sábado, 23 de março de 2024

Formas de ser e de dizer

Correndo o risco de cair em contradições e de incorrer em dislates, aproveito para fazer um pequeno exercício verbal atinente ao problema académico das contradições, dos paradoxos e da lógica.

Ser e não ser, ser A e não ser A, ser A e não ser B, C, D...
Ser ou não ser, ser A, ou não ser A, ou não ser B, C, D...
Ser e poder ser, ser A e poder ser B, C, D...
Ser e não poder ser, ser A e não poder ser B, C, D...
Ser e dever-ser, ser A e dever ser B, C, D...
Ser e não dever-ser, ser A e não dever ser B, C, D...

Importa pensar que a palavra “ser” é um verbo, mas também é um substantivo, ou um adjetivo. E levanta um problema muito particular e curioso, em termos de racionalidade científica, não metafísica: o ser é o que é. Esta constatação da realidade impede-nos de considerações sobre o que foi e sobre o que será, porque estas remetem para o que não é, para o não existente.
Mas, sendo assim, não há nada que possamos dizer sobre o que quer que seja, porque tudo o que dizemos é em diferido, quer dizer, é sobre algo que já não é.
As questões de lógica são manifestações de racionalidade através de uma linguagem, através de uma codificação significante.
Penso que são fundamentalmente questões verbais, ser, não ser, poder ser, dever-ser, por exemplo, no que respeita a coisas (tenho na mão um objeto que designo de livro, mas é um copo. É falso o que digo, mas não é falso o objeto. Há aqui, nestas frases, um conjunto subentendido de operações racionais que poderíamos analisar e explicitar ainda mais em raciocínios lógicos, inclusivamente, para justificar o que digo).
Penso que a lógica é um processo de linguagem, seja verbal, seja numérica, ou outra, e tem a ver com a racionalidade, ou melhor, no caso dos humanos, a racionalidade é um processo consciente, embora seja automatizado em grande parte das operações de tipo mais abstrato.
Penso que, sem linguagem, embora exista racionalidade, não há lógica.
Ou seja, os processos racionais tornam-se lógicos, ou problemas de lógica, através da linguagem.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 11 de março de 2024

Como deve ser


Estamos habituados, culturalmente, socialmente, familiarmente, a que nos obriguem e nos digam o que devemos ou não fazer. Se há uma característica essencial ao ser humano é a de, quando atua, em consciência, em inúmeras situações com implicações sociais, não poder deixar de escolher entre possibilidades que não são indiferentes do ponto de vista da avaliação, ou dos valores sociais e respetivas consequências, quer para o próprio, quer para os outros. Em inúmeras situações, por outro lado, a premência da escolha não envolve nenhum problema dessa ordem. 
Os problemas surgem sempre que, numa situação de escolha, o indivíduo deixe de ter vantagens se escolher “errado”. Pode ser uma situação que envolva uma operação meramente lógica, ou de pura aritmética, ou uma situação que envolva outro comportamento propriamente dito, com implicações éticas, estéticas, económicas, desportivas, lúdicas, do trato social, em geral, ou das relações sociais particulares. 
Destas considerações eu retiro a ideia de que é pelos atos e apenas por estes que o indivíduo é responsável, o que condiz, aliás, com a prática geral das opiniões e dos julgamentos que vemos fazer, e é responsável na medida em que tinha o dever de agir de certa maneira, como devia ser. Isto tem o problema de dever saber antecipadamente o que deve ser a escolha e o problema de fazer essa escolha. Mas, do ponto de vista do fundamento, digamos, da ética, o problema é o de saber, se é que isso é possível, as razões do dever-ser, que não sejam razões práticas. E mais, se esse dever-ser, como está estipulado, é como deve ser e na perspetiva de quem. 
Neste ponto, quando dizemos que o próprio ser deve ser o que é, já estamos rendidos ao imperativo do dever-ser como algo que não é, ou ainda não é, mas deve.
Então, e numa conclusão esquemática, mas que tenho bem ponderada, para não me alongar mais, direi que, nem a ciência, nem a filosofia, e não apenas os comportamentos humanos, não estritamente cognitivos e intelectuais, escapam à regência, ou deixam de estar sob a égide da ética, no sentido de dever-ser. 
E, assim, quero dizer que os comandos normativos e os mandamentos, qualquer que seja a atribuição da sua legitimidade e autoria, eles mesmos também não escapam à necessidade lógica, de verdade, de retidão, de direito, de serem, em suma, como deve-ser.

 Carlos Ricardo Soares