"Ser feliz é uma actividade que requer toda uma vida e não pode existir em menos tempo" - Aristóteles, Ética a Nicómaco
domingo, 22 de dezembro de 2024
Este Natal
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
Literacias e literacia financeira
Das múltiplas áreas da Educação para a cidadania, a literacia financeira apresenta-se a si mesma como um manequim de alta costura vestido à custa dos que só se podem culpar a si mesmos de alguma vez terem acreditado que se pode ganhar dinheiro seguindo os conselhos e artes mágicas dos prestidigitadores que a si mesmos se intitulam de financiadores da economia e garantes do sistema monetário nacional e internacional.
Nada mais aliciante para quem aspira a essa espécie de estrelato e tem a autoconfiança necessária para não temer as alturas dos truques e dos malabarismos desse mundo tanto mais desconhecido quanto mais se apresenta como objeto de literacia primária generalizada.
Tudo simples, tudo legal, tudo bem intencionado, mas até os mais jovens suspeitam e não confiam nessa forma de publicidade com seu quê de libidinoso.
Assim, mais do que alfabetizar para um mundo a que estamos umbilicalmente ligados pelos fluxos monetários, do que se trata é de uma espécie de anestesia preparatória para a aceitação indolor da agulha ou da faca.
Chamar formação ou consciencialização para a cidadania à campanha de descrição do papel e importância social e económica da função financeira e monetária das instituições financeiras, nomeadamente bancos, seguradoras e bolsas/mercados de valores, como pilares fundamentais dos circuitos das economias, até faria sentido e seria da máxima importância para os formandos cidadãos se em vez de ser no formato de cartilha de promoção e de validação das instituições promotoras, fosse no formato de análise crítica da realidade histórica desse tipo de instituições, nomeadamente quanto ao facto de serem instituições de capital alheio que assentam fundamentalmente num esquema sofisticado de pirâmide em que, invariavelmente, quem chega ao topo não lega às bases. Ou, para usar palavras mais simples, seria bom se a literacia financeira tivesse como objetivo e interesse central apresentar a realidade do poliedro das instituições financeiras e as regras desse jogo de espelhos, tantas vezes envergonhados, dos perdedores, sem esquecer de denunciar a batota dos ganhadores.
Mas os promotores da literacia financeira preferem fingir não compreender e desdenhar dos embirrentos, ao mesmo tempo que não ignoram que estas críticas são demasiada areia para a camioneta dos formandos cidadãos e que estes preferem surfar na onda dos ademanes do manequim de “haute couture”.
Carlos Ricardo Soaresdomingo, 1 de dezembro de 2024
Aproximações à verdade - XXXI - Dia da Restauração da Independência
Hilário: já acabaste de ler a biografia de Camões?
Amiga: esta sim, mas ainda não li a que ainda não acabei de escrever
Hilário: também estás a escrever uma biografia de Camões?
Amiga: não é bem escrever, é mais imaginar do que construir, construir dá ideia de um puzzle, de andar a juntar peças
Hilário: sou leitor entusiasta de biografias, mas quando tento falar delas sinto que há uma distância intransponível entre a minha imaginação e aquilo que é comunicável
Amiga: Camões é um dos Lusíadas mais notáveis e fascinantes, mas não consigo dizer o que sinto e o que penso que me leva a afirmá-lo
Hilário: não se fala de Camões e, sobretudo, não se pensa em Camões como num indivíduo, acerca do qual pouco se sabe, que escreveu poemas e um livro
Amiga: não se fala em Camões como se fala em Camilo Pessanha, ou em Fernão Mendes Pinto, por exemplo
Hilário: quanto mais tentamos imaginar e colocarmo-nos na pele da sua humanidade, da sua humana experiência, vida, conhecimento, arte e obra, mais nos deparamos com um protagonista que, surpreendentemente e por razões de sobejo, podia ser a principal figura dos Lusíadas
Amiga: se estás a pensar o mesmo que eu, paradoxalmente, Camões não teve quem o escrevesse, quem o inscrevesse nos Lusíadas, como ele inscreveu Vasco da Gama
Hilário: mas a voz dele está lá, e o nome, e muitas ressonâncias que nos fazem desejar entender o verdadeiro significado das palavras e dos simbolismos que nos seduzem e ocupam tanto
Amiga: Camões é um personagem que nós temos de criar nos seus próprios termos, da sua experiência, da sua arte e elevação, segundo as condições e acontecimentos do seu tempo
Hilário: poeta que escreve para o mundo do seu tempo, que o hostilizou e ele conheceu com uma acuidade e envolvência singulares, numa ambivalência de amor e ódio, donde partiu amargurado e ao qual voltou, não menos dificilmente do que tinha partido dezassete anos antes, ainda para realizar os seus objetivos, que a vida dá muitas voltas, que eram fazer-nos ouvir a sua voz, uma voz de outros mundos
Amiga: para mim, que sou uma estudiosa de Camões e do seu tempo, há um Portugal antes de Camões e um Portugal após Camões e ele tinha a percepção dessa realidade
Hilário: achas que ele sentiu um choque quando comparou os Lusíadas do poema com os lusíadas com quem passou os últimos dez anos de vida?
Amiga: acho que ele sentiu a confirmação da grandeza do seu poema épico
Hilário: mas Portugal estava numa rota de crescentes dificuldades e decadência
Amiga: a grandeza de Portugal sempre se manifestou nas dificuldades e na decadência, assim como a grandeza de Camões se manifestou na forma como viveu, sublimando os obstáculos e os desaires em etapas de um percurso e obra cujo significado não se obtém senão pela perspetiva histórica
Hilário: Camões e os navegadores portugueses dessa época comungavam de um sentido de abnegação muito grande como se tivessem a noção de que eram personagens de uma narrativa maior que eles, pela qual estavam dispostos a dar tudo
Amiga: eles tinham a noção de que estavam a fazer grandes descobrimentos e grandes obras originais, em que se tornariam, indissociavelmente, as suas vidas.
Carlos Ricardo Soaresterça-feira, 26 de novembro de 2024
Razões de queixa, direito de queixa e Direito
O direito de queixa é uma conquista histórica e institucional das razões de queixa. Alguém com razões de queixa é alguém que se perfila perante um responsável por dano ou ofensa, exigindo desagravo, restauração e punição.
Esta capacidade para se perfilar e exigir, a maior parte das vezes, não existe de facto e, quando existe de facto, a maior parte das vezes, é por si mesma um factor de prevenção suficiente. Quando não existe, resta a proteção de um grupo, ou do Estado, para promover o direito de queixa e subsequente tramitação. O que é notável e louvável no Direito, como sua génese essencial, é não poder ignorar as razões de queixa.
Se os sistemas jurídicos mundiais, mais ou menos estaduais, religiosos ou laicos, tivessem capacidade e vontade para reconhecer e atender as razões de queixa, reconhecendo o direito de queixa e responsabilizando efetivamente os autores dos danos e das ofensas, impondo-lhes a obrigação de restaurar as situações até onde for possível e sancionando-os devidamente pela sua conduta censurável, os litígios desmultiplicar-se-iam e seriam evitados à partida por uma legislação que dirimisse preventivamente as razões de queixa.
Que sentido faria o Direito, em geral e abstrato, se não houvesse razões de queixa? E, ao reconhecer essas razões, o Direito não pode ignorá-las e tem de ser a melhor resposta para elas, nomeadamente, consagrando o direito de queixa.
Ora, nenhum direito será Direito se houver razão de queixa dos direitos.
Carlos Ricardo Soares
quarta-feira, 20 de novembro de 2024
Valores, princípios e condutas
Uma vez formulados, conhecidos, aceites, estabelecidos, dificilmente ou nunca serão postergados sob pena de se estar a infringi-los. Este poder, que não devemos confundir com o poder formal que a autoridade confere à lei, é o verdadeiro dever/poder ético-jurídico que serve de critério de justiça da própria lei.
Aliás, se julgarmos toda e qualquer ação, ou sanção, segundo a ideia de direito, segundo a qual toda e qualquer ação, ou sanção, deve respeitar e obedecer a algo, este dever pressupõe que esse algo seja a melhor das possibilidades.
O problema não surgiria se, por hipótese que não se verifica no reino dos humanos, as acções de uns não entrassem em conflito com as de outros. Infelizmente, a existência de normas que consagram os valores e os princípios de direito servem para indicar o que é direito, o que se deve ou não fazer, para advertir e prevenir para as sanções, mas não são como as vacinas que imunizam os organismos, neste caso, para fazerem o que devem, ou, pelo menos, para não fazerem nada que não devam.
Ainda não foi descoberta uma metodologia que preveja, garantidamente, quem e quando deve ser impedido de praticar actos proibidos.
Quanto aos métodos para fazer com que os indivíduos e os grupos e os exércitos façam o que devem e se abstenham de fazer o que não devem, eles existem mas têm uma eficácia que deixa muito a desejar.
Não quero deixar de concluir que, também neste cômputo, a medida da nossa frustração e da nossa incapacidade para alterar a realidade é dada pelos valores e princípios de direito que não conseguimos fazer valer como desejamos.
sexta-feira, 15 de novembro de 2024
Aproximações à verdade - XXX
Hilário: a poesia é o que te falta
Quando pensas que tens tudo
Amiga: e é o que te resta
Quando sentes
Que tudo o que tens
Não importa
Hilário: essa oxidação
Das dores e das agruras
E dos sangramentos
Amiga: que fermentam
Em vinhos inebriantes
Ou em divino vinagre
Hilário: que nem aos deuses
Nem ao diabo
Dispensas
Amiga: por mais que ergam as taças
Suspensas como uma maldição
Hilário: dos mortais vingados
Como cangaços no alambique
Amiga: libertam álcoois etéreos
Com que se enaltecem
Mais que perfeitos.
Carlos Ricardo Soaressábado, 2 de novembro de 2024
Lina 6
Procurava impressões digitais
Na capa das revistas
Espalhadas pelo chão
Qualquer indício
De alguém furtivo
Como um sonho
Um espectro
Ou pégada ninfomaníaca
Naquele refúgio secreto
Sentia-a tão perto
Que quase tocava nela
Mas ela tocava em mim.
Carlos Ricardo Soares
sexta-feira, 1 de novembro de 2024
Lina 5
Nunca tinha visto coisa tão Lina
Nem lugar tão bom
Ali na estufa
Todas as coisas eram eróticas
Não sei se embriagado
Pela adrenalina
Que não sentia
Se pela fantasia
Dos teus seios palpitantes
Para onde quer que olhasse
Desejava avidamente
Podê-la encontrar
Carlos Ricardo Soares
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
Lina 4
Seguia-te sem pestanejar
Fascinado pela desenvoltura
Com que alçavas o saiote
Encantado pela censura
Com que punhas a mão
No decote
À portinhola da estufa
Dizias em surdina
Quase a pedir
Devagarinho que a Lina
Não nos pode descobrir
Carlos Ricardo Soares
terça-feira, 29 de outubro de 2024
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Lina 1
Está muito frio
Dizias-me ao ouvido
Calorosamente
Ali é a estufa
Só ela
Pode entrar ali
A Lina
A estouvada
Leviana de mil enigmas
Carlos Ricardo Soares
terça-feira, 22 de outubro de 2024
Penso que existo mas seria incapaz de prová-lo
Admito que, em grande parte, as questões do facto e da prova do mesmo não são redutíveis à questão da verdade. Esta é mais do que o facto e do que a prova.
Historicamente, os filósofos deram-se conta de que a linguagem, os sistemas de codificação e descodificação, tal como acontece atualmente com os sinais de rádio e de televisão, e dos sistemas de codificação informáticos, são por si mesmos uma realidade acerca da realidade que levanta problemas, não apenas práticos, mas também teóricos.
As religiões tentaram resolver, ou contornar, ou responder ao problema do ser com «não sabemos o que é o ser mas sabemos aquilo que ele deve ser».
Os filósofos depararam com este problema maior e questionaram «o ser deve ser o que é ou o que sabemos que deve ser?».
sexta-feira, 27 de setembro de 2024
Todos os caminhos vão dar a Roma
Eu afirmo: factos são factos, naturais ou culturais, coisas, objetos e, em relação a eles, digo que não são verdadeiros, nem falsos, porque verdadeiro ou falso não é da ordem do facto, nem do objeto, é da ordem do discurso, da linguagem, sobre o objeto.
Uma maçã ou um burro não são verdadeiros nem falsos. Mas estas minhas afirmações podem ser questionadas como verdadeiras ou falsas. Ainda que suscitem questões de “porquê?”, “para quê?”, “como?”, o questionar, o mandar, o aconselhar, o manifestar gosto, preferência, ou vontade, não são problemas de verdade ou falsidade. Estes existem quando se está perante afirmações acerca de algo, de alguma realidade.
Se tu disseres “segue o teu caminho” ninguém te acusará de seres verdadeiro ou falso, mas se disseres “o melhor é seguires o teu caminho”, ganha pertinência o problema da falsidade ou verdade da tua declaração, ainda que, neste caso, esteja referida a uma opinião, valoração subjetiva. Mas se disseres “esse caminho não leva ao lugar para onde queres ir”, o problema torna-se mais claro e, mais ainda, se especificares o lugar, por exemplo, “esse caminho não vai dar a Roma”.
Carlos Ricardo Soares
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
O poema, a fonte da poesia e a poesia
Nada que alguém possa prometer, que alguns podem tentar, mas nem tudo dependerá do poema, nem da fecundação, porque nem tudo depende das nossas escolhas, que podemos fazer, e o mais importante, muitas vezes, depende das escolhas dos outros, que não podemos determinar ou sequer influenciar, coarctar, impedir.
Por mais angustiante que tal pareça, há poemas e muitas prosas com a poesia do orgasmo de acreditar, esperar, desejar, tentar escolher ser escolhido, ainda que num sentido estético, ético, moral, afetivo, sexual, lúdico, ou outro, onde a fantasia está, interminavelmente, cada vez mais perto de ser realidade.
quarta-feira, 11 de setembro de 2024
Ninguém é professor por defeito
A dificuldade de conhecer a Escola é notória e é imensa.
Este é um tema que me é muito caro em cada abordagem que faço de qualquer assunto.
Se antes de lermos um texto tivéssemos alguma maneira de saber o que ele diz, isso evitaria que o lêssemos caso não nos interessasse.
Há uma dependência arcaica, tendencialmente diferenciadora e exclusivista, dos discursos linguísticos e da linguagem simbólica, da cultura livresca, focada no significado e no suposto valor da linguagem, que não deve ser promovido pela Escola, nem como sua principal razão de ser, nem como sua função primordial, nem como seu horizonte preferencial.
A Escola estaria condenada ao fracasso se fosse tão basicamente organizada à volta e por causa das aprendizagens especificamente dirigidas ao sucesso académico tal como ele é entendido num dado momento.
Aliás, é necessário libertar a Escola do academismo pernicioso em que alguns académicos bem sucedidos não devem ser apresentados como prova da sua bondade nem como justificação da sua eficiência. Julgo que todos sabemos que não é para isto, ou só para isto, que a Escola pública deve ser desenhada.
De qualquer modo, não me parece que a Escola alguma vez, fosse com que meios e recursos fosse, tivesse capacidade para realizar mais ou diferente do que aquilo que a realidade indivídual, social e cultural proporciona e permite operar.
Não há como dispensar os contributos das ciências humanas e sociais, nomeadamente as psicologias, as neurociências, as ciências da educação, a sociologia, e outras, não apenas para saber educar mas também como ensinar. É fundamental que se saiba boas formas de ensinar e de aprender, que se desenvolvam boas práticas de ensino e de aprendizagem, que se conheçam métodos e procedimentos adequados de avaliação e de classificação. E, já agora, que se esteja a par dos recursos existentes e disponíveis, bem como da utilização das ferramentas mais eficazes em cada situação, tanto para quem ensina como para quem aprende.
domingo, 25 de agosto de 2024
Aproximações à verdade XXIX
Hilário: tenho andado a tentar perceber porque é que, passados sessenta anos, ou mais, desde que ouvi falar de Luís de Camões, cada vez me fascina mais o homem e menos o mito
Amiga: Camões, para mim, só não é um personagem de uma história de ação, porque era poeta e escreveu os Lusíadas
Hilário: não há como separar o homem e a obra
Amiga: não há como separar o homem, a obra e o tempo, a história, o contexto histórico
Hilário: o tempo, a história, o contexto histórico, sem Camões, seriam entendidos de modo diferente
Amiga: grande parte da visão que temos de Portugal desse tempo é-nos proporcionada por Luís de Camões, nascido há 500 anos
Hilário: é admirável e genial este português, tão situado no tempo dos descobrimentos e tão pouco distanciado dos factos da história de Portugal, ter congeminado uma visão tão rica e tão realista dessa história
Amiga: o fascínio de que falavas há pouco deve estar associado ao facto de que, no caso de Camões, a realidade supera sempre a imaginação e o mito
Hilário: é isso, ele faz parte da história, não como outro cidadão que, como ele, embarcou e, porventura, como ele, tenha regressado, mas como protagonista da sua própria epopeia
Amiga: que serve de simbologia espantosa para a epopeia dos Lusíadas
Hilário: foram 56 anos de vida, entre 1524 e 1580
Amiga: Camões pouco escreveu sobre si próprio. Quem não conhecer a obra e a história do homem, dentro da história de Portugal, não entende nada do que estamos a falar.
Carlos Ricardo Soares
quinta-feira, 15 de agosto de 2024
O sonho comanda a vida II
Voltando ao meu texto anterior, à cultura como todos os atos (processos conscientes/racionais/individuais de escolha, num quadro de possibilidades) de manifestação, objetivação, objetificação, e factos correspondentes, parece legítimo pensar que as filosofias, as ciências, as artes, as engenharias, as letras (línguas, literaturas), as religiões, os valores, os desportos, os ofícios, os usos e costumes, têm em comum o processo de escolha, consciente/racional/individual.
Assim, só para exemplificar, Moisés, Platão, Santo Agostinho, Copérnico, Galileu, Camões, Pedro Nunes, Descartes, Napoleão, Kant, Newton, Darwin, Einstein, em suma, todos nós, quando praticamos um ato (processo mental, tal como o defino supra), seja ele apenas mental, sobre algo muito trivial e automatizado, ou sobre algo inaudito, original e complexo, seja ele de manifestação exterior, com mais ou menos intencionalidade significativa e de comunicação, estamos a operar funções neurológicas e mentais que poderíamos descrever e mapear como funções comuns. Do mesmo modo que dizemos que todos nós, quando andamos, temos um corpo com pernas que se movem uma a seguir à outra. O que nos distingue não é esta função, ainda que o não façamos como se fossemos réplicas perfeitas uns dos outros.
Não obstante, enquanto podemos observar o modo como andamos e analisar anatomicamente a estrutura que suporta e permite o processo de movimentos e de atos que envolvem caminhar, já o mesmo não acontece com o ato de pensar, de escolher, de executar mentalmente.
Falar de anatomia de um pensamento? Só em sentido metafórico, mesmo que quiséssemos referir-nos não ao pensamento mas ao suporte físico, neurológico, em que ele ocorre.
Devemos, então, considerar que a situação dá azo a um problema epistemológico severo, tanto no que concerne à fisiologia mental do ato, qualquer que ele seja, como no que respeita às fases do processo do ato, enquanto fenómeno mental consciente e racional, como o defino.
quarta-feira, 14 de agosto de 2024
O sonho comanda a vida I
domingo, 4 de agosto de 2024
Senso comum
Se não tivesses sido sensata
Teríamos partido à aventura
Talvez até devorados
Por crocodilos emboscados
Mas a tua bússola interior
Não me confirmou
E tu
Sensatamente
Continuaste ancorada
Nas miragens da sede
De quem tem febre
Talvez tudo tivesse sido pior
Em qualquer caso
Carlos Ricardo Soares
segunda-feira, 22 de julho de 2024
Ainda sobre o problema da existência/essência
terça-feira, 16 de julho de 2024
A controvérsia
Lá está a controvérsia
Por acaso
Controvertida
De sempre amiga
E controvertível
Em versos e inversos
Dis e indis ponível
Nas luas da idade
Vaga mente opo nível
A questão é essa
Se é possível que algo
Faça perder a cabeça
Ainda que nos saúde.
Carlos Ricardo Soares
sexta-feira, 28 de junho de 2024
Perdigão perdeu a pena não há mal que lhe não venha
quinta-feira, 20 de junho de 2024
Eclipses
O eclipsar das luzes
Não é para todos os olhos
E dura o instante
Impecável
Da geração do escuro
Todos têm acesso
A uma lanterna
Na escuridão
Que dura um tempo
Suficiente para criarmos
Todas as fantasmagorias
Até os quadros mais antigos
Retratam a decadência nascente
Do que virá a ser
Decadente
Até as fotografias captam
O instante
Em que as luzes deixam
De iluminar
O momento seguinte.
Carlos Ricardo Soares
quarta-feira, 5 de junho de 2024
sexta-feira, 31 de maio de 2024
A lira
quinta-feira, 16 de maio de 2024
Se desvelam
Se desvelam
É muito mais o que
A si revelam
Se aos olhos
Mostram
Promessas
Talvez só
Na imaginação
A pujança
Tão delicada
Da dança
Dos sentidos
É uma explosão
Tão subtil e disfarçada
Que nem parece
Que não estão
A mostrar nada.
Carlos Ricardo Soares
quinta-feira, 25 de abril de 2024
A bandeira da Liberdade
A bandeira da Liberdade. Porque abril é sempre primavera.
A minha esperança na educação, como no resto, é fruto da minha constatação,
desde sempre, de que, em liberdade, havendo condições de liberdade, a cultura, por si mesma, gera progresso. Ou seja, o progresso é inerente ao processo cultural, que é o processo pelo qual o homem,
em liberdade, escolhe o melhor, no quadro das possibilidades.
A Educação deve abster-se de agitar bandeiras.
A única bandeira, se houvesse uma, que ficaria bem à Educação,
seria a da Liberdade.
O conceito de progresso é muito problemático e quando vejo alguém a usar o termo como uma bandeira fico preocupado, mesmo que esse uso se tenha banalizado, ou faça parte
daqueles lugares comuns a que todos torcem o nariz e ninguém é capaz de dizer não.
Quando é um grupo, ou um partido, seja de humanistas, da verdade, de Deus, ou de outra coisa qualquer, a agitar
a bandeira de progresso, ainda fico mais preocupado.
É na Liberdade, no quadro das possibilidades, subjetivas e objetivas, que o indivíduo opera as suas escolhas (e não as dos outros), e estas devem
ser o mais livres possível, não devem ser tolhidas com repressões e opressões e práticas de submissão que se reproduzem em espirais de discriminação, de desigualdades,
de violência e de injustiça.
Sabemos que só há um modo de o indivíduo realizar e exercer as suas capacidades e aptidões mentais conscientes a que não temos diretamente acesso: é pelo processo do seu próprio pensamento, pela sua racionalidade, pelo “cruzamento de dados e de informações” que opera. Não sabemos o que vai na sua cabeça, mas podemos, até um certo ponto, saber que cada cabeça sua sentença. Cada indivíduo é uma instância moral irredutível, ainda que não seja uma instância irredutível de conhecimento.
De qualquer modo, e também por isso, os efeitos, as consequências, as implicações, os imprevistos, a criatividade, a inovação, da Educação,
tirando um escasso espectro de adestramentos e de manifestações de competências aprendidas, que são normalmente avaliadas e classificadas para fins académicos e profissionais, extravasam imensamente
tudo o que se possa imaginar. Caso para dizer que há mais vida para além da Educação.
Onde as pessoas têm liberdade de escolha o progresso acontece "naturalmente", diria mesmo
que só na liberdade de escolha o progresso acontece como um determinismo. E isto deve dar-nos esperança e tranquilidade, desde que asseguremos a tal liberdade sem a qual os problemas se multiplicam. Em liberdade,
o confronto com o tradicional faz parte do tradicional e é desse confronto que, também, resulta o progresso. Mas não se promove a liberdade quando se trabalha para a desinformação.
Iria
mais longe, até ao paradoxo democrático, de dizer que não se promove liberdade quando se promove um partido, nem talvez quando esse partido fosse o partido da liberdade.
quarta-feira, 10 de abril de 2024
Parecendo que não
Parecendo que não
A fanfarra acaba
Na noite de luar
Não meço anos-luz
Nem fulgem rios
De memória
Como se um barco
Afinal
Não estivesse parado
No meu tempo.
Carlos Ricardo Soares
sábado, 23 de março de 2024
Formas de ser e de dizer
Correndo o risco de cair em contradições e de incorrer em dislates, aproveito para fazer um pequeno exercício verbal atinente ao problema académico
das contradições, dos paradoxos e da lógica.
Ser e não ser, ser A e não ser A, ser A e não ser B, C, D...
Ser ou não ser, ser A, ou não ser A, ou não
ser B, C, D...
Ser e poder ser, ser A e poder ser B, C, D...
Ser e não poder ser, ser A e não poder ser B, C, D...
Ser e dever-ser, ser A e dever ser B, C, D...
Ser e não dever-ser,
ser A e não dever ser B, C, D...
Importa pensar que a palavra “ser” é um verbo, mas também é um substantivo, ou um adjetivo. E levanta um problema muito particular e curioso,
em termos de racionalidade científica, não metafísica: o ser é o que é. Esta constatação da realidade impede-nos de considerações sobre o que foi e sobre o que
será, porque estas remetem para o que não é, para o não existente.
Mas, sendo assim, não há nada que possamos dizer sobre o que quer que seja, porque tudo o que dizemos é
em diferido, quer dizer, é sobre algo que já não é.
As questões de lógica são manifestações de racionalidade através de uma linguagem, através
de uma codificação significante.
Penso que são fundamentalmente questões verbais, ser, não ser, poder ser, dever-ser, por exemplo, no que respeita a coisas (tenho na mão um objeto
que designo de livro, mas é um copo. É falso o que digo, mas não é falso o objeto. Há aqui, nestas frases, um conjunto subentendido de operações racionais que poderíamos
analisar e explicitar ainda mais em raciocínios lógicos, inclusivamente, para justificar o que digo).
Penso que a lógica é um processo de linguagem, seja verbal, seja numérica, ou outra,
e tem a ver com a racionalidade, ou melhor, no caso dos humanos, a racionalidade é um processo consciente, embora seja automatizado em grande parte das operações de tipo mais abstrato.
Penso que,
sem linguagem, embora exista racionalidade, não há lógica.
Ou seja, os processos racionais tornam-se lógicos, ou problemas de lógica, através da linguagem.
Carlos Ricardo Soares
segunda-feira, 11 de março de 2024
Como deve ser
Estamos habituados, culturalmente, socialmente, familiarmente, a que nos obriguem e nos digam o que devemos ou não fazer. Se há uma característica essencial ao ser humano é a de, quando atua, em consciência, em inúmeras situações com implicações sociais, não poder deixar de escolher entre possibilidades que não são indiferentes do ponto de vista da avaliação, ou dos valores sociais e respetivas consequências, quer para o próprio, quer para os outros. Em inúmeras situações, por outro lado, a premência da escolha não envolve nenhum problema dessa ordem.
Os problemas surgem sempre que, numa situação de escolha, o indivíduo deixe de ter vantagens se escolher “errado”. Pode ser uma situação que envolva uma operação meramente lógica, ou de pura aritmética, ou uma situação que envolva outro comportamento propriamente dito, com implicações éticas, estéticas, económicas, desportivas, lúdicas, do trato social, em geral, ou das relações sociais particulares.
Destas considerações eu retiro a ideia de que é pelos atos e apenas por estes que o indivíduo é responsável, o que condiz, aliás, com a prática geral das opiniões e dos julgamentos que vemos fazer, e é responsável na medida em que tinha o dever de agir de certa maneira, como devia ser. Isto tem o problema de dever saber antecipadamente o que deve ser a escolha e o problema de fazer essa escolha. Mas, do ponto de vista do fundamento, digamos, da ética, o problema é o de saber, se é que isso é possível, as razões do dever-ser, que não sejam razões práticas. E mais, se esse dever-ser, como está estipulado, é como deve ser e na perspetiva de quem.
Neste ponto, quando dizemos que o próprio ser deve ser o que é, já estamos rendidos ao imperativo do dever-ser como algo que não é, ou ainda não é, mas deve.
Então, e numa conclusão esquemática, mas que tenho bem ponderada, para não me alongar mais, direi que, nem a ciência, nem a filosofia, e não apenas os comportamentos humanos, não estritamente cognitivos e intelectuais, escapam à regência, ou deixam de estar sob a égide da ética, no sentido de dever-ser.
E, assim, quero dizer que os comandos normativos e os mandamentos, qualquer que seja a atribuição da sua legitimidade e autoria, eles mesmos também não escapam à necessidade lógica, de verdade, de retidão, de direito, de serem, em suma, como deve-ser.
Carlos Ricardo Soares
segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024
O melhor teste de inteligência
terça-feira, 30 de janeiro de 2024
As palavras que o digam. Sempre as palavras
As palavras, sempre as palavras. Depois dos gestos. Depois dos atos. O ato/facto da palavra. Pensada. Falada. Escrita. Subentendida. Induzida. Sugerida. Ouvida. Lida. Adivinhada. Encontrada. Arrebatada. A talho de foice. Desbocadas. Conspurcadas. Mal intencionadas.
As palavras são o oceano pelo qual comunicamos sem deixarmos de estar isolados. As palavras bem intencionadas são as piores, porque são cavalos de tróia, bombas ao retardador.
Vivemos num mundo de palavras que tentam, mas não olvidam, os gestos, os atos, os factos.
Contra factos, não há palavras? Ou, contra palavras não há factos?
Os argumentos não se deixam substituir por palavras, mas há palavras que valem mais do que mil argumentos.
Quanto aos factos, as palavras que o digam.
terça-feira, 23 de janeiro de 2024
Ricos e pobres
Assim como ninguém é obrigado a ser rico, ninguém devia ser obrigado a ser pobre.
Por outro lado, os ricos não precisam de quem se manifeste e lute por eles, não precisam de um escol de filósofos a argumentar em defesa da sua causa, porque os ricos nem sequer têm uma causa porque não precisam e não há a causa dos ricos.
Isto lembra-me a aberração daqueles que se esmifram todos a argumentar e a defender, com a própria vida, Deus. Se Deus existisse, talvez esta fosse uma daquelas situações em que ele seria implacável com a pouca fé dos humanos.
O que é preocupante e lamentável é que, sempre que alguma verdade dói, sempre que alguém enfia o barrete, o assunto deixa de ser filosófico, ético, ou ético-jurídico, para ser político, como se as discussões filosóficas e éticas não passassem de inócuos entretenimentos lúdicos, sem consequências. E quando os problemas são políticos, caímos sempre naquele impasse, só existe a causa dos pobres e quando ela se torna também, por variadas razões, uma causa dos ricos, normalmente já se está a viver um processo revolucionário ainda mais inquietante.
Carlos Ricardo Soares
domingo, 14 de janeiro de 2024
Conhece-te a ti mesma
O “cogito, ergo sum” de Descartes não nos ajuda a responder ao desafio, nem nos remete para as três leis da lógica ou leis clássicas do pensamento, embora elas estejam implicadas naquela frase. Distinguir e analisar o pensamento humano como processo de atos pensantes, se é que o é, o que são atos e o que é “pensante” está mais em linha com o conselho, advertência, "conhece-te a ti mesmo", atribuída ao filósofo grego Sócrates, do que com a sua, igualmente célebre, filosofia “só sei que nada sei”. Embora o pensamento tenha uma natureza reflexiva sobre si mesmo, o pensamento está para o seu reflexo numa ordem de precedência e o seu reflexo é algo descontínuo, memorizado, que interrompe aquele e dá lugar a outro.
O “conhece-te a ti mesmo” é da ordem introspetiva, sem deixar de ser da ordem do conhecimento, mas da estrutura e do processo que gera esse conhecimento. O “só sei que nada sei” é da ordem da linguagem, da análise lógica e epistemológica da formulação do pensamento/ideias.
No “conhece-te a ti mesmo” o objeto faz parte da incógnita, ou seja, o ti mesmo é o objeto de um conhecimento que se pretende, mas um e outro, objeto e conhecimento, são indissociáveis e são também reflexo um do outro, mas não como num espelho. São um reflexo construído, dinâmico e não fixo.
Além disso, neste caso, o objeto de conhecimento (indeterminado e indefinido) é da ordem do “existir”, da existência, da realidade (coisa), enquanto que, em “só sei que nada sei”, se trata de uma declaração formal e abstrata, que vale pelo significado e pela lógica que pode ter, sendo da ordem do “ser”, da essência, do conhecimento, da linguagem, do pensamento objetivado, verbalização.
Enquanto os humanos pensam com imensa espontaneidade e liberdade, sempre numa condição de existência, em constante e inevitável contingência biológica evolutiva, autores do seu pensamento, sobre a sua existência cujo modo de ser é pensar (relembro as leis do pensamento que referi no início) e cuja condição é viver ininterruptamente e, quando conscientes, decidindo e escolhendo (num quadro de possibilidades) o que lhes proporciona satisfação, a IA não.
O dever-ser é a antevisão, a representação antecipada daquilo que ocorrerá, acontecerá, será consequência, efeito, da escolha, do ato que a realiza ou corporiza. Essa representação não é arbitrária e tem como princípio ativo, vital, homeostático, a sobrevivência, que é uma forma de egoísmo, mas não se confunde com egoísmo em sentido ético.
A IA não pensa em função da sobrevivência e do risco que corre. A avaliação que faz é meramente numérica e quantitativa, ou lógica. É capaz de simular egoísmo ou altruísmo, como simula outros cálculos e, porventura, sentimentos. E se for capaz de simular Verdade e Direito, duvido que seja capaz de o reconhecer.
Perguntarmos o que é Verdade, Direito, talvez a resposta seja surpreendente: é o que não deve ser outra coisa, ou, é o que deve ser e não outra coisa.
Retomamos neste ponto Descartes e as problemáticas dos existencialistas, mormente em torno da existência e da essência. Não tenho esperança de que a IA pense como eu, nem que ela pense que eu venha a pensar como ela.
Por isso, aliás, apetece-me aconselhar e advertir a IA, como o faziam os antigos pensadores: “conhece-te a ti mesma”.
segunda-feira, 1 de janeiro de 2024
Memória do amor
Efígies indistintas
à garupa de camelos enigmáticos
buscam os signos erráticos
de sortilégios de meias tintas
em declarações proscritas
de magos mumificados
pelo nevoeiro denso
exibem ouros defumados
e o cheiro não é de incenso
vindo de todos os lados
que impele os eruditos a arejar
num deserto imenso pela frente
para trás o que não sabem explicar
em fila ordeira sem virar os olhos
mais cautelosos do que aventureiros
que não levam desejo de voltar
nem lhes pesam esperanças
ou medo do que encontrarão
o que levam na memória
não se sabe senão
do que fica na memória
o amor
e das saudades que terão
ainda menos se sabe
porque nem eles saberão
que misérias e tormentos carregam
ou que riquezas
que não conheciam
para trás delegam
tantas incógnitas na poeira
inexprimíveis aliás
passam em caravana
de equívocos
transpondo
fronteiras de credos
e nenhuma tentativa
para evitar
passatempos de alfândegas
da fé
da morte
como passaporte.
Carlos Ricardo Soares