segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Hermenêutica

Não vejo como ultrapassar o facto de um texto significar por si próprio e apenas por si próprio. Se o autor vier a terreiro, por exemplo, para explicar o que escreveu, isto já é outro texto. Se o autor vier à praça para discordar da interpretação que alguém faz do que escreveu, está no seu direito, mas não lhe assiste nenhum privilégio interpretativo daquilo que está escrito. 
Por exemplo, o legislador faz textos, sob a forma de normas, mas não tem competência para os interpretar vinculativamente. Isto para mim é muito claro. 
Se, por exemplo, alguém interpreta o que escrevo de um modo que me aparece inepto e sem apoio na letra, na lógica, no contexto e no sentido que é possível e legítimo esperar e exigir que um leitor normalmente competente reconheça, só me resta discutir isso e, embora seja eu o autor, não estou garantido só por isso de que o meu intérprete não tenha mais razão. 
Há inúmeros casos, alguns que ficaram célebres, de autores que acabaram interpretados de vários modos sem que, ao menos, um deles correspondesse àquilo que eles diziam pensar e defender. E pouco, ou nada puderam fazer contra isso. Estou a pensar em Karl Marx, que não se revia no marxismo, mas podia referir outros casos emblemáticos.
Agora, não deixa de ser aliciante e desafiante pensar o problema em termos de, por exemplo, alguém querer dizer, e menos ensinar, marxismo a Marx, ou cristianismo a Cristo, ou o padre-nosso ao vigário.
Nestes casos, porém, já não estamos apenas a interpretar textos, que valem o que valem e não aquilo que os seus autores queriam ou querem, mas a configurar situações em que um movimento, uma corrente de pensamento, a doutrina, enfim, já está distanciada das fontes, ao ponto de não se poder confundir o rio com a nascente.
O autor dos textos não tem como impor ao intérprete a sua própria interpretação. 
O intérprete pode, inclusivamente, ser mais arguto, competente, culto, ter mais repertório e talento do que o autor. Normalmente, o autor ganha muito com intérpretes deste jaez e perde muito com intérpretes mais limitados.
 Carlos Ricardo Soares

sábado, 12 de agosto de 2023

Viver dos problemas

O que eu penso é que a vida passa e os problemas não, ou por outra, os problemas vão-se resolvendo e a vida não, ou ainda, nem todos temos problemas, mas todos pensamos em problemas e muitos arranjam problemas por tudo e por nada. 
Já tenho encontrado pessoas que, espantadas, reconhecem nada lhes faltar, nem saúde, nem dinheiro, nem estatuto social, nem amor, nem paz, terem tudo em abundância, mas viverem atormentadas com problemas filosóficos, insolúveis e graves problemas da cabeça e do entendimento. 
São bons de contas de mercearia, campeões do negócio, grandes farmacêuticos, engenheiros da ferrovia, nobéis da literatura, vencedores de guerras, filhos de Deus, batizados de luz divina, sacerdotes da vida eterna, teólogos da profecia, portentos do oráculo... 
Mas claudicam na hora de reconhecerem que têm problemas, muitos, para os quais nem que soubessem a resposta, deixavam de ser problemas. 
Já encontrei gente feliz, mas eram felizes com seus problemas e, se não fossem esses problemas, provavelmente não seriam felizes como são, porque, de algum modo vivem deles.
 Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Relaxar e produtividade

O conceito de produtividade é muito elástico e deveras interessante. 
Dada a sua conotação económica, quase dogmática e moralmente imbatível, permite que o usemos para fazer estilo em qualquer contexto, que em todos cai bem, ainda que seja de muito mau gosto e falta de etiqueta falar de produtividade num piquenique de férias. 
Mas, sim, há que manter a produtividade, não dar férias à produtividade, as férias são nossas não são da produtividade. 
A produtividade que se amole, queremos é relaxar. E isto pode ser muito, mesmo muito, produtivo.
 Carlos Ricardo Soares