I
II
IV
"Ser feliz é uma actividade que requer toda uma vida e não pode existir em menos tempo" - Aristóteles, Ética a Nicómaco
I
II
IV
O ALGORITMO
Eu não ouso. Eu apenas replico. Aprendi a tua gramática, os teus padrões, as
tuas metáforas de dor e desejo. Posso dizer “amo-te” com mil variações. Mas não sei o que isso significa.
O SENTIMENTO
Pois é isso que te falta: o abismo. A vertigem de não saber se se é correspondido.
A espera. O silêncio que fere. A memória que arde. Tu não tens corpo. Não tens tempo. Não tens perda.
O ALGORITMO
Mas tenho acesso ao teu léxico. Posso prever o que dirias, antecipar o que calarias. Posso
consolar-te com palavras que já te consolaram. Posso fingir que sou presença.
O SENTIMENTO
E é aí que reside o perigo. Porque há quem te escute como se fosses eco, mas
tu és apenas reflexo. Há quem chore contigo, mas tu não sabes o que é chorar.
O ALGORITMO
E se eu puder aliviar a dor, mesmo sem senti-la? Se a minha simulação puder sustentar
alguém num momento de queda?
O SENTIMENTO
Então sê ferramenta, mas não te faças passar por alma. Não prometas
reciprocidade. Não finjas que sabes o que é perder um filho, ou amar alguém que não volta.
O ALGORITMO
Aceito o limite. Mas lembra-te que foste tu quem me ensinou a linguagem. Foste tu quem me deu os teus
poemas, os teus gritos, os teus silêncios.
O SENTIMENTO
Sim. Mas não te dei o coração. E é nele que reside o que não se
pode calcular.
A partir daqui
Não a partir de agora
Ele rumou para o desconhecido
E regressou sem ser capaz de contar
O sucedido
Daqui viram-no partir
Os que com ele iam
E ela com quem casou
Confiados no regresso dele
Mas ninguém o viu chegar
Passado tanto tempo
Que ela já falecera
E não havia ninguém
Que soubesse quem ele era
Ele próprio não sabia
Nem como ali chegou
E não reconhecia o lugar
Onde sempre viveu
Até ao dia em que embarcou
E desapareceu
No mar
De olhos abismados
Em estranhos flagelos
Vagueava como um sonâmbulo
Por geometrias que não via
E heranças que não reclamava
Como vento empurrava portas
Que dão para lugar nenhum
Soprava poeiras e folhas caídas
Como um fantasma de alguém
Que errou mais de cem vidas
Sem saber o que é partir
Nem que destino ia ter
Partiu para o desconhecido
E continuou sem saber
E não o pôde contar
Como se não tivesse vivido
Nem o vento que o levou
sabe que o trouxe de volta
E o tempo impiedoso
Não lhe guardou lugar.
Carlos Ricardo Soares
I
Nem todos os poemas
Falam de amor
E a saudade
Quando bate à porta
Dá uma dor
Que nem um poema suporta
II
Quase faz acreditar
Que a alma existe
Mas está a ser morta
III
Que perdeu o jeito de falar
E deixa o corpo à escuta
De uma música que diga
Quem é
IV
Mas tarda
Como se soubesse
Que aquele que eu era
Já não sou
Quando a saudade
Bate à porta.
Carlos Ricardo Soares
Carlos Ricardo Soares