domingo, 27 de junho de 2010

Lutamos contra a ignorância e o erro



Não lutamos apenas contra a ignorância. Também lutamos contra o erro. E, por motivos muito diversos que aos interesses humanos dizem respeito, somos induzidos a ignorâncias e a erros contra os quais não estamos imunes e precisamos de nos precaver. Travamos estas lutas, intermináveis, com os instrumentos de que dispomos de observação e de análise e, na dúvida, com reservas, à defesa, advertidos da falibilidade das premissas, das conclusões e do próprio processo intelectual do conhecimento, para já não falar do reducionismo e das condições da comunicabilidade do conhecimento.



sábado, 26 de junho de 2010

Realidade e discurso (sobre a mesma)



Por um lado temos a realidade, os fenómenos observáveis. Por outro, temos as representações dessa realidade e o discurso sobre a mesma. As leis do pensamento e da linguagem e do intelecto mostram-se muito toscos instrumentos de análise e de compreensão dos fenómenos. Mas, ao mesmo tempo, são eles que nos permitem reflectir criticamente sobre os próprios limites e as contingências das linguagens. Em parte, será porque o acesso a essa realidade é condicionado à partida pelas características desses instrumentos. Noutra parte, o acesso à realidade é fortemente condicionado pelo nosso interesse na mesma.
A tendência para considerarmos que o que não observamos não existe ou que só existe o que conseguimos abarcar é por sua vez uma determinante. Noutra parte, ainda, o que observamos e o que podemos concluir sobre o que observamos não é mais do que aquilo que esses instrumentos alcançam. Um dos aspectos em que esses instrumentos se revelaram surpreendentes foi a capacidade de se observarem e analisarem a si mesmos e de produzirem e desenvolverem instrumentos com capacidades cada vez maiores de observação e de análise. 



quinta-feira, 24 de junho de 2010

Ele disse «Deus não existe». Isto é uma contradição




Ele disse «Deus não existe». Isto é uma contradição. Ainda assim, encontrar o Deus filosófico ou cosmológico não é o encontro com o Deus Vivo e não resolve todos os problemas que Deus nos coloca. E os problemas que Deus nos coloca não são problemas teoréticos. Qualquer abordagem literal dos textos sagrados está condenada ao fracasso. Mas qualquer que seja a abordagem desses textos ela não nos dará respostas a qualquer tipo de perguntas. E coloca-nos sobretudo interrogações sobre nós próprios, sobre a nossa relação com os outros, sobre a nossa condição humana, sobre a vida, sobre Deus. Ao lê-los, a nossa inteligência, os processos de conhecimento, discursivos e não só e de comunicação, estão constantemente postos em causa.

domingo, 20 de junho de 2010

O Velha - X




A rádio local dedicou um programa especial à morte do Velha. O Amante de Catástrofes fez questão de prestar homenagem a esse homem de quem lhe disseram três coisas: que lhe chamavam Velha, que se apresentava como Alberto Caeiro e que era pastor de transístores. Abriu o programa com rajadas de metralhadora e, após um silêncio sepulcral, declarou, num tom declamatório «assalto e assassínio de um desconhecido».
Os dois repórteres, incumbidos de lhe trazerem notícias do Velha, foram as primeiras pessoas a ser informadas da sua morte, no hospital, onde se deslocaram para tentarem levá-lo ao estúdio para ser entrevistado.
Dois dias antes tê-lo-iam encontrado de perfeita saúde e teriam tido oportunidade de dar a conhecer um pouco da história da própria vida que ele fosse capaz de contar. Mas agora era tarde e ninguém poderia ajudá-los, nem com depoimentos. Por sua vez, as informações do hospital eram lacónicas. Até o nome que constava na ficha de internamento não era aquele pelo qual o Velha era conhecido. E diziam uma hora e uma data do falecimento, mas nenhuma referência ao nascimento, morada, naturalidade, ascendência…
Além disso, sabiam que tinha sido assaltado e agredido, depois das aulas à noite, a caminho de casa e que a polícia lavrou auto da ocorrência. As suas atenções, agora, estariam voltadas para a investigação e eventual descoberta do(s) autor(es) do(s) crime(s).

sábado, 12 de junho de 2010

O Velha - IX


O quadro clínico do Velha agravara-se e não havia ninguém referenciado como familiar ou amigo a quem o hospital pudesse comunicar a situação. A última pessoa com quem ele tinha vivido falecera dois dias antes dele se despedir da Serra Alta e de, ao chegar a Pérolas Falsas, chorar de inconsolável tristeza. E já tinha passado perto de um ano.
Era a tia-avó Anja, abandonada à solidão, numa aldeia de mais de cem casebres vazios, de portas e janelas escancaradas, cada vez menos visitados pelos fantasmas da memória enferma ao ponto de a ensurdecer e cegar a maior parte do tempo, desde que se levantava até que adormecia.
Com o seu rebanho de transístores, o Velha distraía-se de a ver, àquela que o criara de pequeno, que não conheceu pai nem mãe, nem lhe disseram alguma vez se eram vivos.
Com os anos, ele cresceu e a tia, envelhecendo, deixou, pouco a pouco, de o reconhecer. O Velha não saberia dizer a idade com que ela, arrastando o pesado corpo, no inverno, se deslocava para onde houvesse sol e, no verão, para onde a água fresca cantasse na fonte.
E não sendo capaz de, por si só, regressar a casa era ele quem, incerto de ser ouvido, a guiava, falando todo o tempo do doloroso e lento percurso sobre calhaus rolados, certamente pré-históricos, até aos cinco tormentos que era subirem cinco degraus de granito da escada desmantelada da entrada. A tia-avó, sem poder comentar, gemia e chorava, amparada ao sobrinho-neto e ao cajado cujas marcas da passagem do tempo haviam sido já por este apagadas. Quando, finalmente, chegavam à cozinha ela esperava que ele pusesse na mesa algum alimento para debicarem.
Também foram assim os derradeiros momentos da vida dessa mulher de quem não se sabe se chegou a pensar que o mundo existia para lá da Serra Alta. 

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O Velha - VIII



O Amante de Catástrofes, como era conhecido o director da rádio local, correu mundos e fundos para encontrar o Velha. Assim que soube do interesse do pastor por transístores, pela primeira vez, desde que se dedica a noticiar catástrofes, deixou de dormir por um motivo diferente, para poder pensar num programa de que o Velha fizesse parte. Antes, porém, era preciso encontrá-lo e convencê-lo a participar. Depois de cinco dias de buscas infrutíferas, só conseguiu saber que estava hospitalizado por ter sido assaltado e agredido, quando regressava das aulas no ensino nocturno. Entrou no estúdio, ainda de madrugada e, antes de ir para o ar, ordenou aos repórteres de serviço «desta vez suspendam as reportagens de catástrofes; com um pouco de sorte, haverá um dia sem que ocorra alguma, e tratem de encontrar o pastor alucinado por rádios. Procurem-no no hospital. Quero entrevistá-lo, se possível, em directo.» Um dos repórteres, impensadamente, retorquiu «mas, ó chefe, olhe que isso pode ser uma catástrofe!». Sem contemplações, o Amante de Catástrofes ripostou «Deixe-se de ironias e traga-me notícias desse homem». 


segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Velha - VII



O Velha mexeu-se. Estava a acordar da anestesia geral. O cirurgião que o operou inclinou-se para ver-lhe os olhos. A médica anestesista perguntou-lhe «está bem? Como se chama? Qual é o seu nome?». «Fernando Pessoa», respondeu. O cirurgião arregalou os olhos e abanou negativamente a cabeça. A anestesista insistiu na pergunta «Como? Qual é o seu nome?». «Álvaro de Campos», voltou a responder. Desta vez ambos os médicos esboçaram um sorriso. E consultaram a ficha clínica. Ovelha era o nome que lá constava. «Não se levante, não se esforce. Está tudo bem, não está?».
O Dr. Pedrinho olhou para a Drª Água, tirou os óculos com uma das mãos e, com a outra, massajou suavemente os olhos cansados. «Não se esforce, deixe-se estar em repouso.»
O Velha pôs-se a falar com muita lentidão e alguma dificuldade. Os médicos ficaram à escuta. «Sobe ao pódio dos teus pés/Que o prémio te sinta /Mesmo que não sejas vencedor/Te diga que o és/Canta o hino /Que aprenderes/A olhar para longe /Do que fores/Capaz/Que o silêncio/No fim /Seja murmúrio/De paz.»

quinta-feira, 3 de junho de 2010

À vista do céu



Aprende-se a morrer
Sem ter vivido
Mas ninguém sabe

São muitas e belas e o poder
Das horas
Derrota as memórias
Como se não fossem
Vitórias

Vive-se de promessas
E de esperanças
Mas não de certezas
Enquanto cintilam
Estrelas

Do que é desejado
A alegria
De acreditar

Na plenitude da terra
À vista do céu.