sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O fotógrafo

Caiu neve
e tudo branqueou
menos o vulto negro e solitário
que subia a calçada
e tropeçou
mas ninguém o nomeou
nem o fotógrafo
que ele salvou
do esquecimento.

Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Por mais que a tristeza

Elas são belas

por mais que a tristeza lhes turve os olhos

por mais que tentem esconder que o são

são

são belas mesmo que não gostem

e que prefiram ser o que não são

serem belas parece um mérito

mas é uma condição

por mais que a beleza parta o coração.


Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Bela ou feia


Com este texto convoco ao aprazível exercício de pensamento e interpelo à reflexão sobre os nossos comportamentos, mais ou menos privados, mais ou menos exteriorizados por sentenças, suscetíveis de consciencialização e conhecimento acerca das linhas com que nos cosemos, para usar uma expressão bastante feia.
E ai de quem me contradisser, porque também será feio. Se formos para o tribunal, então o juiz que faça a justiça de aceitar ou rejeitar o pleito e de fundamentar a decisão.
Com esta brincadeira, estou a pensar na subjetividade dos juízos, por um lado, e na objetividade das sentenças, por outro. Os meus juízos estéticos, sobre a natureza, ou sobre os artefactos são o que decide se algo, na natureza, ou no artefacto, é belo, ou não, ou se é repulsivo, atraente, agradável, desagradável, etc.. Não é o juízo sentença da minha mãe, ou o do pintor dos diabos que vai decidir sobre a realidade das coisas, por mais efeitos que possa ter sobre o meu comportamento e por mais que condicione a forma como vejo as coisas.
Ou seja, o meu juízo estético opera sobre uma realidade cujas características não são belas, ou feias, antes de eu decidir. Nem estou a questionar se e porquê há formas belas ou feias, independentemente de o julgarmos.
Na realidade, não é por eu julgar uma coisa bela, ou feia, que ela o é. Ser bela ou feia não é uma característica da coisa, quando muito, é uma atribuição que eu faço. E isto não quer dizer que é uma atribuição arbitrária, ou que é aleatória. Não quer dizer que não tenha a ver com características da coisa.
Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Gente zangada não se ri

Gente zangada. Gente zangada não se ri. Mas já vi gente ganzada a rir como louca.  Enquanto ri a gente não se zanga. Acontece o mesmo com o choro. Ninguém ri e chora ao mesmo tempo. Mas há personagens que têm afivelada a máscara do riso, do choro, da ira, da bonomia, da sonolência, da loucura, etc.. D. Quixote, por exemplo, não ria e não fazia rir. Sancho compreendia de tal modo o seu amo que nem tentava fazer graça.

Há uma autenticidade na expressão dos sentimentos e das emoções, seja pela ira, seja pelo riso, ou pelo choro, pela euforia, pela estupidez, pela loucura, ou pelo mutismo, que não se compadece com zombarias ou com por a ridículo alguém, porquanto isso é de mau gosto, é feio, e tem de maldade.

Gente zangada, gente animada, gente embriagada, gente drogada, gente alienada, gente feliz, gente pobre, gente desprezada, gente triste, gente galvanizada, gente ilustrada, gente castigada, gente oprimida, gente do campo e gente da cidade, gente de armas, gente de fora e gente da terra, gente é uma palavra portuguesa do mais versátil que há.

Gente zangada pode fazer jus à muito conhecida expressão “quem não se sente não é filho de boa gente”.
De qualquer modo, gente que gosta de rir dos outros, em geral, não suporta, ou tolera mal, que se riam à sua custa. Não é o caso dos grandes humoristas, como Woody Allen que, preferencialmente, e por curiosa necessidade, riem de si próprios.
Aposto que Deus não ri, nem tem sentido de humor, mas também não se zanga.

 Carlos Ricardo Soares

sábado, 28 de outubro de 2023

Meter as palavras na ordem

As palavras podem ser nossas aliadas, mas a nossa desconfiança deve ser total. 

Não acredito que alguém tenha o poder de meter as palavras na ordem.

Não te deixes conduzir pelas palavras.

Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 24 de outubro de 2023

A ideia de inutilidade

A ideia de inutilidade, aplicada à filosofia, ou à poesia, ou à matemática e até à própria física, só colhe num sentido muito restrito de utilidade. 

A nossa cultura científica, humanística, filosófica, artística, linguística, foi construída através do pensamento, da atividade pensante, do discurso legitimador e fundante dos valores, das normas, dos critérios, dos modos de proceder e de trabalhar e de governar e de fazer justiça e de falar...

 Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Saber ler

Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, foi um dos livros de autores portugueses que mais me surpreenderam, numa releitura já algo tardia, depois de ter passado por essa obra, no Liceu, como um fantasma que apenas vira as páginas. Fiz o mesmo com Os Maias, de Eça de Queirós e com outras obras. Enquanto eu não tiver uma motivação particular para ler, e não incluo aqui a obrigação de ler, normalmente, também não o faço só por distração. Mas tenho noção de que existem muitas formas de leitura e que nem todas são as mais adequadas.
Não é apenas o saber ler, que é importante para descodificar a obra, é também o ato de leitura como um exercício, ou um investimento cultural, de aquisição, enriquecimento cultural, ou de mera jardinagem cultural, divertimento, ou passatempo.
Há autores que não escrevem para certos leitores. Nota-se claramente que não estão à espera (não devem esperar) que certo tipo de leitores (passe a expressão) leiam o que escrevem. Alguns livros não podem ser lidos senão por uma minoria de pessoas com muita erudição e experiência da vida. Independentemente do proveito ou do prazer, do enriquecimento ou satisfação que deem ao leitor, exigem repertórios e uma atenção que será raro encontrar. Ler, no sentido de ser capaz de ler qualquer livro, é para muito poucos.
A tentativa de escrever para o maior número possível de leitores, envolve a consideração de que a maior parte não se mete a ler para ficar mal disposto, cansado, frustrado, aborrecido.
Não vou desenvolver as veredas que nos levariam, por aí fora, acerca deste assunto já tão explorado e sempre surpreendente.
Vou apenas referir que há autores cuja leitura nos cansa quase tanto como os terá cansado a eles escrever, como se, constantemente, durante horas, tivéssemos que assistir ao suplício dos ciclistas que pedalam durante cinco minutos, para chegar ao alto de Nossa Senhora da Graça.
Outros aligeiram de tal modo as coisas que nos dão de bandeja, em duas frases, a notícia da vitória. Outros ainda, mais complacentes com a deles e a nossa preguiça, nem precisam de dar a notícia da vitória, uma vez que a vitória, nesses casos, está implícita, ou é suposto que exista.
O que é complexo não é o que escrevem é aquilo sobre o qual não dizem nada.
Quem escreve só é colocado perante o problema de escolher entre o que escrever e o que não escrever, se tiver sobre o que escrever. Depois há os poderes, ou competências, ou talentos, de como escrever e de saber se querem, ou podem, ser lidos, quando e por quem. Independentemente de terem à disposição canais de comunicação, divulgação, com potenciais leitores.
 
Carlos Ricardo Soares

domingo, 17 de setembro de 2023

Ninguém é obrigado a acreditar

Não acrediteis

ninguém é obrigado a acreditar

se acreditardes

saibais

que não sabeis

enquanto não verificardes

e se ajuizardes

ajuizareis

sobre o que imaginardes.

  Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Alegria é isso

Algo faz acreditar

que a alegria é isso

um peixe a surfar

sem pensar nisso

epitáfio

na onda passageira

em que medito

sem me preocupar

com aquilo em que acredito

ou deixo de acreditar.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Hermenêutica

Não vejo como ultrapassar o facto de um texto significar por si próprio e apenas por si próprio. Se o autor vier a terreiro, por exemplo, para explicar o que escreveu, isto já é outro texto. Se o autor vier à praça para discordar da interpretação que alguém faz do que escreveu, está no seu direito, mas não lhe assiste nenhum privilégio interpretativo daquilo que está escrito. 
Por exemplo, o legislador faz textos, sob a forma de normas, mas não tem competência para os interpretar vinculativamente. Isto para mim é muito claro. 
Se, por exemplo, alguém interpreta o que escrevo de um modo que me aparece inepto e sem apoio na letra, na lógica, no contexto e no sentido que é possível e legítimo esperar e exigir que um leitor normalmente competente reconheça, só me resta discutir isso e, embora seja eu o autor, não estou garantido só por isso de que o meu intérprete não tenha mais razão. 
Há inúmeros casos, alguns que ficaram célebres, de autores que acabaram interpretados de vários modos sem que, ao menos, um deles correspondesse àquilo que eles diziam pensar e defender. E pouco, ou nada puderam fazer contra isso. Estou a pensar em Karl Marx, que não se revia no marxismo, mas podia referir outros casos emblemáticos.
Agora, não deixa de ser aliciante e desafiante pensar o problema em termos de, por exemplo, alguém querer dizer, e menos ensinar, marxismo a Marx, ou cristianismo a Cristo, ou o padre-nosso ao vigário.
Nestes casos, porém, já não estamos apenas a interpretar textos, que valem o que valem e não aquilo que os seus autores queriam ou querem, mas a configurar situações em que um movimento, uma corrente de pensamento, a doutrina, enfim, já está distanciada das fontes, ao ponto de não se poder confundir o rio com a nascente.
O autor dos textos não tem como impor ao intérprete a sua própria interpretação. 
O intérprete pode, inclusivamente, ser mais arguto, competente, culto, ter mais repertório e talento do que o autor. Normalmente, o autor ganha muito com intérpretes deste jaez e perde muito com intérpretes mais limitados.
 Carlos Ricardo Soares

sábado, 12 de agosto de 2023

Viver dos problemas

O que eu penso é que a vida passa e os problemas não, ou por outra, os problemas vão-se resolvendo e a vida não, ou ainda, nem todos temos problemas, mas todos pensamos em problemas e muitos arranjam problemas por tudo e por nada. 
Já tenho encontrado pessoas que, espantadas, reconhecem nada lhes faltar, nem saúde, nem dinheiro, nem estatuto social, nem amor, nem paz, terem tudo em abundância, mas viverem atormentadas com problemas filosóficos, insolúveis e graves problemas da cabeça e do entendimento. 
São bons de contas de mercearia, campeões do negócio, grandes farmacêuticos, engenheiros da ferrovia, nobéis da literatura, vencedores de guerras, filhos de Deus, batizados de luz divina, sacerdotes da vida eterna, teólogos da profecia, portentos do oráculo... 
Mas claudicam na hora de reconhecerem que têm problemas, muitos, para os quais nem que soubessem a resposta, deixavam de ser problemas. 
Já encontrei gente feliz, mas eram felizes com seus problemas e, se não fossem esses problemas, provavelmente não seriam felizes como são, porque, de algum modo vivem deles.
 Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Relaxar e produtividade

O conceito de produtividade é muito elástico e deveras interessante. 
Dada a sua conotação económica, quase dogmática e moralmente imbatível, permite que o usemos para fazer estilo em qualquer contexto, que em todos cai bem, ainda que seja de muito mau gosto e falta de etiqueta falar de produtividade num piquenique de férias. 
Mas, sim, há que manter a produtividade, não dar férias à produtividade, as férias são nossas não são da produtividade. 
A produtividade que se amole, queremos é relaxar. E isto pode ser muito, mesmo muito, produtivo.
 Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Filosofar

Filosofar é quando tento perceber claramente se "o que penso que é" é efetivamente, pois o que penso que é deve ser o que é e não o que eu penso que é. 
E tento perceber isso porque, se o que penso que é não for, o meu juízo é errado e a minha escolha vai ser afetada por esse erro. 
Tomemos como exemplo o que acabei de dizer sobre o que penso que é filosofar. 
Carlos Ricardo Soares

domingo, 23 de julho de 2023

A paz

A paz dos cardumes

e a do peixe fortuito

algo tardio

como aquele aqueduto

atravessa o vazio

invade o coração

com a promessa

de uma garrafa de Douro

com vistas para a outra vida.

 Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Forças da guerra e forças da Paz

Nem todos os exércitos, nem todas as armas têm sido suficientes para impedir e evitar guerras, todos os tipos de guerras e guerrilhas, locais, regionais, coloniais, civis, religiosas, comerciais, químicas, industriais, nucleares, tecnológicas...
Se houvesse uma sociologia das guerras que estudasse as guerras desde os primevos, aprenderíamos muito sobre a função reguladora da violência e, mais conscientes dessa realidade biológica, social, cultural, histórica, mas mais ainda sobre a cultura da guerra, que tem sido, em minha modesta opinião, o círculo vicioso, para não dizer espiral que se escala a si própria, numa lógica de exercício de poder e de defesa desse poder, sempre que encontra obstáculos, ameaças ou ataques, em melhores condições estaríamos para evitá-las, ou impedi-las, ou minimizar os seus efeitos.
Nessa sociologia talvez se descortinassem, em todas as guerras, padrões que ajudariam a compreender o fenómeno da guerra, como violência humana, uso da força para atingir fins e objectivos ilegítimos, ilegais, injustos e desumanos, independentemente dos pretextos invocados para desencadeá-las. Talvez se tornasse mais claro que uma guerra não é como o amor que, quando começa, nunca ameaça ter consequências e que, apesar disso, quem inicia uma guerra tem um plano optimista, não em relação à guerra, nem em relação à resolução de um diferendo, mas em relação a alguns objectivos, mais ou menos confessados, entre os quais um objectivo territorial, de supremacia, ou punitivo, perpetrado por uma força, ou uma potência que se coloca, ou que está, ou pensa que está, em posição de superioridade bélica, em condições de tirar vantagem, ou de, pelo menos, não sair esmagada do desastre da derrota.
As sociedades humanas politicamente organizadas em estruturas militares, nas quais assentam o seu poder de facto, ainda não encontraram outra forma de se estruturarem e não estão preparadas para aceitarem outro tipo de solução dos problemas conflituosos que não seja pela força, pela coerção e pela coacção, mesmo nas litigâncias judiciais internas, das mais simples às mais complexas, em que se não prescinde de contingentes policiais para assegurar a ordem e a segurança e realizar, executar as sentenças.
Assim sendo, numa primeira fase, a nossa esperança reside no poder de estabelecer uma regulamentação do uso da força, nomeadamente militar, nas relações entre Estados e na judicialização adequada da guerra através de instrumentos de direito internacional, da institucionalização de estruturas internacionais preventivas e, tanto quanto possível, num efectivo controlo, por uma estrutura política internacional credível, de certo tipo de armamento cuja finalidade seja ameaçar e eventualmente destruir massivamente. Ou seja, uma espécie de ONU legitimada e empoderada de uma espécie de monopólio sobre uso da força entre Estados, aplicação das leis da guerra, responsabilização e desarmamento, disposição e uso de certo tipo de forças, para certo tipo de conflitos armados.
Esta solução que, com algumas diferenças de escala, é considerada satisfatória para as situações estaduais internas, talvez pudesse ser adoptada pelos Estados, na ONU, pelo menos pelos que o quisessem e a subscrevessem, sem prejuízo de estes fazerem valer a sua posição perante aqueles que não aderissem.
Embora esta solução não estivesse ainda completamente a salvo de guerras, já apresentaria consideráveis avanços relativamente à situação atual.
As pedagogias da paz e da ordem, muitas vezes são contraditórias e andam, também elas, associadas a ameaças, mais ou menos implícitas, mais ou menos tácitas, porque quem dita os termos dessas pedagogias não abre mão do seu sistema de valores, ou de vantagens, sujeitando os outros às condiçoes e termos em que podem manifestar-se e pronunciar-se. Isto faz com que se formem correntes de opinião e se criem espaços próprios de expressão de ideias que, por não comunicarem uns com os outros, em vez de contribuirem para a conciliação dos contrários e a pacificação dos antagonismos, os acirra ainda mais e reforça os ânimos hostis.
As forças da Guerra e as forças da Paz estão numa relação de poder, de forças, de legitimidade, de Direito e de justiça que, cedo ou tarde, é decidida para o lado da Paz. Acredito que assim seja e tenho esperança de que as guerras acabem.

sábado, 8 de julho de 2023

Filosofia e ciência

A filosofia, quer a entendamos como exercício de racionalidade discursiva sobre os discursos, sobre os repertórios históricos das ideias formuladas, ou sobre conjecturas, em meu entender, nunca perdeu o estatuto original de disciplina de conhecimento, e de conhecimento da natureza do próprio conhecimento, não obstante, em meu entender, a ciência da natureza tenha vindo a revelar algo que a filosofia acabou por reconhecer como limite da filosofia como era entendida até então: há conhecimentos que não são possíveis senão pela observação, que nenhuma inteligência e nenhuma filosofia pode sequer conjecturar.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Mundivisões

O que distorce

a visão

o que distorce

nem sempre são

os olhos

é o obscurantismo

a divisão

a mundivisão

as palavras invisíveis

que ressoam em cavernas oníricas

do coração

a bater

o que distorce o tempo

é o rei da moda

continuar nu

a não ver

a felicidade

não ser um divagar

reflexo das miragens

de poder escolher

e não ter o poder

de ser escolhido

nem como futilidade

de cinco estrelas.

 

terça-feira, 20 de junho de 2023

Não há original deste rio

Um rio como este

não retomará o bom caminho
que nunca teve

não vai ficar na foto

não sei como vai ficar

se ficar

na minha memória

e até quando

eterno liquefeito

paraíso entornado

caldo de peixe cozinhado

no caleidoscópio mágico

de infâncias

que nunca foram resgatadas

dos grandes delírios

nem arrebatadas da corrente

insustentável

de um rio como este

de que nunca houve

nem haverá original

tão doente

que abraça os choupos

aninhados no lixo

como se ouvisse o mar

dos náufragos

e os confundisse com as brumas

da minha memória.

 

domingo, 11 de junho de 2023

As coisas não têm de ser como são

Se não sentíssemos/acreditássemos que “as coisas não têm de ser como são”, título de um trabalho que estou a realizar, ou, por outras palavras, se estivéssemos convencidos de que as coisas têm de ser como são, ficaríamos parados a ver acontecer, nada fazendo por nossa iniciativa, limitando-nos a respirar. Não obstante, e paradoxalmente, é porque as coisas são como são que nós sentimos e acreditamos que não têm de ser como são. Porque percebemos no modo de ser das coisas a susceptibilidade de as alterarmos, dentro das nossas possibilidades. E foi aqui e é aqui que surgiram/surgem os problemas e os conflitos. Os problemas surgem no sentir/acreditar, na necessidade e na (im)possibilidade da satisfação. Nós estamos dependentes das necessidades, no mesmo sentido da sua satisfação. Quando perguntamos, hoje, de que necessitamos, podemos constatar, por exemplo, que necessitamos de muitas coisas que os nossos antepassados não necessitavam. Passaríamos muito bem sem muitas coisas que existem, se elas não existissem. É a necessidade que torna as coisas úteis, ou, pelo contrário, é a utilidade das coisas que as torna necessárias?
Se perguntarmos porque temos necessidade de ir para a escola, o que mais me surpreende e choca, não é a resposta, é o ela ser imperiosa. Não existe escolha. E por que motivo? Toda a gente sabe, concorde ou não, goste ou não, é como ter de usar um transporte, ou falar uma língua, ou um telefone/telemóvel, ou uma arma. É como se quisessem impor-nos algo sem o qual preferíamos passar, ou, pelo menos, sem nos perguntarem se temos preferência.
Estamos hoje sujeitos, de forma violenta, ou quase violenta, a todo o tipo de dependências crescentes de estruturas desumanas, surdas e mudas, que nos cobram preços, em troca de serviços que não podemos dispensar.
Dentro deste comércio viciado e altamente desleal, ratificado e promovido pelos sistemas políticos e de justiça, entre os que têm as cabeças e as mãos atadas e os que têm liberdade para os explorar e armas para os alvejar, a educação e o ensino não são o menor artifício de dependência.
O que eu acho desejável, por mais utópico que seja, mas gosto de ser utópico até onde me deixarem, ou puder, é que haja a máxima independência dos indivíduos relativamente à educação. Infelizmente, verifico que acontece, cada vez mais o contrário. Cada vez mais, o ensino e a educação e as escolas, em geral, se apresentam e são entendidas, como meios de formação para o exercício de uma profissão, quer se goste ou não, e seja pelos motivos que forem.
A maior parte das pessoas até podem dar-se bem com isto e sentirem-se gratas por haver e lhes darem a oportunidade, por exemplo, de envergarem uma farda, ou de integrarem uma equipa, etc., e até sentirem elevados níveis de satisfação, de realização e de reconhecimento social, mas isso não deixa de ser a satisfação de uma necessidade.
A necessidade, seja pelo hábito ou não, dita e impõe a resposta, as aprendizagens, a escola, o ensino, a educação.
Onde vejo um problema é na alienação do indivíduo, da pessoa que se entrega, “que perde a vida” não para se salvar, mas porque sente/acredita que a sua vida tem a ganhar, até em sentido social, com a realização dos valores sociais susceptíveis de lhe darem retorno, seja profissional, ou outro.
Mas também vejo um problema na alienação do indivíduo a si mesmo, alienando-se da sociedade, que não busca, nem espera, nem encontrará por certo, na escola, no ensino e na educação, a resposta, ou o tipo de resposta, para a qual o ensino e a educação não estão vocacionados, nem preparados.

domingo, 28 de maio de 2023

Na noite

O vento não sossega

na noite imensa

os cães não param de ladrar

a quem pensa

de outro tempo

ladainhas à indiferença

toutinegras

a suplicar

mas não adormeço

não vá a menina acordar.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Trabalho incansável

O meu trabalho tem sido incansável

o sol ardente anda a secar tudo

como um fogo

e eu não me iludo

com o frescor das noites

porque sinto os rios a parar

de me olhar

e as manhãs não acordam

com a coragem da primavera

quando vou esperar o dia

no promontório

sobre as lezírias

vejo muita gente à espera

como eu

que o rio volte a ser

o que era.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Religiões

As razões para a existência de religiões, que se poderiam traduzir por funções pelas quais as religiões existiram e existem, não têm variado muito ao longo do tempo e, tanto quanto penso, só colidem com a ciência e o pensamento crítico na medida em que estes põem em causa os seus fundamentos, os seus dogmas, as suas práticas e os seus objectivos, ou fins.
Por outro lado, a função e o papel das religiões, mesmo das religiões sem Deus, ou de muitos deuses, ou das ideologias, mormente políticas e sociais, têm sido substituídos ou complementados, em parte, por formas de mobilização e de consciencialização, por exemplo, em torno dos Direitos Humanos e do Dever de Respeito para com a natureza, em todas as suas formas.
Mas muitos daqueles que acham normal o Estado apoiar o seu partido político, o seu clube de futebol, determinadas práticas culturais que lhes agradam, ou a sua religião, criticam que o faça aos outros, partidos, clubes, culturas, religiões. Este tem sido, também, o problema histórico das relações entre religiões, pensamento crítico e ciência.
Até onde estará uma religião disposta a ir no respeito pelas outras religiões? E no respeito por aqueles que não têm religião, ou pensam que a religião é um erro, ou um malefício?
Até onde estarão os críticos da religião, ou os indiferentes, ou os incuriosos, dispostos a ir no respeito pelas religiões, pelos clubes adversários, pelos partidos políticos, pelos deuses, pelas bandeiras e pelos hinos?
Até que ponto as questões acerca da existência de deus ou dos deuses interessam aos religiosos e aos outros e são relevantes para a realidade social e sociológica das religiões?
E porque não admitir, até por hipótese, que a maior parte dos religiosos não o é por causa de um deus, nem por causa dos argumentos a favor da sua existência e que alguns dos que acreditam num deus, com ou sem argumentos, não são religiosos?

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O poder da magia

A multidão obedece aos magos

que brincam com as leis da natureza

que as infringem

que pela palavra ou o gesto

fazem os impossíveis triviais

de transformar as coisas

pela ordem que lhes dão

a multidão não obedece

a uma coleção de metáforas mortas

ela trabalha como pode

o seu fado

com mais ou menos enfado

o que mais desperta a atenção

é a magia

seja do Aladino

do Potter ou de Jesus

ai como era bom

poder mover montanhas

pelo feitiço das palavras

sem máquinas nem martelos

sem faíscas brilhantes

ou trovões coruscantes

e ficar à espera para ver

o resto da matéria

já sabemos

ou nem precisamos de saber.

sábado, 22 de abril de 2023

Eram mulheres


Eram mulheres

aliás desenhos de mulheres

seminuas

ou coisa parecida

escondidos num caderno

de listas de mercearia

e de receitas de bolos

o caderno mais assustador

que alguma vez se abriu

diante dos nossos olhos

de adolescentes

bem conscientes

de estarmos ali

às escondidas de toda a gente

mas não de Deus

nem do Diabo

que não temíamos

a abrir as portas

do inferno

com a forma diabólica

de um caderno.


sábado, 8 de abril de 2023

Quantos gumes tem a faca

Desconhecia o poeta húngaro, Attila József, e este seu poema esplendoroso. 

Quando nasci tinha uma faca na mão.

Dizem: é poesia.

Mas peguei na pena, melhor ainda que a faca.

Nasci para ser homem.

Dos que ficam na memória a rebobinar, a rebobinar. Saltou-me à ideia o estereótipo de Luís de Camões com a espada numa mão e a pena na outra. Uma faca de dois gumes. Mas quantos gumes pode ter uma faca? E muito mais. Humano, simplesmente humano, como a páscoa.

domingo, 26 de março de 2023

É preciso dizer

O dia sem manhã

mas com versos

a abrir caminho

a felicidade pode chegar

através das palavras

muitas vezes

só as palavras têm poder

para tranquilizar

ou demover

é preciso dizer

certas palavras que têm o efeito

de serem as palavras certas

por parecerem certas

ainda que não façam crer

que aquilo que é preciso

que seja

é

ou será.

quinta-feira, 9 de março de 2023

Não alimento mitos

Não te encontro defeitos

amor

mas a vida é imperfeita

por vezes bela

atordoa

estonteia

a aconchegar dois animais

que não cabem dentro de nós

que farejam tudo

e a miragem

na sua humanidade.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

As casas

Havia uma casa no nascente

donde esvoaçavam pássaros

aos raios de sol

pelas manhãs

à passagem da padeira

com sua voz de manteiga

enevoada

a atravessar o rio

num ligeiro batel

e isso era apenas uma parte

da vida nesse lado verde do mundo

dos incansáveis

também havia uma casa no poente

onde se recolhiam as sombras

das tardes

as fadigas desajeitadas

quando a última locomotiva

vinda de muito longe

entrava a roncar

no escuro

com um farol baço de mineiro

e fazia estremecer o cemitério

sem acordar as flores

em sono profundo

junto à linha.

 

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Caminhar sem ver para onde

Na hora de dormir

olhei para as estrelas

e suspirei de preocupação

tinha a vaga ideia

de aquele lugar escuro

ser numa serra

afastada do mar

mas ouvia rebentações de ondas

e rajadas de vento uivante

nas árvores que vergavam

e pensei nas histórias

que ouvi na noite anterior

na taberna

junto às ruínas da ponte

acerca de pessoas desaparecidas

no desfiladeiro dos lobos

onde não há sinais de abrigo

nem trilhos visíveis

fiz de conta

fingindo de monstro

para assustar feras noturnas

e parei com muito cuidado

para não por os pés em falso

era muito arriscado

caminhar sem ver para onde.


domingo, 29 de janeiro de 2023

Paraísos terrestres

Paraísos terrestres

Querer elevar o corpo

Como se tivesse uma alma

Que lhe desse asas

Que o ajudasse a suportar

O peso

Que um pássaro tem

Para descer à terra

E sentir o chão debaixo dos pés

Não ser levado pelas nuvens

Não ser arrastado pelas correntes

E pousar

Oh como é bom pousar

Nos paraísos perdidos.

 

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

O princípio da igualdade jurídica

O princípio da igualdade jurídica, que atingiu pleno reconhecimento ao ser entendido como a essência da Ideia de Direito, que tem estado no cerne do sistema normativo do Estado de Direito Democrático, não se confunde com o conceito de igualdade geométrica, ou química, ou física. Justamente, ela emana do reconhecimento de que não há duas pessoas iguais e isto é muito interessante: a igualdade é o reconhecimento e o respeito da diferença, ou seja, a diferença jamais poderá ser razão de discriminação, sob pena de ninguém ter direito a não ser discriminado, o que seria o caos.

Em meu entender, esta foi a grande clarificação que se fez, desde os gregos atenienses até ao cristianismo e que veio a culminar politicamente nos iluministas franceses.

E não colide nem é hostil à desigualdade de estatuto social, desde que esta desigualdade deva ser respeitada, como devem ser respeitadas as diferenças.

O problema é quando o próprio estatuto social é já efeito da institucionalização de uma cultura de tratamento desigual, de indivíduos, de grupos, de populações, de povos...

sábado, 21 de janeiro de 2023

Natureza e cultura

Diria que, por natureza, nada é bom ou mau. Estes são atributos dos atos humanos entendidos numa escala de valores que são produto da cultura. 

Todo o homem, à luz desta escala, é suscetível de praticar atos bons ou maus. Não se nasce bom, nem mau, mas cada um pode tornar-se bom ou mau e isso não depende apenas de si, ou apenas da sociedade, uma vez que o modo como irá realizar a sua participação no "jogo" social depende de regras que requerem aprendizagem e treino e que, em grande medida, é feito na base de uma batota muito sofisticada.

 

sábado, 14 de janeiro de 2023

O prazer de escrever

Às vezes ainda me pergunto sobre o que me faz intervir com "likes" e comentários, seja em blogues, seja no "facebook". O aparecimento da internet, quanto a isso, veio potenciar imenso o que, para mim, já era um modo de estar na vida.
Em vez de escrever num caderno aquilo que me ocorria, ou de publicar num jornal ou revista, passei a escrever "online" e a experiência foi sendo estimulante e enriquecedora. Em alguns casos poderia ter sido mais interativa, mas depressa percebi que esse caminho não era o meu.
Os meus objetivos foram e continuam a ser um desenvolvimento e um aprofundamento de questões, temas e problemas que me surpreendem quando menos espero, nos quais entrevejo uma perspetiva ou um ângulo promissor.
Não procuro a discussão, nem o debate, nem ser assertivo, nem rebater e não me preocupo com proselitismos de nenhuma espécie. Se for para estar de acordo, se for para dizer amém, se for para parafrasear, não escrevo uma palavra, porque o meu objetivo não é esse.
Divirto-me imenso a escrever e leio e releio o que escrevo, para tentar certificar-me de que não estou a chover no molhado.
Escrever absorve demasiadas energias e demasiado tempo para que o faça só para não estar quieto e calado. É, no meu propósito, um investimento. Acredito nas vantagens de o fazer.
Com o passar dos anos e com o acumular de textos sinto cada vez mais fecunda esta disciplina de organizar as ideias agarrando-as como peças de um puzzle, ou, preferencialmente, como peças de legos, que permitem fazer combinações sempre novas.
Há situações em que os sábios se sentem incomodados se alguém ler o que escrevem e, mais ainda, fizerem algum comentário. Dão a entender que devemos deixá-los a "falar" sozinhos. Mas não podem decidir também sobre o tipo de comentário que aceitam que se faça.
Não ligo a isso, não é assim que funciono e, assim que me dispo do jargão, profissional e burocrático, escrevo como um compositor ou um maestro que tenta dirigir uma orquestra, de autores, para fazer um concerto que seja o menos aborrecido possível.
Por prazer e divertimento, sem constrangimentos, exercendo ao máximo a liberdade de pensar, sem nenhum compromisso com ninguém, a assistir ao surgimento dos frutos que, investir no pensamento crítico, pode dar.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

O amor

O amor nunca é aos poucos

Nunca é pássaro antes de ser mar

Sol antes de ser delírio

Noite antes de se tornar

Canto do entardecer

Dos loucos

O amor

Nunca é aos poucos.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023