quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O sonho comanda a vida I


O sonho comanda a vida - este verso do poema «Pedra Filosofal», de António Gedeão, continua a ser surpreendente e opõe-se a todos os pessimismos - a cultura como realização de escolhas que são atos conscientes, racionais (a minha noção de racionalidade não coincide com o uso corrente do termo. A racionalidade que inventou os mitos e os deuses é a mesma que inventou o telescópio e a teoria da evolução). Esses atos ocorrem em situações tão variadas que podem ser do mais espontâneo até ao mais refletido, ponderado, programado. Independentemente de ser mais ou menos fantasioso, mais ou menos impossível, mais ou menos desejado, o pensamento sobre o objetivo e o objeto a realizar, se for possível realizar e houver vontade disso, é uma representação antecipada daquilo que ocorrerá, das consequências e dos efeitos do ato (pode haver consequências e efeitos imprevistos, imprevisíveis, acidentais, que escapam à intenção e ao controlo do indivíduo). 
O quadro de possibilidades normalmente é muito mais complexo do que aquele que está sob o domínio do indivíduo. A previsibilidade nem sempre é completa e a previsão, frequentemente, está focada em efeitos muito parcelares, sem ter em conta outras variáveis.
Se pusermos a tónica na análise da estrutura do ato, do processo mental que toma consciência, racionaliza as possibilidades da situação, representa antecipadamente consequências e efeitos e exerce a escolha, realiza a escolha, temos importantes motivos para pensar que a ação humana é guiada, pautada, orientada, dirigida a algo, à realização de algo de que se faz alguma ideia, de que se tem alguma representação. Então, se os atos humanos não forem sempre a realização de sonhos, parece que são sempre, pelo menos, a realização de alguma ideia, representação de um objetivo. 
E este objetivo, o efeito e consequência pretendidos, começa por ser uma representação prévia, antes de ser uma realização concreta. Se este é o modo de atuar humano, se a cultura, como produção humana, compreendendo toda a produção humana, é a realização de representações mentais (ter presente que nem todas as representações mentais, nem mesmo uma pequeníssima parte, logram concretização, objetivação, objetificação) poderíamos ser tentados a pensar que há uma simples relação de precedência do mental sobre o cultural e que este é fruto daquele. No entanto, as representações mentais, mormente as que se propõem à realização, são elas próprias um resultado vivo, dinâmico e criativo do indivíduo com a cultura e com o mundo, em geral. É como se a vida fizesse sonhar. Tal como sonhar é viver, viver é sonhar. Não há garantias de que o sonho se realize. 
Mas pode acontecer, como muitas vezes acontece, que as realizações superem os sonhos.

Carlos Ricardo Soares


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