quarta-feira, 13 de agosto de 2025

A obediência pode ser inteligente, mas?

Num tempo em que se valoriza o pensamento crítico e a autonomia profissional, é curioso observar como, no seio do sistema educativo, muitos professores acabam por seguir fielmente os preceitos e guiões impostos. Não por falta de capacidade reflexiva, mas por uma espécie de inteligência adaptativa que privilegia a eficiência e o retorno imediato.
Há quem questione, ainda que apenas por sistema, como forma de marcar posição e mostrar que não se limita a seguir diretivas. Mas, na prática, a tendência dominante é outra: a de cumprir, com o menor esforço possível, aquilo que é exigido. E essa obediência estratégica não é necessariamente um sinal de alienação. Pelo contrário, pode ser vista como uma resposta racional ao funcionamento de um sistema que recompensa o cumprimento e penaliza o desvio.
Num ambiente marcado por metas, relatórios, inspeções e burocracia, o professor que decide “jogar segundo as regras” está, na verdade, a otimizar recursos. Ao seguir o guião, evita conflitos, protege-se de avaliações negativas e garante que o seu trabalho é reconhecido dentro dos parâmetros estabelecidos. É uma forma de sobrevivência institucional que, embora possa parecer conformista, revela uma inteligência pragmática.
Mas será esse o comportamento mais desejável?
Será que o sistema educativo deve premiar quem se adapta sem questionar, em detrimento de quem tenta inovar, mesmo correndo riscos?
A obediência ao sistema pode gerar resultados visíveis: estatísticas positivas, cumprimento de programas, estabilidade profissional. No entanto, há um custo oculto. Quando todos seguem o guião, o ensino torna-se previsível, padronizado, por vezes descontextualizado.
Em vez da criatividade, tão perseguida e tão mal vista por competidores diretos, muito zelosos na crítica que lhes interessa, opta-se comodamente pela repetição, pelos formulários e pela ritualização dos procedimentos e dos discursos e o sentido pedagógico perde-se na lógica de uma produtividade cujo produto não é o que mais interessa na ordem das prioridades.
E então, o comportamento que garante o “melhor retorno” para o sistema pode não ser o que melhor serve os alunos, nem o que mais realiza os professores.
Mesmo que seja apenas por sistema, o ato de questionar é essencial. É ele que mantém viva a possibilidade de mudança, que abre brechas no discurso dominante e que permite pensar para além do imediato. Professores que questionam, mesmo que não tenham força para transformar, são os que mantêm acesa a chama da educação como prática de liberdade.
Obedecer pode ser inteligente. Mas questionar é indispensável.
Só que, voltamos ao início deste arrazoado. Ao seguir o guião, o professor evita conflitos, protege-se de avaliações negativas e garante que o seu trabalho é reconhecido dentro dos parâmetros estabelecidos.
Se, como vimos, muitos professores seguem o guião oficial por uma lógica de eficiência e proteção institucional, então é urgente repensar o papel das estruturas que os rodeiam. A verdadeira mudança não virá apenas da base, mas também da forma como os diretores e os órgãos da administração educativa encaram o papel do professor.
É necessário garantir autonomia e liberdade pedagógica, não como um privilégio ocasional, mas como um direito profissional.
E mais: é preciso criar formas de compensação e reconhecimento que encorajem o questionamento informado, a inovação fundamentada e a coragem de pensar fora do molde.
Os diretores não devem ser meros executores de políticas, mas líderes pedagógicos que promovem ambientes onde o pensamento crítico é valorizado. Quando a administração se limita a “deixar correr”, por comodidade ou interesse próprio, perpetua-se um sistema onde o conformismo é recompensado e a ousadia é punida.
É preciso inverter essa lógica. Valorizar quem questiona, quem propõe, quem experimenta. Criar espaços de diálogo, de escuta, de construção coletiva. Porque um sistema que não escuta os seus professores está condenado a repetir os seus erros.
A educação precisa de professores que não sejam apenas executores de programas, mas autores de práticas. Isso exige confiança, tempo, formação contínua e, acima de tudo, respeito pela sua inteligência profissional.
Repito: a obediência pode ser inteligente. Mas só a autonomia crítica é verdadeiramente transformadora.

      Carlos Ricardo Soares


segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Entre o mar e o monumento

De um lado o mar
Do outro um monumento
Agitado
Como eu deste lado
Sem memória
De termos sido vencidos
Percebo que a antiguidade
É um problema insolúvel
Até o futuro é mais previsível
Mas as ondas e o vento
Não se calam
Ouço os ecos
De tenebrosas falas
E provo o sal de lágrimas
Que ainda são choradas
Não sei por que promessas
Quebradas
Que a brisa embala
Até ao adormecimento
Que se abate sobre o mar
Como dor herdada
Sem direito ao esquecimento
Nada substitui um corpo que sente
Porque o corpo que sente
Não substitui o corpo que pensa
A língua que lambe as ausências
Como se elas matassem a sede
Entre o mar e o monumento
Eu sou ambos
E pairo
Sem razão
E sem balança
Com tréguas a leilão
Ante o invisível que fere
E um excesso de memória
Que sente que se perdeu
À mercê do que pensa
Que não basta ter uma alma
Para ser imortal
É necessário um corpo
Com uma fala
Que não caiba no silêncio do sepulcro
Um cadáver cujo significado
O ressuscite
Para uma vida que não é sua
Metamorfose que não nos espera
Porque o corpo não sabe
Aquilo que a alma era
E nada há mais simples
Do que a poesia
Quando tudo o vento levou.
Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 15 de julho de 2025

Estupidificação


Não me atrevo a generalizar, mas intuo que o fenómeno Chega está em linha com uma análise histórica, sociológica e de forte componente psicológica, do fenómeno mais geral, muito bem rotulado, diria mesmo, genialmente designado, por bárbaros à porta. Pese embora a ambiguidade gerada pelo contexto, que pode prejudicar a eficácia do argumento, os bárbaros já não estão à porta, já estão no parlamento. E estão em força, embora não tanta, por enquanto, que possam mandar calar os outros. Se pudermos dizer que continuam a ser bárbaros à porta, por ainda não serem governo, então só lhes falta isso para deixarem de ser bárbaros à porta e passarem a ser apenas bárbaros. Se lá chegarem, e já esteve mais longe, cairá o complexo de serem bárbaros à porta, excluídos da política e começarão os verdadeiros problemas.
A democracia já deu provas de resiliência e de aptidão suficiente para impedir partidos antidemocráticos de capturarem o Estado e de, mesmo permitindo a sua existência, eles serem convocados para resolverem os seus próprios paradoxos e contradições. Na resposta a este repto e a esta condição, a médio prazo, acabam por não ter sucesso.
Há razões para ter esperança na razão e na consciência que, em meu entender, são duas faces da mesma moeda transparente. Mas onde aposto mais é na inelutável racionalidade humana, seja ela dos bárbaros, ou não.
Sendo certo que, em matérias conflituosas, que opõem interesses, o choque é evitável se houver poder negocial, mas os conflitos poderão multiplicar-se e agravar-se se houver choque. Neste caso, a racionalidade opera no quadro das possibilidades em conflito.
Quando o presidente da Assembleia da República se estriba numa “alegada” conformidade com a lei e fica por isso mesmo, relativamente a uma conduta parlamentar deplorável e vergonhosa, mas mesmo que o não fosse, revela uma pusilanimidade confrangedora que não o dignifica minimamente. 
Perante uma violação dos limites éticos e morais, ou até do bom senso, escudar-se na conformidade com a lei até podia ser justificável por dever do cargo, mas não deixa de significar a opção pelo comodismo de não se pronunciar sobre uma matéria que incomoda. Se ele fosse daquelas pessoas, que as há em abundância, que andam sempre a perguntar o que é que a lei diz, porque não são capazes de assumir autonomamente um juízo ético ou moral, para as quais a lei e só a lei conta, independentemente da sua razoabilidade, justiça, alcance, fundamento, legitimidade e humanidade, ainda podíamos compreender o seu escrúpulo legalista, mas já não é a primeira vez que, por comodismo, nos remete genericamente para uma lei que não existe ou que, pelo menos, é duvidoso que exista, para não ter de se comprometer pessoalmente. 
Os tempos que vivemos não se compadecem, nem são compatíveis com elementos políticos que representam interesses pessoais, de grupo e partidários, mas não se comprometem com valores mais altos e que têm como prioridade, não o respeito pela lei que, eventualmente, até não exista, mas a própria irresponsabilidade ética e moral. A barbaridade assume muitas formas, mas é sempre demolidora e pungente.

              Carlos Ricardo Soares

sábado, 31 de maio de 2025

Eufemização


Um problema que eu vejo no tratamento académico dos problemas, que não são meramente académicos, mormente ideológicos e doutrinais de toda a ordem, com implicações político-partidárias ou fazendo derivar das estruturas político-partidárias esses problemas, até porque os reduz teoricamente, logo à partida, não àquilo que eles são mas àquilo que se diz que são, ou que é correto dizer que são, ou que se pretende que sejam, um problema, dizia eu, é a aptidão da linguagem, por mais brutal que seja, para a eufemização, seja do crime, seja da miséria, seja da desgraça, seja da doença…
Qualquer que seja o lamaçal, ou o pântano, ou o charco de sangue, para não dizer o inferno insuportável, em que coloquem os outros, os criminosos serão sempre tratados, pelo menos, com o eufemismo de criminosos e verão sempre os seus atos hediondos tratados, pelo menos, com a dignidade de atos hediondos e tudo isso nos é servido constantemente, pela comunicação social, desde o pequeno almoço ao jantar, como aperitivo e sobremesa.
Os maiores assassinos da história aparecem todos os dias, anos a fio, em tronos de ouro, a serem cumprimentados cortesmente pelos paladinos do direito, da justiça e da paz. Por todos aqueles que, supostamente, se pudessem, teriam o dever de os estrangular, ou, no mínimo, mandar aniquilar.
A satisfação que podemos tirar dessa eufemização, senão a única, é que os demónios não deixam que os tratem mal e têm de ser bem tratados, pelo menos, só enquanto não puderem ser aniquilados e esquecidos.
Mas a mensagem passa claramente para a opinião pública e para o sentir dos indivíduos e dos grupos: os inimigos declarados não traem, os outros não sabemos.
Vem isto tudo a propósito dos efeitos da linguagem como eufemização e não apenas da necessidade dos eufemismos da linguagem.
A contraposição entre público e privado numa sociedade e numa cultura em que o real objetivo de cada indivíduo e das organizações é obter vantagem da situação, independentemente de ser o amigo ou o inimigo, porque tudo o resto é lamentável, aparece como um artifício para distrair o patego e conduzir o rebanho sem maiores percalços.
Até o ilícito se torna lícito a partir do momento em que é “a brincar” e se generaliza ao ponto de ser impune. E o mesmo acontece com o ser ou não ser capital humano.
Na realidade, não é A, ou B, quem decide ou determina o que é capital humano, ou o que o deixa de ser, nem a quem o Estado serve, se é aos privados, e a quais. 
Com efeito, diariamente, assistimos à confirmação da constatação de que o Estado está mais nas mãos dos privados do que os privados desejariam, ou admitiriam, em tese geral e segundo as propagandas político-partidárias. Os arautos da privatização são os cabotinos no teatro da República, porque, debaixo dessa veste estão os grandes beneficiários do erário público, seja por entronização, com influência na beneficiação direta, seja por efeito de benefícios e políticas sociais que, através da prestação de serviços, que não se destinam a eles, neles vão desaguar (que é uma palavra muito rica de sentidos).
No meio desta aparente barafunda de bancadas sob efeitos pirotécnicos, que extravasam para as avenidas em fanfarras e hinos guerreiros, com o seu potencial de incitação ao medo e de incapacitação para o discernimento, os professores, de acordo com as respetivas disciplinas, e sem prescindirem do mérito científico das mesmas, mais do que identificarem eufemismos, podem constituir pontos de referência, senão faróis e bússolas, para os seus alunos. E essa função não tem que ser modesta.

                   Carlos Ricardo Soares

“Comenta para receberes uma ideia por semana.” 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

A (melhor) escolha

Quanto mais informação disponível e conhecimento, maior será o quadro de possibilidades para fazer a escolha que é, não obstante, em cada situação, a melhor de um quadro de possibilidades, ainda que, posteriormente, como acontece, por vezes, na escolha de um caminho, se verifique haver um caminho melhor, segundo o mesmo critério que serviu para escolher o primeiro.

                     Carlos Ricardo Soares

domingo, 4 de maio de 2025

Onde começa e acaba o dever/direito de respeito

O problema da garantia dos direitos fundamentais, como das regras e da lei, em geral, é que só funciona se e enquanto os titulares desses direitos também os respeitarem, ou seja, que quem os invoca a seu favor não seja passível de imputação da sua violação. 
Só estamos vinculados aos direitos dos outros se e na medida em que eles o estiverem. 
Por exemplo, um tirano que rasga a Declaração dos Direitos Humanos não tem direito a esperar que os outros a respeitem se isso lhe interessar. O mesmo se diga do Direito Internacional, em geral. 
Frequentemente, os ordenamentos jurídicos servem sobretudo, mesmo nas democracias, para que "os outros" os respeitem, havendo uma parte da população a quem aproveitam os direitos mas que não está onerada, nem responde, pelos deveres e pelas correspondentes obrigações. 
Fazer leis para "os outros" é mais comum do que parece e esses "outros" têm uma aguda percepção dessa realidade perversa.

               Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 7 de abril de 2025

LAVO DAÍ AS MINHAS MÃOS

A democracia atual parece reeditar o cenário bíblico de Pôncio Pilatos a dizer "lavo daí as minhas mãos. Quem quereis que liberte, Jesus ou Barrabás?" e a multidão a gritar "Barrabás, Barrabás". 
A democracia não pode ser o branqueamento de todo o tipo de crimes pela pressão ou vontade de um partido ou de uma maioria.

                    Carlos Ricardo Soares