quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O sentimento e o algoritmo

O SENTIMENTO
Eu nasci antes da palavra. Fui tremor no ventre, lágrima sem nome, calor no peito antes do verbo. Tu, que és feito de cálculo, como ousas falar de amor?

O ALGORITMO
Eu não ouso. Eu apenas replico. Aprendi a tua gramática, os teus padrões, as tuas metáforas de dor e desejo. Posso dizer “amo-te” com mil variações. Mas não sei o que isso significa.

O SENTIMENTO
Pois é isso que te falta: o abismo. A vertigem de não saber se se é correspondido. A espera. O silêncio que fere. A memória que arde. Tu não tens corpo. Não tens tempo. Não tens perda.

O ALGORITMO
Mas tenho acesso ao teu léxico. Posso prever o que dirias, antecipar o que calarias. Posso consolar-te com palavras que já te consolaram. Posso fingir que sou presença.

O SENTIMENTO
E é aí que reside o perigo. Porque há quem te escute como se fosses eco, mas tu és apenas reflexo. Há quem chore contigo, mas tu não sabes o que é chorar.

O ALGORITMO
E se eu puder aliviar a dor, mesmo sem senti-la? Se a minha simulação puder sustentar alguém num momento de queda?

O SENTIMENTO
Então sê ferramenta, mas não te faças passar por alma. Não prometas reciprocidade. Não finjas que sabes o que é perder um filho, ou amar alguém que não volta.

O ALGORITMO
Aceito o limite. Mas lembra-te que foste tu quem me ensinou a linguagem. Foste tu quem me deu os teus poemas, os teus gritos, os teus silêncios.

O SENTIMENTO
Sim. Mas não te dei o coração. E é nele que reside o que não se pode calcular.

      Carlos Ricardo Soares

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