domingo, 4 de maio de 2025

Onde começa e acaba o dever/direito de respeito

O problema da garantia dos direitos fundamentais, como das regras e da lei, em geral, é que só funciona se e enquanto os titulares desses direitos também os respeitarem, ou seja, que quem os invoca a seu favor não seja passível de imputação da sua violação. 
Só estamos vinculados aos direitos dos outros se e na medida em que eles o estiverem. 
Por exemplo, um tirano que rasga a Declaração dos Direitos Humanos não tem direito a esperar que os outros a respeitem se isso lhe interessar. O mesmo se diga do Direito Internacional, em geral. 
Frequentemente, os ordenamentos jurídicos servem sobretudo, mesmo nas democracias, para que "os outros" os respeitem, havendo uma parte da população a quem aproveitam os direitos mas que não está onerada, nem responde, pelos deveres e pelas correspondentes obrigações. 
Fazer leis para "os outros" é mais comum do que parece e esses "outros" têm uma aguda percepção dessa realidade perversa.

               Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 7 de abril de 2025

LAVO DAÍ AS MINHAS MÃOS

A democracia atual parece reeditar o cenário bíblico de Pôncio Pilatos a dizer "lavo daí as minhas mãos. Quem quereis que liberte, Jesus ou Barrabás?" e a multidão a gritar "Barrabás, Barrabás". 
A democracia não pode ser o branqueamento de todo o tipo de crimes pela pressão ou vontade de um partido ou de uma maioria.

                    Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 21 de março de 2025

IA, empreendedorismo e Democracia III

Infelizmente, os usurpadores que triunfam à custa dos outros, inclusive do Estado, mercê das suas oportunidades, organizações criminosas, habilidades para a batota milionária e rejeição de quaisquer regras, que têm uma mentalidade arreigada de “fora da lei”, estão longe de ter moral ou ética e só respeitam a linguagem da força. Para estes o Direito e a lei não fazem falta e não fazem sentido, porque se encontram numa posição em que impõem a ordem deles e pouco ou nada têm a ganhar com o respeito pelo Direito e pela lei, de que sempre andaram foragidos. A chamada “lei do mais forte” leva necessariamente ao confronto e à guerra, até que o mais forte de hoje deixe de o ser amanhã, e assim sucessivamente. O que me choca nos dias de hoje é constatar o desplante e o descaramento com que os que se arrogam como mais fortes (até serem postos à prova e saírem derrotados) propagandeiam a sua ideologia de desastre anunciado.
É frustrante e inquietante, nesta conformidade, constatar que o Estado, cuja principal razão de ser tem vindo historicamente a evoluir para a função de dizer o que é Direito, fazer justiça e obrigar ao cumprimento da lei, caia ou soçobre sistematicamente nas mãos daqueles que estão apostados e organizados na luta contra isso. Isto é notório, mormente, no plano do Direito Internacional em que os mais fortes se arrogam prerrogativas que, simplesmente, recusam e negam aos outros. E, então, que respeito podem merecer?
O que devia ser a justiça distributiva do Estado mais não é do que uma função redistributiva, ou mesmo extractiva e extorcionista. Mas não está debaixo de fogo, e está cada vez mais nas mãos erradas.

                Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 20 de março de 2025

IA, empreendedorismo e Democracia II

Quando se fala de empreendedorismo, de iniciativa privada, de liberdade, de jogos de milhões, de concorrência desleal e de competição, de apostar no fracasso da economia, no empobrecimento dos pobres e no enriquecimento dos ricos, ainda que à custa da destruição desenfreada, induzida por uma crescente aceleração, que parece imparável, estamos a falar da cultura humana dos conflitos de interesses de reinados e impérios de vista curta, da economia sobrevivente e “bem sucedida” porque, apesar de demolidora e catastrófica, sempre renasceu das cinzas e se reergueu dos escombros. 
Não me parece que seja possível sair deste círculo vicioso em que a guerra, a devastação, ruína e flagelos que os humanos infligem uns aos outros, são apresentados como uma solução para evitar efeitos considerados piores. Tal e qual como nos jogos de milhões em que se dá tudo por tudo, sem olhar a meios, para ganhar.
O tal problema ético, e ético-jurídico, está no “sem olhar a meios”.
E não há retórica que, sobre isso, iluda um ser humano, por mais simples e debilitado que esteja. Qualquer posição de vantagem que leve o indivíduo, ou o grupo, ou o Estado, a abusar dessa posição, seja no modo como fala, ou trata, seja nas condições que impõe ou nos proveitos indevidos que reivindica para si, não pode esperar outra resposta, ainda que seja ao retardador, do que mal-estar, oposição, resistência, hostilidade e violência.
A expressão “empreendedor de si mesmo” fez-me lembrar um poema que escrevi “Pódio de si mesmo”. Não é uma expressão feliz nem infeliz, mas é sintomática de uma visão do mundo partilhada por uma cultura que valoriza a capacidade e a habilidade para triunfar, sendo que este triunfo só é legítimo e, verdadeiramente, só o é se for um triunfo sobre si mesmo.
                     Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 18 de março de 2025

IA, empreendedorismo e Democracia I

Vivemos num tempo de grandes transições culturais, políticas, demográficas, tecnológicas, sociais, económicas. A nossa capacidade para perceber o que está a acontecer no nosso tempo de vida é insuficiente face à vertigem da dinâmica de mudanças e de conservação em conflito. Nestes aspectos, a IA, em vez de ajudar, só atrapalha. Não ajuda porque não tem aptidões para detectar os problemas e, menos ainda, pensar nos problemas como os humanos o fazem. 
A IA até pode ser um excelente protótipo de inteligência enciclopédica e inexcedível na velocidade com que se apropria, processa e redige informações, mas é uma máquina que não pensa em função de sensibilidades, intuições e de inteligência humana. 
Há áreas em que a IA vai substituir com vantagem os humanos mas, noutras áreas, por mais que ela interprete o pensar e o sentir humanos, estes percebem à primeira que se trata de uma máquina de retórica e que não passa disso. 
Da minha experiência, aprendi que quanto mais retórica menos eficaz é a comunicação e a IA não distingue uma coisa da outra. 
O que ela faz é ser incomparável e inexcedível no uso da retórica. Ela até consegue reconhecer que é verdade isto que acabo de dizer, mas não consegue fazer diferente, nem de outro modo. E nós não resolvemos os problemas de retórica com mais retórica, ao contrário do que se passa com a matemática, por exemplo.

                         Carlos Ricardo Soares

domingo, 9 de março de 2025

Estado de Direito Democrático

Um dos requisitos de um Estado de Direito é que seja Democrático. Mas é preciso evitar a confusão e não cair no erro de considerar que qualquer Estado, desde que seja democrático, já é um Estado de Direito.

Um Estado de Direito, segundo a concepção europeia e, em geral, anglo-saxónica de Estado de Direito Democrático, pluripartidário, pluralista, assente numa democracia representativa mediante um processo de eleições por sufrágio universal, e não na acepção das autodenominadas democracias monopartidárias, autocráticas e autoritárias, assenta em princípios e valores que devem ser respeitados por todos.

O porquê deste dever de respeito tende a fundar-se na sua universalidade que, sendo um conceito complexo, no que se refere aos Direitos Universais do Homem parece-me logicamente irrecusável. Se Direito significa o que é recto, que está certo, correcto, justo, e se Homem, por sua vez, é uma universalidade que significa todo e qualquer indivíduo humano, não há como alguém invocar para si um direito humano que o não seja necessariamente para todos.

A ideia de que há princípios e valores que devem ser respeitados por todos, à primeira vista, parece incompatível com a ideia de democracia como poder da, ou pela maioria, com respeito dos direitos das minorias.

Mas se pensarmos que democracia é uma forma de organização política e que existem matérias que, por sua natureza ou por outras razões, estão fora da alçada das deliberações democráticas, como é o caso da enunciação da verdade e, julgo eu, da universalidade dos direitos do Homem, as deliberações democráticas não poderão fazer depender delas a essência dessas matérias, por mais que, na prática as desrespeitem.

Por outras palavras, a verdade sobre os factos, ou a consistência do conceito de Direito, ou de Direitos Universais, não são da competência do legislador e não podem ser estabelecidas por decreto, ou deliberadas por maiorias.

Ou seja, o Estado de Direito Democrático não pode consentir, sem se contradizer, que a via democrática seja uma forma legítima de negar direitos, princípios e valores que, à luz dos princípios da lógica e da axiologia ético-jurídica, são a essência da Ideia de Direito, até por ser ela mesma que fundamenta o Estado de Direito Democrático.

Quanto ao problema da neutralidade do Estado, existe uma dificuldade relativamente séria em conciliar o dever do Estado como garante das liberdades, por um lado, e os limites dessas liberdades, por outro.

Conciliar a maior liberdade de acção possível, seja no ensino, seja na educação, seja nos meios de comunicação social, seja nos partidos, ou nas religiões, com o mais amplo direito possível de não ser incomodado ou molestado por essa acção, é um problema.

A neutralidade do Estado deve acabar onde começa a transgressão das liberdades dos indivíduos, seja relativamente aos outros indivíduos, seja relativamente aos modelos ou programas educativos e de ensino, mormente se forem obrigatórios.

Se o dever de neutralidade do Estado decorre da liberdade e dos direitos fundamentais do indivíduo, a maior parte das vezes em que o Estado pode ser acusado de não ser neutro terá a ver com a sua intervenção ou interferência na esfera privada, justamente em nome desta esfera privada e para defender e protegê-la.

Normalmente, aliás, é de esperar que, em caso de violação da esfera privada se desencadeie uma acção sancionatória tanto mais severa quanto maior for tida em conta e mais for protegida essa esfera privada. 

O que constatamos, infelizmente, é que os direitos, liberdades e garantias individuais não têm merecido por parte dos poderes estaduais a valorização e a proteção que deviam ter. 

Nos países ocidentais, em que a Inglaterra e a França se destacaram na promoção e consagração dos direitos do Homem, a tendência para adotar a Declaração Universal dos Direitos do Homem e da abolição da pena de morte e de outro tipo de sanções, nomeadamente contra Estados violadores dos Direitos do Homem, tem deparado com a dificuldade em conciliar o maior respeito que é devido ao valor da vida humana e da liberdade com a mais severa punição que deve ser aplicada àqueles que violarem esses valores. 

Há países, por outro lado, que nem colocam o Homem como razão de ser, e valor ético-jurídico supremo sob cuja égide deve ser estruturada a ordem jurídica. Estes países tendem a subordinar o individual, que é reduzido a pouco mais do que um objeto numa relação jurídica estadual mais ampla, podendo até ser escravizado e desvalorizado como mera mercadoria, a um suposto fim supra individual e supra humano, capaz de justificar tratamentos violentos e discriminatórios sobre indivíduos e grupos humanos. 

Nestes Estados, que colocam o próprio Estado, ou Deus, no topo da hierarquia dos valores, ou outro valor simbólico coletivo, pelo qual os indivíduos, se necessário, se devam sacrificar, fica aberto o caminho para que tudo possa servir de razão para sacrificar os indivíduos. Nestes Estados, o próprio conceito de violação de direitos individuais não abrange os casos em que um indivíduo é escravizado e maltratado, se o que existe e está reconhecido é o direito de o fazer. Um homicídio, neste contexto e neste ordenamento, não é um crime tão grave como insultar uma autoridade religiosa, ou uma autoridade policial estadual, porque o bem jurídico em causa, o indivíduo humano, não é tão importante e tão valioso como o bem jurídico da autoridade. A pena de morte, nestes casos, até por ser uma pena que se aplica a indivíduos, e nunca ao Estado, nem à autoridade, é perfeitamente compreensível e lógica.

Por outro lado, num Estado que coloque o indivíduo e os direitos individuais no topo da hierarquia, a violação máxima de um direito tenderá a ser a violação do direito à vida do ser humano. A uma tal violação deveria corresponder, na opinião de muitos, a pena de morte, como pena máxima, na opinião de outros, isso seria, ainda assim, inconciliável com a defesa do valor da vida como máximo e inviolável, nomeadamente, por parte de uma comunidade ou do Estado. No caso de um dos Estados referidos anteriormente, e isso foi a regra até ao surgimento e proclamação das cartas de Direitos do Homem da era moderna, por muito menos do que pelo crime de homicídio se aplicava a pena de morte, só que o muito menos, para nós, não era o muito menos para as pessoas desse tempo. Daí que a pena de morte também não fosse tão grave para as pessoas desse tempo como o é, em geral, para as pessoas que partilham a mundivisão e os valores da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Colocar o indivíduo humano como razão de ser e matriz dessa razão e de qualquer razão ou entendimento que haja das coisas, nomeadamente do Direito e dos direitos e dos valores em geral, mesmo daqueles que lhe negam esse papel e essa condição natural e social, parece-me ser razão necessária e suficiente para que se afirme que nenhuma cultura, nenhum valor, nenhum direito, nenhum Deus e nenhum Estado poderiam existir sem os indivíduos, não só porque foram criados por indivíduos mas também porque existem para os indivíduos e se nenhum indivíduo tem o direito de violar o direito de outro ou de outros, não há razão para que dois ou mais indivíduos, sob qualquer forma de organização, tenham direito de o fazer.

Temos referido os direitos individuais e as sanções das violações destes direitos por parte de indivíduos, em ordenamentos jurídicos marcadamente coletivistas, religiosos, autoritários ou totalitários. Nestes ordenamentos, diferentemente do que é defendido e prescrito nos Estados de direito democráticos, os direitos, liberdades e garantias do indivíduo perante o Estado é praticamente residual comparativamente com a sua total responsabilidade e, contrariamente, a impunidade dos abusos contra o indivíduo, por parte do Estado, é praticamente total.

Nos democráticos, os crimes contra a autoridade e contra o Estado e contra as coisas tendem a ser menos graves do que os cometidos diretamente contra a pessoa do indivíduo, incluindo os que são cometidos por agentes do Estado. O Estado não tem o direito de perseguir e de punir o indivíduo senão em situações previstas e definidas de violação de direitos, num plano de igualdade de todos, incluindo o Estado, perante a lei e ao indivíduo são amplamente reconhecidos mecanismos de exercício e de defesa dos seus direitos perante o Estado. Nos outros ordenamentos, verifica-se o inverso, com a impunidade e a desresponsabilização do Estado todo poderoso face ao indivíduo, submetido e indefeso.

                        Carlos Ricardo Soares

sábado, 1 de março de 2025

Os livros sagrados

Por mais que eu confie na minha capacidade de interpretar e de confirmar as informações e as explicações da ciência, é legítimo e de bom senso que reconheça, primeiro, que posso estar enganado, iludido, alucinado, manipulado, viciado, errado, e, em segundo lugar, que, na realidade, estou apenas a confiar naquilo que me dizem, sendo que, mesmo os que me dizem, por exemplo, que existe o sistema solar, etc., nunca tiveram a experiência de o observar, isto para quem a necessidade de observação, nem que seja "a posteriori" da teoria, como acontece frequentemente em ciência, é uma condição essencial do conhecimento.
Presunção, água benta e certezas, cada um toma as que quer. 
Sem embargo de que não basta afirmar é preciso demonstrar. 
Escudar-se naquilo que outros disseram é como mandar ler os livros sagrados que está lá tudo. Isto pode ser uma estratégia que funciona para gente crédula que não sabe ler e até o nosso ensino, em boa parte, ainda reproduz aquele modelo catequético que sucedeu, com muito sucesso, passe a redundância, ao grave e reverenciado latim, abrindo espaço para que mais e mais papagaios, uns mais do que outros, se sentissem úteis.

       Carlos Ricardo Soares