"Ser feliz é uma actividade que requer toda uma vida e não pode existir em menos tempo" - Aristóteles, Ética a Nicómaco
sexta-feira, 22 de dezembro de 2023
O fotógrafo
quarta-feira, 6 de dezembro de 2023
Por mais que a tristeza
Elas são belas
por mais que a tristeza lhes turve os olhos
por mais que tentem esconder que o são
são
são belas mesmo que não gostem
e que prefiram ser o que não são
serem belas parece um mérito
mas é uma condição
por mais que a beleza parta o coração.
terça-feira, 21 de novembro de 2023
Bela ou feia
E ai de quem me contradisser, porque também será feio. Se formos para o tribunal, então o juiz que faça a justiça de aceitar ou rejeitar o pleito e de fundamentar a decisão.
Com esta brincadeira, estou a pensar na subjetividade dos juízos, por um lado, e na objetividade das sentenças, por outro. Os meus juízos estéticos, sobre a natureza, ou sobre os artefactos são o que decide se algo, na natureza, ou no artefacto, é belo, ou não, ou se é repulsivo, atraente, agradável, desagradável, etc.. Não é o juízo sentença da minha mãe, ou o do pintor dos diabos que vai decidir sobre a realidade das coisas, por mais efeitos que possa ter sobre o meu comportamento e por mais que condicione a forma como vejo as coisas.
Ou seja, o meu juízo estético opera sobre uma realidade cujas características não são belas, ou feias, antes de eu decidir. Nem estou a questionar se e porquê há formas belas ou feias, independentemente de o julgarmos.
Na realidade, não é por eu julgar uma coisa bela, ou feia, que ela o é. Ser bela ou feia não é uma característica da coisa, quando muito, é uma atribuição que eu faço. E isto não quer dizer que é uma atribuição arbitrária, ou que é aleatória. Não quer dizer que não tenha a ver com características da coisa.
Carlos Ricardo Soares
quarta-feira, 8 de novembro de 2023
Gente zangada não se ri
Gente zangada. Gente zangada não se ri. Mas já vi gente ganzada a rir como louca. Enquanto ri a gente não se zanga. Acontece o mesmo com o choro. Ninguém ri e chora ao mesmo tempo. Mas há personagens que têm afivelada a máscara do riso, do choro, da ira, da bonomia, da sonolência, da loucura, etc.. D. Quixote, por exemplo, não ria e não fazia rir. Sancho compreendia de tal modo o seu amo que nem tentava fazer graça.
Há uma autenticidade na expressão dos sentimentos
e das emoções, seja pela ira, seja pelo riso, ou pelo choro, pela euforia, pela estupidez, pela loucura, ou pelo mutismo, que não se compadece com zombarias ou com por a ridículo alguém,
porquanto isso é de mau gosto, é feio, e tem de maldade.
Gente zangada, gente animada, gente embriagada, gente drogada, gente alienada, gente feliz, gente pobre, gente desprezada, gente triste, gente galvanizada,
gente ilustrada, gente castigada, gente oprimida, gente do campo e gente da cidade, gente de armas, gente de fora e gente da terra, gente é uma palavra portuguesa do mais versátil que há.
Gente zangada
pode fazer jus à muito conhecida expressão “quem não se sente não é filho de boa gente”.
De qualquer modo, gente que gosta de rir dos outros, em geral, não suporta,
ou tolera mal, que se riam à sua custa. Não é o caso dos grandes humoristas, como Woody Allen que, preferencialmente, e por curiosa necessidade, riem de si próprios.
Aposto que Deus não
ri, nem tem sentido de humor, mas também não se zanga.
Carlos Ricardo Soares
sábado, 28 de outubro de 2023
Meter as palavras na ordem
As palavras podem ser nossas aliadas, mas a nossa desconfiança deve ser total.
Não acredito que alguém tenha o poder de meter as palavras na ordem.
Não te deixes conduzir pelas palavras.
Carlos Ricardo Soares
terça-feira, 24 de outubro de 2023
A ideia de inutilidade
A ideia de inutilidade, aplicada à filosofia, ou à poesia, ou à matemática e até à própria física, só colhe num sentido muito restrito de utilidade.
A nossa cultura científica, humanística, filosófica, artística, linguística, foi construída através do pensamento, da atividade pensante, do discurso legitimador e fundante dos valores, das normas, dos critérios, dos modos de proceder e de trabalhar e de governar e de fazer justiça e de falar...
Carlos Ricardo Soares
terça-feira, 10 de outubro de 2023
Saber ler
Não é apenas o saber ler, que é importante para descodificar a obra, é também o ato de leitura como um exercício, ou um investimento cultural, de aquisição, enriquecimento cultural, ou de mera jardinagem cultural, divertimento, ou passatempo.
Há autores que não escrevem para certos leitores. Nota-se claramente que não estão à espera (não devem esperar) que certo tipo de leitores (passe a expressão) leiam o que escrevem. Alguns livros não podem ser lidos senão por uma minoria de pessoas com muita erudição e experiência da vida. Independentemente do proveito ou do prazer, do enriquecimento ou satisfação que deem ao leitor, exigem repertórios e uma atenção que será raro encontrar. Ler, no sentido de ser capaz de ler qualquer livro, é para muito poucos.
A tentativa de escrever para o maior número possível de leitores, envolve a consideração de que a maior parte não se mete a ler para ficar mal disposto, cansado, frustrado, aborrecido.
Não vou desenvolver as veredas que nos levariam, por aí fora, acerca deste assunto já tão explorado e sempre surpreendente.
Vou apenas referir que há autores cuja leitura nos cansa quase tanto como os terá cansado a eles escrever, como se, constantemente, durante horas, tivéssemos que assistir ao suplício dos ciclistas que pedalam durante cinco minutos, para chegar ao alto de Nossa Senhora da Graça.
Outros aligeiram de tal modo as coisas que nos dão de bandeja, em duas frases, a notícia da vitória. Outros ainda, mais complacentes com a deles e a nossa preguiça, nem precisam de dar a notícia da vitória, uma vez que a vitória, nesses casos, está implícita, ou é suposto que exista.
O que é complexo não é o que escrevem é aquilo sobre o qual não dizem nada.
Quem escreve só é colocado perante o problema de escolher entre o que escrever e o que não escrever, se tiver sobre o que escrever. Depois há os poderes, ou competências, ou talentos, de como escrever e de saber se querem, ou podem, ser lidos, quando e por quem. Independentemente de terem à disposição canais de comunicação, divulgação, com potenciais leitores.
Carlos Ricardo Soares
domingo, 17 de setembro de 2023
Ninguém é obrigado a acreditar
Não acrediteis
ninguém é obrigado a acreditar
se acreditardes
saibais
que não sabeis
enquanto não verificardes
e se ajuizardes
ajuizareis
sobre o que imaginardes.
Carlos Ricardo Soares
segunda-feira, 4 de setembro de 2023
Alegria é isso
Algo faz acreditar
que a alegria é isso
um peixe a surfar
sem pensar nisso
epitáfio
na onda passageira
em que medito
sem me preocupar
com aquilo em que acredito
ou deixo de acreditar.
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
Hermenêutica
Por exemplo, o legislador faz textos, sob a forma de normas, mas não tem competência para os interpretar vinculativamente. Isto para mim é muito claro.
Se, por exemplo, alguém interpreta o que escrevo de um modo que me aparece inepto e sem apoio na letra, na lógica, no contexto e no sentido que é possível e legítimo esperar e exigir que um leitor normalmente competente reconheça, só me resta discutir isso e, embora seja eu o autor, não estou garantido só por isso de que o meu intérprete não tenha mais razão.
Há inúmeros casos, alguns que ficaram célebres, de autores que acabaram interpretados de vários modos sem que, ao menos, um deles correspondesse àquilo que eles diziam pensar e defender. E pouco, ou nada puderam fazer contra isso. Estou a pensar em Karl Marx, que não se revia no marxismo, mas podia referir outros casos emblemáticos.
Agora, não deixa de ser aliciante e desafiante pensar o problema em termos de, por exemplo, alguém querer dizer, e menos ensinar, marxismo a Marx, ou cristianismo a Cristo, ou o padre-nosso ao vigário.
Nestes casos, porém, já não estamos apenas a interpretar textos, que valem o que valem e não aquilo que os seus autores queriam ou querem, mas a configurar situações em que um movimento, uma corrente de pensamento, a doutrina, enfim, já está distanciada das fontes, ao ponto de não se poder confundir o rio com a nascente.
O autor dos textos não tem como impor ao intérprete a sua própria interpretação.
O intérprete pode, inclusivamente, ser mais arguto, competente, culto, ter mais repertório e talento do que o autor. Normalmente, o autor ganha muito com intérpretes deste jaez e perde muito com intérpretes mais limitados.
sábado, 12 de agosto de 2023
Viver dos problemas
quarta-feira, 2 de agosto de 2023
Relaxar e produtividade
Dada a sua conotação económica, quase dogmática e moralmente imbatível, permite que o usemos para fazer estilo em qualquer contexto, que em todos cai bem, ainda que seja de muito mau gosto e falta de etiqueta falar de produtividade num piquenique de férias.
Mas, sim, há que manter a produtividade, não dar férias à produtividade, as férias são nossas não são da produtividade.
A produtividade que se amole, queremos é relaxar. E isto pode ser muito, mesmo muito, produtivo.
sexta-feira, 28 de julho de 2023
Filosofar
E tento perceber isso porque, se o que penso que é não for, o meu juízo é errado e a minha escolha vai ser afetada por esse erro.
domingo, 23 de julho de 2023
A paz
A paz dos cardumes
e a do peixe fortuito
algo tardio
como aquele aqueduto
atravessa o vazio
invade o coração
com a promessa
de uma garrafa de Douro
com vistas para a outra vida.
segunda-feira, 17 de julho de 2023
Forças da guerra e forças da Paz
Se houvesse uma sociologia das guerras que estudasse as guerras desde os primevos, aprenderíamos muito sobre a função reguladora da violência e, mais conscientes dessa realidade biológica, social, cultural, histórica, mas mais ainda sobre a cultura da guerra, que tem sido, em minha modesta opinião, o círculo vicioso, para não dizer espiral que se escala a si própria, numa lógica de exercício de poder e de defesa desse poder, sempre que encontra obstáculos, ameaças ou ataques, em melhores condições estaríamos para evitá-las, ou impedi-las, ou minimizar os seus efeitos.
Nessa sociologia talvez se descortinassem, em todas as guerras, padrões que ajudariam a compreender o fenómeno da guerra, como violência humana, uso da força para atingir fins e objectivos ilegítimos, ilegais, injustos e desumanos, independentemente dos pretextos invocados para desencadeá-las. Talvez se tornasse mais claro que uma guerra não é como o amor que, quando começa, nunca ameaça ter consequências e que, apesar disso, quem inicia uma guerra tem um plano optimista, não em relação à guerra, nem em relação à resolução de um diferendo, mas em relação a alguns objectivos, mais ou menos confessados, entre os quais um objectivo territorial, de supremacia, ou punitivo, perpetrado por uma força, ou uma potência que se coloca, ou que está, ou pensa que está, em posição de superioridade bélica, em condições de tirar vantagem, ou de, pelo menos, não sair esmagada do desastre da derrota.
As sociedades humanas politicamente organizadas em estruturas militares, nas quais assentam o seu poder de facto, ainda não encontraram outra forma de se estruturarem e não estão preparadas para aceitarem outro tipo de solução dos problemas conflituosos que não seja pela força, pela coerção e pela coacção, mesmo nas litigâncias judiciais internas, das mais simples às mais complexas, em que se não prescinde de contingentes policiais para assegurar a ordem e a segurança e realizar, executar as sentenças.
Assim sendo, numa primeira fase, a nossa esperança reside no poder de estabelecer uma regulamentação do uso da força, nomeadamente militar, nas relações entre Estados e na judicialização adequada da guerra através de instrumentos de direito internacional, da institucionalização de estruturas internacionais preventivas e, tanto quanto possível, num efectivo controlo, por uma estrutura política internacional credível, de certo tipo de armamento cuja finalidade seja ameaçar e eventualmente destruir massivamente. Ou seja, uma espécie de ONU legitimada e empoderada de uma espécie de monopólio sobre uso da força entre Estados, aplicação das leis da guerra, responsabilização e desarmamento, disposição e uso de certo tipo de forças, para certo tipo de conflitos armados.
Esta solução que, com algumas diferenças de escala, é considerada satisfatória para as situações estaduais internas, talvez pudesse ser adoptada pelos Estados, na ONU, pelo menos pelos que o quisessem e a subscrevessem, sem prejuízo de estes fazerem valer a sua posição perante aqueles que não aderissem.
Embora esta solução não estivesse ainda completamente a salvo de guerras, já apresentaria consideráveis avanços relativamente à situação atual.
As pedagogias da paz e da ordem, muitas vezes são contraditórias e andam, também elas, associadas a ameaças, mais ou menos implícitas, mais ou menos tácitas, porque quem dita os termos dessas pedagogias não abre mão do seu sistema de valores, ou de vantagens, sujeitando os outros às condiçoes e termos em que podem manifestar-se e pronunciar-se. Isto faz com que se formem correntes de opinião e se criem espaços próprios de expressão de ideias que, por não comunicarem uns com os outros, em vez de contribuirem para a conciliação dos contrários e a pacificação dos antagonismos, os acirra ainda mais e reforça os ânimos hostis.
As forças da Guerra e as forças da Paz estão numa relação de poder, de forças, de legitimidade, de Direito e de justiça que, cedo ou tarde, é decidida para o lado da Paz. Acredito que assim seja e tenho esperança de que as guerras acabem.
sábado, 8 de julho de 2023
Filosofia e ciência
A filosofia, quer a entendamos como exercício de racionalidade discursiva sobre os discursos, sobre os repertórios históricos das ideias formuladas, ou sobre conjecturas, em meu entender, nunca perdeu o estatuto original de disciplina de conhecimento, e de conhecimento da natureza do próprio conhecimento, não obstante, em meu entender, a ciência da natureza tenha vindo a revelar algo que a filosofia acabou por reconhecer como limite da filosofia como era entendida até então: há conhecimentos que não são possíveis senão pela observação, que nenhuma inteligência e nenhuma filosofia pode sequer conjecturar.
quinta-feira, 6 de julho de 2023
Mundivisões
O que distorce
a visão
o que distorce
nem sempre são
os olhos
é o obscurantismo
a divisão
a mundivisão
as palavras invisíveis
que ressoam em cavernas oníricas
do coração
a bater
o que distorce o tempo
é o rei da moda
continuar nu
a não ver
a felicidade
não ser um divagar
reflexo das miragens
de poder escolher
e não ter o poder
de ser escolhido
nem como futilidade
de cinco estrelas.
terça-feira, 20 de junho de 2023
Não há original deste rio
Um rio como este
não vai ficar na foto
não sei como vai ficar
se ficar
na minha memória
e até quando
eterno liquefeito
paraíso entornado
caldo de peixe cozinhado
no caleidoscópio mágico
de infâncias
que nunca foram resgatadas
dos grandes delírios
nem arrebatadas da corrente
insustentável
de um rio como este
de que nunca houve
nem haverá original
tão doente
que abraça os choupos
aninhados no lixo
como se ouvisse o mar
dos náufragos
e os confundisse com as brumas
da minha memória.
domingo, 11 de junho de 2023
As coisas não têm de ser como são
Se perguntarmos porque temos necessidade de ir para a escola, o que mais me surpreende e choca, não é a resposta, é o ela ser imperiosa. Não existe escolha. E por que motivo? Toda a gente sabe, concorde ou não, goste ou não, é como ter de usar um transporte, ou falar uma língua, ou um telefone/telemóvel, ou uma arma. É como se quisessem impor-nos algo sem o qual preferíamos passar, ou, pelo menos, sem nos perguntarem se temos preferência.
Estamos hoje sujeitos, de forma violenta, ou quase violenta, a todo o tipo de dependências crescentes de estruturas desumanas, surdas e mudas, que nos cobram preços, em troca de serviços que não podemos dispensar.
Dentro deste comércio viciado e altamente desleal, ratificado e promovido pelos sistemas políticos e de justiça, entre os que têm as cabeças e as mãos atadas e os que têm liberdade para os explorar e armas para os alvejar, a educação e o ensino não são o menor artifício de dependência.
O que eu acho desejável, por mais utópico que seja, mas gosto de ser utópico até onde me deixarem, ou puder, é que haja a máxima independência dos indivíduos relativamente à educação. Infelizmente, verifico que acontece, cada vez mais o contrário. Cada vez mais, o ensino e a educação e as escolas, em geral, se apresentam e são entendidas, como meios de formação para o exercício de uma profissão, quer se goste ou não, e seja pelos motivos que forem.
A maior parte das pessoas até podem dar-se bem com isto e sentirem-se gratas por haver e lhes darem a oportunidade, por exemplo, de envergarem uma farda, ou de integrarem uma equipa, etc., e até sentirem elevados níveis de satisfação, de realização e de reconhecimento social, mas isso não deixa de ser a satisfação de uma necessidade.
A necessidade, seja pelo hábito ou não, dita e impõe a resposta, as aprendizagens, a escola, o ensino, a educação.
Onde vejo um problema é na alienação do indivíduo, da pessoa que se entrega, “que perde a vida” não para se salvar, mas porque sente/acredita que a sua vida tem a ganhar, até em sentido social, com a realização dos valores sociais susceptíveis de lhe darem retorno, seja profissional, ou outro.
Mas também vejo um problema na alienação do indivíduo a si mesmo, alienando-se da sociedade, que não busca, nem espera, nem encontrará por certo, na escola, no ensino e na educação, a resposta, ou o tipo de resposta, para a qual o ensino e a educação não estão vocacionados, nem preparados.
domingo, 28 de maio de 2023
Na noite
O vento não sossega
na noite imensa
os cães não param de ladrar
a quem pensa
de outro tempo
ladainhas à indiferença
toutinegras
a suplicar
mas não adormeço
não vá a menina acordar.
quinta-feira, 25 de maio de 2023
Trabalho incansável
O meu trabalho tem sido incansável
o sol ardente anda a secar tudo
como um fogo
e eu não me iludo
com o frescor das noites
porque sinto os rios a parar
de me olhar
e as manhãs não acordam
com a coragem da primavera
quando vou esperar o dia
no promontório
sobre as lezírias
vejo muita gente à espera
como eu
que o rio volte a ser
o que era.
quarta-feira, 17 de maio de 2023
Religiões
Por outro lado, a função e o papel das religiões, mesmo das religiões sem Deus, ou de muitos deuses, ou das ideologias, mormente políticas e sociais, têm sido substituídos ou complementados, em parte, por formas de mobilização e de consciencialização, por exemplo, em torno dos Direitos Humanos e do Dever de Respeito para com a natureza, em todas as suas formas.
Mas muitos daqueles que acham normal o Estado apoiar o seu partido político, o seu clube de futebol, determinadas práticas culturais que lhes agradam, ou a sua religião, criticam que o faça aos outros, partidos, clubes, culturas, religiões. Este tem sido, também, o problema histórico das relações entre religiões, pensamento crítico e ciência.
Até onde estará uma religião disposta a ir no respeito pelas outras religiões? E no respeito por aqueles que não têm religião, ou pensam que a religião é um erro, ou um malefício?
Até onde estarão os críticos da religião, ou os indiferentes, ou os incuriosos, dispostos a ir no respeito pelas religiões, pelos clubes adversários, pelos partidos políticos, pelos deuses, pelas bandeiras e pelos hinos?
Até que ponto as questões acerca da existência de deus ou dos deuses interessam aos religiosos e aos outros e são relevantes para a realidade social e sociológica das religiões?
E porque não admitir, até por hipótese, que a maior parte dos religiosos não o é por causa de um deus, nem por causa dos argumentos a favor da sua existência e que alguns dos que acreditam num deus, com ou sem argumentos, não são religiosos?
quarta-feira, 10 de maio de 2023
O poder da magia
A multidão obedece aos magos
que brincam com as leis da natureza
que as infringem
que pela palavra ou o gesto
fazem os impossíveis triviais
de transformar as coisas
pela ordem que lhes dão
a multidão não obedece
a uma coleção de metáforas mortas
ela trabalha como pode
o seu fado
com mais ou menos enfado
o que mais desperta a atenção
é a magia
seja do Aladino
do Potter ou de Jesus
ai como era bom
poder mover montanhas
pelo feitiço das palavras
sem máquinas nem martelos
sem faíscas brilhantes
ou trovões coruscantes
e ficar à espera para ver
o resto da matéria
já sabemos
ou nem precisamos de saber.
sábado, 22 de abril de 2023
Eram mulheres
Eram mulheres
aliás desenhos de mulheres
seminuas
ou coisa parecida
escondidos num caderno
de listas de mercearia
e de receitas de bolos
o caderno mais assustador
que alguma vez se abriu
diante dos nossos olhos
de adolescentes
bem conscientes
de estarmos ali
às escondidas de toda a gente
mas não de Deus
nem do Diabo
que não temíamos
a abrir as portas
do inferno
com a forma diabólica
de um caderno.
sábado, 8 de abril de 2023
Quantos gumes tem a faca
Desconhecia o poeta húngaro, Attila József, e este seu poema esplendoroso.
Quando nasci tinha uma faca na mão.
Dizem: é poesia.
Mas peguei na pena, melhor ainda que a faca.
Nasci para ser homem.
Dos que ficam na memória a rebobinar, a rebobinar. Saltou-me à ideia o estereótipo de Luís de Camões com a espada numa mão e a pena na outra. Uma faca de dois gumes. Mas quantos gumes pode ter uma faca? E muito mais. Humano, simplesmente humano, como a páscoa.
domingo, 26 de março de 2023
É preciso dizer
O dia sem manhã
mas com versos
a abrir caminho
a felicidade pode chegar
através das palavras
muitas vezes
só as palavras têm poder
para tranquilizar
ou demover
é preciso dizer
certas palavras que têm o efeito
de serem as palavras certas
por parecerem certas
ainda que não façam crer
que aquilo que é preciso
que seja
é
ou será.
quinta-feira, 9 de março de 2023
Não alimento mitos
Não te encontro defeitos
amor
mas a vida é imperfeita
por vezes bela
atordoa
estonteia
a aconchegar dois animais
que não cabem dentro de nós
que farejam tudo
e a miragem
na sua humanidade.
terça-feira, 21 de fevereiro de 2023
As casas
Havia uma casa no nascente
donde esvoaçavam pássaros
aos raios de sol
pelas manhãs
à passagem da padeira
com sua voz de manteiga
enevoada
a atravessar o rio
num ligeiro batel
e isso era apenas uma parte
da vida nesse lado verde do mundo
dos incansáveis
também havia uma casa no poente
onde se recolhiam as sombras
das tardes
as fadigas desajeitadas
quando a última locomotiva
vinda de muito longe
entrava a roncar
no escuro
com um farol baço de mineiro
e fazia estremecer o cemitério
sem acordar as flores
em sono profundo
junto à linha.
sábado, 11 de fevereiro de 2023
Caminhar sem ver para onde
Na hora de dormir
olhei para as estrelas
e suspirei de preocupação
tinha a vaga ideia
de aquele lugar escuro
ser numa serra
afastada do mar
mas ouvia rebentações de ondas
e rajadas de vento uivante
nas árvores que vergavam
e pensei nas histórias
que ouvi na noite anterior
na taberna
junto às ruínas da ponte
acerca de pessoas desaparecidas
no desfiladeiro dos lobos
onde não há sinais de abrigo
nem trilhos visíveis
fiz de conta
fingindo de monstro
para assustar feras noturnas
e parei com muito cuidado
para não por os pés em falso
era muito arriscado
caminhar sem ver para onde.
domingo, 29 de janeiro de 2023
Paraísos terrestres
Paraísos terrestres
Querer elevar o corpo
Como se tivesse uma alma
Que lhe desse asas
Que o ajudasse a suportar
O peso
Que um pássaro tem
Para descer à terra
E sentir o chão debaixo dos pés
Não ser levado pelas nuvens
Não ser arrastado pelas correntes
E pousar
Oh como é bom pousar
Nos paraísos perdidos.
terça-feira, 24 de janeiro de 2023
O princípio da igualdade jurídica
O princípio da igualdade jurídica, que atingiu pleno reconhecimento ao ser entendido como a essência da Ideia de Direito, que tem estado no cerne do sistema normativo do Estado de Direito Democrático, não se confunde com o conceito de igualdade geométrica, ou química, ou física. Justamente, ela emana do reconhecimento de que não há duas pessoas iguais e isto é muito interessante: a igualdade é o reconhecimento e o respeito da diferença, ou seja, a diferença jamais poderá ser razão de discriminação, sob pena de ninguém ter direito a não ser discriminado, o que seria o caos.
Em meu entender, esta foi a grande clarificação que se fez, desde os gregos atenienses até ao cristianismo e que veio a culminar politicamente nos iluministas franceses.
E não colide nem é hostil à desigualdade de estatuto social, desde que esta desigualdade deva ser respeitada, como devem ser respeitadas as diferenças.
O problema é quando o próprio estatuto social é já efeito da institucionalização de uma cultura de tratamento desigual, de indivíduos, de grupos, de populações, de povos...
sábado, 21 de janeiro de 2023
Natureza e cultura
Diria que, por natureza, nada é bom ou mau. Estes são atributos dos atos humanos entendidos numa escala de valores que são produto da cultura.
Todo o homem, à luz desta escala, é suscetível de praticar atos bons ou maus. Não se nasce bom, nem mau, mas cada um pode tornar-se bom ou mau e isso não depende apenas de si, ou apenas da sociedade, uma vez que o modo como irá realizar a sua participação no "jogo" social depende de regras que requerem aprendizagem e treino e que, em grande medida, é feito na base de uma batota muito sofisticada.
sábado, 14 de janeiro de 2023
O prazer de escrever
Às vezes ainda me pergunto sobre o que me faz intervir com "likes" e comentários, seja em blogues, seja no "facebook". O aparecimento
da internet, quanto a isso, veio potenciar imenso o que, para mim, já era um modo de estar na vida.
Em vez de escrever num caderno aquilo que me ocorria, ou de publicar num jornal ou revista, passei a escrever
"online" e a experiência foi sendo estimulante e enriquecedora. Em alguns casos poderia ter sido mais interativa, mas depressa percebi que esse caminho não era o meu.
Os meus objetivos foram e continuam
a ser um desenvolvimento e um aprofundamento de questões, temas e problemas que me surpreendem quando menos espero, nos quais entrevejo uma perspetiva ou um ângulo promissor.
Não procuro a discussão,
nem o debate, nem ser assertivo, nem rebater e não me preocupo com proselitismos de nenhuma espécie. Se for para estar de acordo, se for para dizer amém, se for para parafrasear, não escrevo uma
palavra, porque o meu objetivo não é esse.
Divirto-me imenso a escrever e leio e releio o que escrevo, para tentar certificar-me de que não estou a chover no molhado.
Escrever absorve demasiadas
energias e demasiado tempo para que o faça só para não estar quieto e calado. É, no meu propósito, um investimento. Acredito nas vantagens de o fazer.
Com o passar dos anos e com o acumular
de textos sinto cada vez mais fecunda esta disciplina de organizar as ideias agarrando-as como peças de um puzzle, ou, preferencialmente, como peças de legos, que permitem fazer combinações sempre
novas.
Há situações em que os sábios se sentem incomodados se alguém ler o que escrevem e, mais ainda, fizerem algum comentário. Dão a entender que devemos deixá-los
a "falar" sozinhos. Mas não podem decidir também sobre o tipo de comentário que aceitam que se faça.
Não ligo a isso, não é assim que funciono e, assim que me
dispo do jargão, profissional e burocrático, escrevo como um compositor ou um maestro que tenta dirigir uma orquestra, de autores, para fazer um concerto que seja o menos aborrecido possível.
Por
prazer e divertimento, sem constrangimentos, exercendo ao máximo a liberdade de pensar, sem nenhum compromisso com ninguém, a assistir ao surgimento dos frutos que, investir no pensamento crítico, pode
dar.