sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Todos os caminhos vão dar a Roma

Eu afirmo: factos são factos, naturais ou culturais, coisas, objetos e, em relação a eles, digo que não são verdadeiros, nem falsos, porque verdadeiro ou falso não é da ordem do facto, nem do objeto, é da ordem do discurso, da linguagem, sobre o objeto. 

Uma maçã ou um burro não são verdadeiros nem falsos. Mas estas minhas afirmações podem ser questionadas como verdadeiras ou falsas. Ainda que suscitem questões de “porquê?”, “para quê?”, “como?”, o questionar, o mandar, o aconselhar, o manifestar gosto, preferência, ou vontade, não são problemas de verdade ou falsidade. Estes existem quando se está perante afirmações acerca de algo, de alguma realidade. 

Se tu disseres “segue o teu caminho” ninguém te acusará de seres verdadeiro ou falso, mas se disseres “o melhor é seguires o teu caminho”, ganha pertinência o problema da falsidade ou verdade da tua declaração, ainda que, neste caso, esteja referida a uma opinião, valoração subjetiva. Mas se disseres “esse caminho não leva ao lugar para onde queres ir”, o problema torna-se mais claro e, mais ainda, se especificares o lugar, por exemplo, “esse caminho não vai dar a Roma”.

Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O poema, a fonte da poesia e a poesia

Não é a qualquer luz que o poema é a verdadeira fonte da poesia como se esta fosse a sombra maior em que se acoitam e entrelaçam clandestinidade deboche e salvação, sem compromisso com as prosas.
Nada que alguém possa prometer, que alguns podem tentar, mas nem tudo dependerá do poema, nem da fecundação, porque nem tudo depende das nossas escolhas, que podemos fazer, e o mais importante, muitas vezes, depende das escolhas dos outros, que não podemos determinar ou sequer influenciar, coarctar, impedir. 
Por mais angustiante que tal pareça, há poemas e muitas prosas com a poesia do orgasmo de acreditar, esperar, desejar, tentar escolher ser escolhido, ainda que num sentido estético, ético, moral, afetivo, sexual, lúdico, ou outro, onde a fantasia está, interminavelmente, cada vez mais perto de ser realidade.

Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Ninguém é professor por defeito

É necessário libertar a instituição pública Escola dos discursos opinativos casuísticos, ou, pelo contrário, demasiado generalizadores, que têm direito de existir e não há como evitar, mas que, infelizmente, são como ventoinhas numa superfície de pó, ou seja, não apanham o pó, nem contribuem para ver melhor o pó e o que ele cobre. São uma espécie de dissipadores de obscuridade e de poluição. Numa altura em que poucos são os que não passaram pela escola, poucos são os que não têm uma ideia ou representações do que ela é, ou do que deve ser. 
Cada um tenderá, naturalmente, a manifestar o que pensa sobre uma realidade que, legitimamente e por experiência direta, conheceu. Mas as experiências individuais e as conclusões que cada um pode tirar delas, têm o valor que têm, são subjetivas e muito parcelares acerca de uma realidade dificilmente abarcável, mesmo recorrendo aos métodos e técnicas científicos mais avançados para conhecer a Escola.
A dificuldade de conhecer a Escola é notória e é imensa. 
A Escola não é, nem de longe nem de perto, a minha escola, ou a tua escola, ou a escola deles. 
Ninguém se atreve a fazer uma espécie de anatomia, fisiologia e neurologia da Escola, em geral, como instituição pública e particular. No entanto, como sempre acontece quando não sabemos o que as coisas são, toda a gente está à vontade para dizer o que as Escolas devem ser, o que as coisas devem ser.
Este é um tema que me é muito caro em cada abordagem que faço de qualquer assunto.
Se antes de lermos um texto tivéssemos alguma maneira de saber o que ele diz, isso evitaria que o lêssemos caso não nos interessasse.
Há uma dependência arcaica, tendencialmente diferenciadora e exclusivista, dos discursos linguísticos e da linguagem simbólica, da cultura livresca, focada no significado e no suposto valor da linguagem, que não deve ser promovido pela Escola, nem como sua principal razão de ser, nem como sua função primordial, nem como seu horizonte preferencial.
A Escola estaria condenada ao fracasso se fosse tão basicamente organizada à volta e por causa das aprendizagens especificamente dirigidas ao sucesso académico tal como ele é entendido num dado momento.
Aliás, é necessário libertar a Escola do academismo pernicioso em que alguns académicos bem sucedidos não devem ser apresentados como prova da sua bondade nem como justificação da sua eficiência. Julgo que todos sabemos que não é para isto, ou só para isto, que a Escola pública deve ser desenhada.
De qualquer modo, não me parece que a Escola alguma vez, fosse com que meios e recursos fosse, tivesse capacidade para realizar mais ou diferente do que aquilo que a realidade indivídual, social e cultural proporciona e permite operar.
Não há como dispensar os contributos das ciências humanas e sociais, nomeadamente as psicologias, as neurociências, as ciências da educação, a sociologia, e outras, não apenas para saber educar mas também como ensinar. É fundamental que se saiba boas formas de ensinar e de aprender, que se desenvolvam boas práticas de ensino e de aprendizagem, que se conheçam métodos e procedimentos adequados de avaliação e de classificação. E, já agora, que se esteja a par dos recursos existentes e disponíveis, bem como da utilização das ferramentas mais eficazes em cada situação, tanto para quem ensina como para quem aprende. 
Nada disto é inerente ao facto de se ter uma habilitação especializada numa área disciplinar. E este requisito não é de somenos importância porque ao professor não basta ser especialista ou ter habilitações numa disciplina, ou área disciplinar, é necessário que, além dessa formação, seja professor. 
Ser professor, como também acontece noutras profissões, está sujeito a uma redefinição acelerada, mercê de uma atualização sem precedentes das condições para o seu exercício e das funções concomitantemente solicitadas. Ninguém é professor por defeito.

Carlos Ricardo Soares

domingo, 25 de agosto de 2024

Aproximações à verdade XXIX


Hilário: tenho andado a tentar perceber porque é que, passados sessenta anos, ou mais, desde que ouvi falar de Luís de Camões, cada vez me fascina mais o homem e menos o mito

Amiga: Camões, para mim, só não é um personagem de uma história de ação, porque era poeta e escreveu os Lusíadas

Hilário: não há como separar o homem e a obra

Amiga: não há como separar o homem, a obra e o tempo, a história, o contexto histórico

Hilário: o tempo, a história, o contexto histórico, sem Camões, seriam entendidos de modo diferente

Amiga: grande parte da visão que temos de Portugal desse tempo é-nos proporcionada por Luís de Camões, nascido há 500 anos

Hilário: é admirável e genial este português, tão situado no tempo dos descobrimentos e tão pouco distanciado dos factos da história de Portugal, ter congeminado uma visão tão rica e tão realista dessa história

Amiga: o fascínio de que falavas há pouco deve estar associado ao facto de que, no caso de Camões, a realidade supera sempre a imaginação e o mito

Hilário: é isso, ele faz parte da história, não como outro cidadão que, como ele, embarcou e, porventura, como ele, tenha regressado, mas como protagonista da sua própria epopeia

Amiga: que serve de simbologia espantosa para a epopeia dos Lusíadas

Hilário: foram 56 anos de vida, entre 1524 e 1580

Amiga: Camões pouco escreveu sobre si próprio. Quem não conhecer a obra e a história do homem, dentro da história de Portugal, não entende nada do que estamos a falar.


Carlos Ricardo Soares 

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

O sonho comanda a vida II


Voltando ao meu texto anterior, à cultura como todos os atos (processos conscientes/racionais/individuais de escolha, num quadro de possibilidades) de manifestação, objetivação, objetificação, e factos correspondentes, parece legítimo pensar que as filosofias, as ciências, as artes, as engenharias, as letras (línguas, literaturas), as religiões, os valores, os desportos, os ofícios, os usos e costumes, têm em comum o processo de escolha, consciente/racional/individual.
Assim, só para exemplificar, Moisés, Platão, Santo Agostinho, Copérnico, Galileu, Camões, Pedro Nunes, Descartes, Napoleão, Kant, Newton, Darwin, Einstein, em suma, todos nós, quando praticamos um ato (processo mental, tal como o defino supra), seja ele apenas mental, sobre algo muito trivial e automatizado, ou sobre algo inaudito, original e complexo, seja ele de manifestação exterior, com mais ou menos intencionalidade significativa e de comunicação, estamos a operar funções neurológicas e mentais que poderíamos descrever e mapear como funções comuns. Do mesmo modo que dizemos que todos nós, quando andamos, temos um corpo com pernas que se movem uma a seguir à outra. O que nos distingue não é esta função, ainda que o não façamos como se fossemos réplicas perfeitas uns dos outros.
Não obstante, enquanto podemos observar o modo como andamos e analisar anatomicamente a estrutura que suporta e permite o processo de movimentos e de atos que envolvem caminhar, já o mesmo não acontece com o ato de pensar, de escolher, de executar mentalmente.
Falar de anatomia de um pensamento? Só em sentido metafórico, mesmo que quiséssemos referir-nos não ao pensamento mas ao suporte físico, neurológico, em que ele ocorre.
Devemos, então, considerar que a situação dá azo a um problema epistemológico severo, tanto no que concerne à fisiologia mental do ato, qualquer que ele seja, como no que respeita às fases do processo do ato, enquanto fenómeno mental consciente e racional, como o defino.
 
Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O sonho comanda a vida I


O sonho comanda a vida - este verso do poema «Pedra Filosofal», de António Gedeão, continua a ser surpreendente e opõe-se a todos os pessimismos - a cultura como realização de escolhas que são atos conscientes, racionais (a minha noção de racionalidade não coincide com o uso corrente do termo. A racionalidade que inventou os mitos e os deuses é a mesma que inventou o telescópio e a teoria da evolução). Esses atos ocorrem em situações tão variadas que podem ser do mais espontâneo até ao mais refletido, ponderado, programado. Independentemente de ser mais ou menos fantasioso, mais ou menos impossível, mais ou menos desejado, o pensamento sobre o objetivo e o objeto a realizar, se for possível realizar e houver vontade disso, é uma representação antecipada daquilo que ocorrerá, das consequências e dos efeitos do ato (pode haver consequências e efeitos imprevistos, imprevisíveis, acidentais, que escapam à intenção e ao controlo do indivíduo). 
O quadro de possibilidades normalmente é muito mais complexo do que aquele que está sob o domínio do indivíduo. A previsibilidade nem sempre é completa e a previsão, frequentemente, está focada em efeitos muito parcelares, sem ter em conta outras variáveis.
Se pusermos a tónica na análise da estrutura do ato, do processo mental que toma consciência, racionaliza as possibilidades da situação, representa antecipadamente consequências e efeitos e exerce a escolha, realiza a escolha, temos importantes motivos para pensar que a ação humana é guiada, pautada, orientada, dirigida a algo, à realização de algo de que se faz alguma ideia, de que se tem alguma representação. Então, se os atos humanos não forem sempre a realização de sonhos, parece que são sempre, pelo menos, a realização de alguma ideia, representação de um objetivo. 
E este objetivo, o efeito e consequência pretendidos, começa por ser uma representação prévia, antes de ser uma realização concreta. Se este é o modo de atuar humano, se a cultura, como produção humana, compreendendo toda a produção humana, é a realização de representações mentais (ter presente que nem todas as representações mentais, nem mesmo uma pequeníssima parte, logram concretização, objetivação, objetificação) poderíamos ser tentados a pensar que há uma simples relação de precedência do mental sobre o cultural e que este é fruto daquele. No entanto, as representações mentais, mormente as que se propõem à realização, são elas próprias um resultado vivo, dinâmico e criativo do indivíduo com a cultura e com o mundo, em geral. É como se a vida fizesse sonhar. Tal como sonhar é viver, viver é sonhar. Não há garantias de que o sonho se realize. 
Mas pode acontecer, como muitas vezes acontece, que as realizações superem os sonhos.

Carlos Ricardo Soares


domingo, 4 de agosto de 2024

Senso comum


Se não tivesses sido sensata

Teríamos partido à aventura

Talvez até devorados

Por crocodilos emboscados

Mas a tua bússola interior

Não me confirmou

E tu

Sensatamente

Continuaste ancorada

Nas miragens da sede

De quem tem febre

Talvez tudo tivesse sido pior

Em qualquer caso

                    Carlos Ricardo Soares