sábado, 30 de abril de 2022

As democracias dão muito trabalho

As democracias dão muito trabalho, têm muitas fragilidades, demoram muito tempo e, embora sejam castradoras de bestas, até das que se arvoram em besta do apocalipse, ou em dragões demolidores, que vomitam fogo de mil maneiras ardilosas, ao mesmo tempo que abalam, com o poder das bombas, os sítios onde os humanos vivem e constroem a humanidade, nem por isso elas, as democracias, têm conseguido evitar e menos ainda impedir que as bestas, aspirantes a besta do apocalipse, se saciem de sangue até arrotarem de sadismo e isso ser uma passagem vaidosa e triunfal pelos palcos das maiores tragédias no teatro de desumanidade e ódio, que diverte as bestas e em que estas desejam transformar o mundo .
Mas as democracias, que mais de metade do mundo nunca experienciou e que quase não sobreviveram ao hitler e ao staline e outros de igual vocação, baralharam, deram cartas, jogaram dentro das regras, tiveram paciência para enfrentar os desafios e as ameaças, suportaram todas as pressões, e ganharam aos batoteiros, usurpadores sem vergonha, nem princípios, e sem moral, que apostaram tudo na violência demolidora e mortífera e na crença da sua posição dominante.
As democracias são mais fortes do que parecem. Mesmo derrotadas pela força das armas, mantêm-se invictas pela força propagadora e indomável da moral que estará sempre onde estiver um humano (que não seja uma besta candidata a besta do apocalipse).

domingo, 17 de abril de 2022

Fala o almirante

O almirante falou
Fala o almirante
Todos os cemitérios são iguais
Por mais que tentem ser originais
Por mais que tentem ser mais
Todos têm uma entrada
Sem regresso
Franqueada aos mortos
E só aos mortais
Que fazem os funerais
Os cemitérios parecem tristes
De mais
Os cemitérios não sentem
Nem dizem nada
Não têm culpa nenhuma
De serem locais
Tenebrosos
Sobretudo o mar
Com suas sombras onduladas
Ao luar
Ao vento
Onde os mochos não piam
No silêncio nocturno.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Aproximações à verdade XVIII

Hilário: estou a pensar no sofrimento, na função que desempenha

Amiga: só os seres vivos sofrem

Hilário: sofrer e sentir são duas funções biológicas complementares

Amiga: sentir dor, mal-estar, é indissociável de sentir bem-estar, alegria, satisfação

Hilário: viver é estar nessa tensão, nessa adaptação constante a graus e tipos de satisfação que não têm de ser dolorosos, mas que podem ser extremamente dolorosos e até insuportáveis

Amiga: o homem tem desenvolvido uma cultura de prevenção de situações em que, por exemplo, a privação de bens essenciais, de água, de alimentos, de cuidados de saúde e de protecção contra as intempéries, seriam rapidamente muito dolorosas e insuportáveis, causando imenso sofrimento

Hilário: mas não é apenas para evitar desconforto, dor ou sofrimento que a cultura produziu mecanismos de prevenção e defesa, grande parte da cultura é um acervo de atividades e de objectos e de formas de dar satisfação aos nossos desejos e vícios, ao prazer pelo prazer

Amiga: nesse caso, o desejo aparece como desconforto e, ao mesmo tempo, como antecipação da satisfação que se obteria ou obterá e, se for muito fomentado, se se tornar obsessivo, pode ser fonte de dor e de sofrimento, moral e físico

Hilário: um prazer, ou uma fonte de prazer, nessas situações transforma-se num desprazer ou numa fonte de sofrimento, como acontece nos vícios

Amiga: parece que estar vivo é um processo em que, por desconforto, mal-estar, ou sofrimento, ao buscar satisfação e ao obtê-la, o ser vivo passa para um estado temporário, relativamente breve e passageiro, de homeostasia

Hilário: se este estado não fosse passageiro, se fosse definitivo, isso corresponderia à morte, ou a um estado fantasmático de consciência sem corpo, em que as religiões do espírito acreditam, mas que ninguém sabe o que é

Amiga: um dos aspectos mais interessantes e preocupantes dessa condição dos seres vivos, em geral, e do homem em particular, é que a dor e o sofrimento têm sido instrumentalizados, ou usados como meio de dominar e de controlar e de obrigar e de sujeitar os seres vivos e os humanos

Hilário: é como se o desconforto, a dor e o sofrimento, e não apenas os desejos e as ambições e os vícios, fossem uma espécie de moeda de troca em relações humanas mercantilizadas

Amiga: mas quando se chega ao ponto de provocar dor e sofrimento e morte, em pessoas que se sentem bem, que estão em paz, porque dessa forma se pretende obrigá-las a realizar algo que elas não querem, nem devem fazer, para satisfação, por exemplo, de um objectivo político-militar-económico de um grupo, ou de uma organização, estadual, ou outra, creio que se atingiu um pico de sordidez e de imoralidade e de aberração, que excede tudo

Hilário: isso é a manipulação perversa das nossas funções biológicas, como a função do sofrimento, que referi no início.

Amiga: nada é tão odioso como a guerra

Hilário: nada é tão nobre e sublime como a guerra defensiva

Amiga: e o que dirias do contra-ataque?

sábado, 9 de abril de 2022

Aproximações à verdade XVII

Hilário: estou a pensar numa estratégia de controlo do riso
Amiga: de controlo do risco?
Hilário: ahahahah
Amiga: ahahahahahaah
Hilário: tento, todos os dias sem excepção, antes de começar a trabalhar, pensar em algo que me faça rir
Amiga: e consegues? Eu tento fazer uma pequena oração, diferente todos os dias
Hilário: quando não consigo, tomo isso como sinal de que algo não está a correr bem
Amiga: é por isso que eu faço uma oração, até é mais fácil nas dificuldades
Hilário: ahahahah
Amiga: ninguém consegue rezar e rir ao mesmo tempo
Hilário: nem chorar
Amiga: nunca tinha pensado nisso
Hilário: e ter dois pensamentos ao mesmo tempo, já experimentaste?