sexta-feira, 28 de junho de 2024

Perdigão perdeu a pena não há mal que lhe não venha


Quando Camões regressou da Índia e aportou em Cascais a bordo da nau Santa Clara em 7 de abril de 1570, já não via Lisboa, desde 1553 e teve de esperar umas semanas, antes de desembarcar, por causa da peste que grassava em Lisboa. Quando aqui chegou, os cenários, com que deparou nas ruas , eram do mais tétrico, o número de mortos e de mascarados, com máscaras em funil, que tornava as coisas ainda mais tenebrosas, era aterrador e, ainda assim, tinha a vaga esperança de reencontrar a mãe viva. Esta, se o fosse, provavelmente, não o esperava, nem o reconheceria e tê-lo-ia por morto.
Caminhava com uma pequena bagagem, de manuscritos, que lhe era preciosa. Ia no sentido do sítio onde vivera, antes de partir, para a longa viagem de navegação, há 17 anos. Depois de ter indagado um moribundo, na esperança de ouvir dizer que sua mãe estava viva, parou um pouco a cismar e sentou-se num degrau a meio das escadas que lhe traziam lembranças complicadas... Isto daria um romance, não é?
A máscara até não é muito difícil de aceitar, já nesses tempos em que as epidemias impunham quarentenas.
Camões foi, realmente, um perdigão azarado. De mal a pior, não sabemos com que estado de espírito acompanhou a azáfama, as incertezas e agoiros que estalaram nos preparativos da campanha para a batalha de Alcácer Quibir, que viria a ser travada no norte de Marrocos perto da cidade de Alcácer Quibir, entre Tânger e Fez, em 4 de agosto de 1578, nem como viveu e comentou essas graves crises, como podemos supor que o fizesse. Também não sabemos o estado de espírito com que soube da derrota portuguesa, com o desaparecimento em combate do rei D. Sebastião e o aprisionamento ou morte da nata da nobreza portuguesa. 
Na falta de qualquer registo escrito do próprio Camões, ou de testemunho de declarações, ou de posições que tivesse tomado acerca de assuntos tão relevantes e tão graves para o reino de Portugal, não deixam de abrir-se à nossa imaginação esses dolorosos e trágicos tempos, que já lhe não coube, como grande poeta, tratar, apesar de os ter vivido com grande proximidade e presumível sofrimento, pelo sentimento de perda e desaire brutal que se abateu sobre os portugueses, cerceados assim os últimos laivos de pretensão à glória pátria da expansão trágico-marítima dos egrégios avós. E ainda assistiu à crise política e às lutas de sucessão ao trono, com a consequente perda de independência de Portugal, em 1580, ano em que morreu, dez anos após o seu regresso do oriente.
Uma biografia com um balanço em que as dificuldades, o sofrimento e a tragédia, mormente dos últimos dez anos da sua vida, levaram de vencida o homem, mas não obliteraram a obra.


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