segunda-feira, 15 de setembro de 2025

A triste história do desconhecido


A partir daqui

Não a partir de agora

Ele rumou para o desconhecido

E regressou sem ser capaz de contar

O sucedido

 

Daqui viram-no partir

Os que com ele iam

E ela com quem casou

Confiados no regresso dele

 

Mas ninguém o viu chegar

Passado tanto tempo

Que ela já falecera

E não havia ninguém

Que soubesse quem ele era

Ele próprio não sabia

Nem como ali chegou

E não reconhecia o lugar

Onde sempre viveu

Até ao dia em que embarcou

E desapareceu

No mar

 

De olhos abismados

Em estranhos flagelos

Vagueava como um sonâmbulo

Por geometrias que não via

E heranças que não reclamava

 

Como vento empurrava portas

Que dão para lugar nenhum

Soprava poeiras e folhas caídas

Como um fantasma de alguém

Que errou mais de cem vidas

 

Sem saber o que é partir

Nem que destino ia ter

Partiu para o desconhecido

E continuou sem saber

E não o pôde contar

Como se não tivesse vivido

 

Nem o vento que o levou

sabe que o trouxe de volta

E o tempo impiedoso

Não lhe guardou lugar.


               Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Saudade

I

Nem todos os poemas

Falam de amor

E a saudade

Quando bate à porta

Dá uma dor

Que nem um poema suporta

II

Quase faz acreditar

Que a alma existe

Mas está a ser morta

III

Que perdeu o jeito de falar

E deixa o corpo à escuta

De uma música que diga

Quem é

IV

Mas tarda

Como se soubesse

Que aquele que eu era

Já não sou

Quando a saudade

Bate à porta.


Carlos Ricardo Soares


quarta-feira, 27 de agosto de 2025

A IA está a tornar-nos mais estúpidos e preguiçosos?

A inteligência artificial (IA) pode, sim, levar a uma certa “terceirização” do pensamento, se usada de forma passiva. Quando deixamos que ela tome decisões por nós, sem questionar ou entender, corremos o risco de atrofiar certas capacidades cognitivas, como a memória, o raciocínio crítico ou até a criatividade.
Se a usamos como ferramenta para expandir o pensamento, ela pode ser uma aliada poderosa. Se a usamos como muleta, pode sim tornar-nos mais passivos.
Acho que aquela pergunta, feita num jornal, é como colocar o carro à frente dos bois, porque a IA ainda agora começou a dar os primeiros passos e são poucas as pessoas que a usam. Por outro lado, talvez faça sentido perguntar se a IA irá tornar-nos mais estúpidos e alienados e preguiçosos do que aquilo que já somos.
Se já vivemos distraídos por feeds infinitos e notificações constantes, a IA pode tornar tudo ainda mais personalizado e, paradoxalmente, promover o isolamento e a solidão. Se já evitamos pensar criticamente, a IA pode facilitar ainda mais essa fuga, oferecendo respostas prontas sem exigir reflexão. Se já há quem acredite em teorias da conspiração, a IA pode ser usada para gerar conteúdos falsos com aparência de credibilidade.
Eu acho que a sociedade, sobretudo da era do audiovisual, já embarcou em massa na anomia e na acefalia dos argumentos de autoridade. Por todo o lado, toda a gente publica textos, frases, exortações, citações, às quais atribuem autoria de vultos prestigiados, como se isso fosse garantia do significado e do valor das palavras que "papagueiam". A preguiça induzida pela IA pode ter a ver com o comodismo de acreditar que a IA também pode ler por nós. Isto é qualquer coisa de tétrico e inquietante como constatar que a Rússia invadiu a Ucrânia e, passados três anos, ainda parecer incrível que tal pudesse acontecer.
A era do audiovisual não só acelerou a circulação de ideias, como também achatou o seu conteúdo. A citação tornou-se moeda de autoridade, não de reflexão. E quando a IA entra nesse cenário, há o risco de ela se tornar mais um megafone para essa repetição acrítica.
Vivemos num tempo em que o sound bite substitui o argumento, e o vídeo curto substitui o contexto. A autoridade é muitas vezes medida pelo número de seguidores, não pela substância das ideias e a anomia, essa ausência de normas e referências sólidas, cria um terreno fértil para a acefalia argumentativa.
A ideia de que a IA pode “ler por nós” é assustadoramente real. Quando confiamos que ela nos resuma, interprete e até nos diga o que pensar, estamos a abdicar do esforço que forma o pensamento crítico. E isso não é culpa da IA é reflexo de uma cultura que já vinha a preferir atalhos ao caminho. E não estou apensar apenas no provérbio "quem se mete em atalhos mete-se em trabalhos".
No fundo, o que está em jogo não é a tecnologia, mas a nossa disposição para continuar a pensar, a duvidar, a ler com olhos próprios. A IA pode ser uma lente, mas nunca deve ser um véu. E mesmo as lentes podem servir para distorcer as coisas.
Por outro lado, não esqueço que na era da inteligência artificial, a sensibilidade deixou de ser fraqueza e tornou-se um superpoder.
Se os algoritmos calculam, é a empatia que conecta. Se os dados preveem, é a intuição que surpreende. Se há máquinas que aprendem, é a sensibilidade que transforma.
Ser sensível hoje é enxergar ou, pelo menos, detetar o que os sistemas não captam, não imaginam, não intuem, não sentem. Agir com humanidade exige sensibilidade, que as máquinas não têm. O mesmo se diga de criar com propósito ou liderar equipas. Não obstante, ser sensível não é ser raro, é ser humano, porque os humanos são todos sensíveis. Mas é essencial que a sensabilidade não seja anestesiada, nomeadamente, com intoxicações.

                  Carlos Ricardo Soares 

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

A obediência pode ser inteligente, mas?

Num tempo em que se valoriza o pensamento crítico e a autonomia profissional, é curioso observar como, no seio do sistema educativo, muitos professores acabam por seguir fielmente os preceitos e guiões impostos. Não por falta de capacidade reflexiva, mas por uma espécie de inteligência adaptativa que privilegia a eficiência e o retorno imediato.
Há quem questione, ainda que apenas por sistema, como forma de marcar posição e mostrar que não se limita a seguir diretivas. Mas, na prática, a tendência dominante é outra: a de cumprir, com o menor esforço possível, aquilo que é exigido. E essa obediência estratégica não é necessariamente um sinal de alienação. Pelo contrário, pode ser vista como uma resposta racional ao funcionamento de um sistema que recompensa o cumprimento e penaliza o desvio.
Num ambiente marcado por metas, relatórios, inspeções e burocracia, o professor que decide “jogar segundo as regras” está, na verdade, a otimizar recursos. Ao seguir o guião, evita conflitos, protege-se de avaliações negativas e garante que o seu trabalho é reconhecido dentro dos parâmetros estabelecidos. É uma forma de sobrevivência institucional que, embora possa parecer conformista, revela uma inteligência pragmática.
Mas será esse o comportamento mais desejável?
Será que o sistema educativo deve premiar quem se adapta sem questionar, em detrimento de quem tenta inovar, mesmo correndo riscos?
A obediência ao sistema pode gerar resultados visíveis: estatísticas positivas, cumprimento de programas, estabilidade profissional. No entanto, há um custo oculto. Quando todos seguem o guião, o ensino torna-se previsível, padronizado, por vezes descontextualizado.
Em vez da criatividade, tão perseguida e tão mal vista por competidores diretos, muito zelosos na crítica que lhes interessa, opta-se comodamente pela repetição, pelos formulários e pela ritualização dos procedimentos e dos discursos e o sentido pedagógico perde-se na lógica de uma produtividade cujo produto não é o que mais interessa na ordem das prioridades.
E então, o comportamento que garante o “melhor retorno” para o sistema pode não ser o que melhor serve os alunos, nem o que mais realiza os professores.
Mesmo que seja apenas por sistema, o ato de questionar é essencial. É ele que mantém viva a possibilidade de mudança, que abre brechas no discurso dominante e que permite pensar para além do imediato. Professores que questionam, mesmo que não tenham força para transformar, são os que mantêm acesa a chama da educação como prática de liberdade.
Obedecer pode ser inteligente. Mas questionar é indispensável.
Só que, voltamos ao início deste arrazoado. Ao seguir o guião, o professor evita conflitos, protege-se de avaliações negativas e garante que o seu trabalho é reconhecido dentro dos parâmetros estabelecidos.
Se, como vimos, muitos professores seguem o guião oficial por uma lógica de eficiência e proteção institucional, então é urgente repensar o papel das estruturas que os rodeiam. A verdadeira mudança não virá apenas da base, mas também da forma como os diretores e os órgãos da administração educativa encaram o papel do professor.
É necessário garantir autonomia e liberdade pedagógica, não como um privilégio ocasional, mas como um direito profissional.
E mais: é preciso criar formas de compensação e reconhecimento que encorajem o questionamento informado, a inovação fundamentada e a coragem de pensar fora do molde.
Os diretores não devem ser meros executores de políticas, mas líderes pedagógicos que promovem ambientes onde o pensamento crítico é valorizado. Quando a administração se limita a “deixar correr”, por comodidade ou interesse próprio, perpetua-se um sistema onde o conformismo é recompensado e a ousadia é punida.
É preciso inverter essa lógica. Valorizar quem questiona, quem propõe, quem experimenta. Criar espaços de diálogo, de escuta, de construção coletiva. Porque um sistema que não escuta os seus professores está condenado a repetir os seus erros.
A educação precisa de professores que não sejam apenas executores de programas, mas autores de práticas. Isso exige confiança, tempo, formação contínua e, acima de tudo, respeito pela sua inteligência profissional.
Repito: a obediência pode ser inteligente. Mas só a autonomia crítica é verdadeiramente transformadora.

      Carlos Ricardo Soares


segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Entre o mar e o monumento

De um lado o mar
Do outro um monumento
Agitado
Como eu deste lado
Sem memória
De termos sido vencidos
Percebo que a antiguidade
É um problema insolúvel
Até o futuro é mais previsível
Mas as ondas e o vento
Não se calam
Ouço os ecos
De tenebrosas falas
E provo o sal de lágrimas
Que ainda são choradas
Não sei por que promessas
Quebradas
Que a brisa embala
Até ao adormecimento
Que se abate sobre o mar
Como dor herdada
Sem direito ao esquecimento
Nada substitui um corpo que sente
Porque o corpo que sente
Não substitui o corpo que pensa
A língua que lambe as ausências
Como se elas matassem a sede
Entre o mar e o monumento
Eu sou ambos
E pairo
Sem razão
E sem balança
Com tréguas a leilão
Ante o invisível que fere
E um excesso de memória
Que sente que se perdeu
À mercê do que pensa
Que não basta ter uma alma
Para ser imortal
É necessário um corpo
Com uma fala
Que não caiba no silêncio do sepulcro
Um cadáver cujo significado
O ressuscite
Para uma vida que não é sua
Metamorfose que não nos espera
Porque o corpo não sabe
Aquilo que a alma era
E nada há mais simples
Do que a poesia
Quando tudo o vento levou.
Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 15 de julho de 2025

Estupidificação


Não me atrevo a generalizar, mas intuo que o fenómeno Chega está em linha com uma análise histórica, sociológica e de forte componente psicológica, do fenómeno mais geral, muito bem rotulado, diria mesmo, genialmente designado, por bárbaros à porta. Pese embora a ambiguidade gerada pelo contexto, que pode prejudicar a eficácia do argumento, os bárbaros já não estão à porta, já estão no parlamento. E estão em força, embora não tanta, por enquanto, que possam mandar calar os outros. Se pudermos dizer que continuam a ser bárbaros à porta, por ainda não serem governo, então só lhes falta isso para deixarem de ser bárbaros à porta e passarem a ser apenas bárbaros. Se lá chegarem, e já esteve mais longe, cairá o complexo de serem bárbaros à porta, excluídos da política e começarão os verdadeiros problemas.
A democracia já deu provas de resiliência e de aptidão suficiente para impedir partidos antidemocráticos de capturarem o Estado e de, mesmo permitindo a sua existência, eles serem convocados para resolverem os seus próprios paradoxos e contradições. Na resposta a este repto e a esta condição, a médio prazo, acabam por não ter sucesso.
Há razões para ter esperança na razão e na consciência que, em meu entender, são duas faces da mesma moeda transparente. Mas onde aposto mais é na inelutável racionalidade humana, seja ela dos bárbaros, ou não.
Sendo certo que, em matérias conflituosas, que opõem interesses, o choque é evitável se houver poder negocial, mas os conflitos poderão multiplicar-se e agravar-se se houver choque. Neste caso, a racionalidade opera no quadro das possibilidades em conflito.
Quando o presidente da Assembleia da República se estriba numa “alegada” conformidade com a lei e fica por isso mesmo, relativamente a uma conduta parlamentar deplorável e vergonhosa, mas mesmo que o não fosse, revela uma pusilanimidade confrangedora que não o dignifica minimamente. 
Perante uma violação dos limites éticos e morais, ou até do bom senso, escudar-se na conformidade com a lei até podia ser justificável por dever do cargo, mas não deixa de significar a opção pelo comodismo de não se pronunciar sobre uma matéria que incomoda. Se ele fosse daquelas pessoas, que as há em abundância, que andam sempre a perguntar o que é que a lei diz, porque não são capazes de assumir autonomamente um juízo ético ou moral, para as quais a lei e só a lei conta, independentemente da sua razoabilidade, justiça, alcance, fundamento, legitimidade e humanidade, ainda podíamos compreender o seu escrúpulo legalista, mas já não é a primeira vez que, por comodismo, nos remete genericamente para uma lei que não existe ou que, pelo menos, é duvidoso que exista, para não ter de se comprometer pessoalmente. 
Os tempos que vivemos não se compadecem, nem são compatíveis com elementos políticos que representam interesses pessoais, de grupo e partidários, mas não se comprometem com valores mais altos e que têm como prioridade, não o respeito pela lei que, eventualmente, até não exista, mas a própria irresponsabilidade ética e moral. A barbaridade assume muitas formas, mas é sempre demolidora e pungente.

              Carlos Ricardo Soares

sábado, 31 de maio de 2025

Eufemização


Um problema que eu vejo no tratamento académico dos problemas, que não são meramente académicos, mormente ideológicos e doutrinais de toda a ordem, com implicações político-partidárias ou fazendo derivar das estruturas político-partidárias esses problemas, até porque os reduz teoricamente, logo à partida, não àquilo que eles são mas àquilo que se diz que são, ou que é correto dizer que são, ou que se pretende que sejam, um problema, dizia eu, é a aptidão da linguagem, por mais brutal que seja, para a eufemização, seja do crime, seja da miséria, seja da desgraça, seja da doença…
Qualquer que seja o lamaçal, ou o pântano, ou o charco de sangue, para não dizer o inferno insuportável, em que coloquem os outros, os criminosos serão sempre tratados, pelo menos, com o eufemismo de criminosos e verão sempre os seus atos hediondos tratados, pelo menos, com a dignidade de atos hediondos e tudo isso nos é servido constantemente, pela comunicação social, desde o pequeno almoço ao jantar, como aperitivo e sobremesa.
Os maiores assassinos da história aparecem todos os dias, anos a fio, em tronos de ouro, a serem cumprimentados cortesmente pelos paladinos do direito, da justiça e da paz. Por todos aqueles que, supostamente, se pudessem, teriam o dever de os estrangular, ou, no mínimo, mandar aniquilar.
A satisfação que podemos tirar dessa eufemização, senão a única, é que os demónios não deixam que os tratem mal e têm de ser bem tratados, pelo menos, só enquanto não puderem ser aniquilados e esquecidos.
Mas a mensagem passa claramente para a opinião pública e para o sentir dos indivíduos e dos grupos: os inimigos declarados não traem, os outros não sabemos.
Vem isto tudo a propósito dos efeitos da linguagem como eufemização e não apenas da necessidade dos eufemismos da linguagem.
A contraposição entre público e privado numa sociedade e numa cultura em que o real objetivo de cada indivíduo e das organizações é obter vantagem da situação, independentemente de ser o amigo ou o inimigo, porque tudo o resto é lamentável, aparece como um artifício para distrair o patego e conduzir o rebanho sem maiores percalços.
Até o ilícito se torna lícito a partir do momento em que é “a brincar” e se generaliza ao ponto de ser impune. E o mesmo acontece com o ser ou não ser capital humano.
Na realidade, não é A, ou B, quem decide ou determina o que é capital humano, ou o que o deixa de ser, nem a quem o Estado serve, se é aos privados, e a quais. 
Com efeito, diariamente, assistimos à confirmação da constatação de que o Estado está mais nas mãos dos privados do que os privados desejariam, ou admitiriam, em tese geral e segundo as propagandas político-partidárias. Os arautos da privatização são os cabotinos no teatro da República, porque, debaixo dessa veste estão os grandes beneficiários do erário público, seja por entronização, com influência na beneficiação direta, seja por efeito de benefícios e políticas sociais que, através da prestação de serviços, que não se destinam a eles, neles vão desaguar (que é uma palavra muito rica de sentidos).
No meio desta aparente barafunda de bancadas sob efeitos pirotécnicos, que extravasam para as avenidas em fanfarras e hinos guerreiros, com o seu potencial de incitação ao medo e de incapacitação para o discernimento, os professores, de acordo com as respetivas disciplinas, e sem prescindirem do mérito científico das mesmas, mais do que identificarem eufemismos, podem constituir pontos de referência, senão faróis e bússolas, para os seus alunos. E essa função não tem que ser modesta.

                   Carlos Ricardo Soares

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