentativa de fazer o melhor. A natureza, incluindo a humana, é indócil e rebelde, para não dizer inábil, relativamente a uma bondade objectiva dos nossos actos construtivos, tantas vezes com imenso trabalho e sacrifício. Afinal, temos andado a construir destruindo, ou a destruir construindo? Quanto das construções são destruições irreversíveis? E como remediar e evitar continuar?

É preciso trabalhar arduamente para que tudo continue na mesma, e não se consegue. Mas para que as coisas mudem, basta não fazer nada.

A ciência não tem defeitos morais, é como a sabedoria, e como Deus. São bons por definição e não são virtuosos, em sentido moral, porque virtuoso é atributo moral de acto humano. Não fazem e nunca fizeram mal a ninguém. São edifícios ideais, abstractos,

Já a guerra tem de ser vista de outro modo e noutra perspectiva. A guerra é actividade humana, conjugada para infligir mal. Se porventura alguém faz ciência para infligir mal, não é o acto de fazer ciência que faz mal, mas o acto de guerra, em intenção ou execução consequente.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Quem não gostaria de saber?

Não pretendo, nem seria capaz de dizer o que a universidade é, ou foi, nem o que pode ser, nem o que deve ser e, menos ainda (se é que tal é possível), o que será. Pretendo dizer, simplesmente, que não acredito que haja alguém capaz de o fazer. E creio que não estou a jogar com as palavras para além do significado que elas, prosaicamente, comportam. Claro que a minha opinião, corresponda ou não à minha crença (tantas vezes se afirma uma coisa e se pensa outra), não vale pelo que penso, mas pelo que significa.

Neste caso, o que ela significa é anódino (cada um acredita naquilo que lhe aprouver), enquanto não apresentar razões plausíveis para afirmar o que afirmo.

Para que não seja completamente gratuito, admitindo que não é de tal modo óbvio o porquê de «não acreditar que haja alguém capaz de o fazer», passo a esboçar meras presunções.

Se para dizer o que é uma pedra não basta a ciência toda, nem a filosofia toda, nem toda a poesia, pode ser uma simples pedra no sapato, ou na cabeça, em forma de um rei, ou de pavimento, pedra angular, pedra preciosa, parte de um todo desconhecido, que não pode ser deduzido dela, que não existe sem ela, não sabendo nós se subsistirá o significado que ela tem para a ciência, para a filosofia, para a poesia e, inerentemente, para o homem, se este desaparecer, quanto mais não será necessário para dizer o que a universidade é? Haverá alguma ciência, ou interconexão de ciências que nos disponibilize a representação do que a universidade é de um modo pelo menos tão claro como é possível representar os ambientes em que terá surgido a vida?

Se é difícil ou impossível dizer o que uma coisa é, quanto mais difícil não será dizer o que ela foi?

Se não sabemos responder a nenhuma destas perguntas, como saberemos o que a universidade pode ser? E se não soubermos o que pode ser, que sentido faz dizer, ou até pensar, o que deve ser?

E quanto ao que será? Quem não gostaria de saber?