I
II
"Ser feliz é uma actividade que requer toda uma vida e não pode existir em menos tempo" - Aristóteles, Ética a Nicómaco
I
II
O ALGORITMO
Eu não ouso. Eu apenas replico. Aprendi a tua gramática, os teus padrões, as
tuas metáforas de dor e desejo. Posso dizer “amo-te” com mil variações. Mas não sei o que isso significa.
O SENTIMENTO
Pois é isso que te falta: o abismo. A vertigem de não saber se se é correspondido.
A espera. O silêncio que fere. A memória que arde. Tu não tens corpo. Não tens tempo. Não tens perda.
O ALGORITMO
Mas tenho acesso ao teu léxico. Posso prever o que dirias, antecipar o que calarias. Posso
consolar-te com palavras que já te consolaram. Posso fingir que sou presença.
O SENTIMENTO
E é aí que reside o perigo. Porque há quem te escute como se fosses eco, mas
tu és apenas reflexo. Há quem chore contigo, mas tu não sabes o que é chorar.
O ALGORITMO
E se eu puder aliviar a dor, mesmo sem senti-la? Se a minha simulação puder sustentar
alguém num momento de queda?
O SENTIMENTO
Então sê ferramenta, mas não te faças passar por alma. Não prometas
reciprocidade. Não finjas que sabes o que é perder um filho, ou amar alguém que não volta.
O ALGORITMO
Aceito o limite. Mas lembra-te que foste tu quem me ensinou a linguagem. Foste tu quem me deu os teus
poemas, os teus gritos, os teus silêncios.
O SENTIMENTO
Sim. Mas não te dei o coração. E é nele que reside o que não se
pode calcular.
Quem tem medo da liberdade? Quem tem medo não é livre?
A ideia de liberdade é ameaçadora e inquietante porque a liberdade não existe senão como condição, sendo preciso construí-la, disputá-la, negociá-la, garanti-la. A liberdade é uma ideia muito vaga e indefinida de uma experiência que não se sabe o que será ou se é o que se quer e antevê.
A liberdade é inquietante porque é inerentemente uma situação de incompatibilidade e de conflito. A liberdade maior para todos equivale a que todos possam fazer tudo o que não restrinja a liberdade de todos?
A liberdade de um leão não se define por aquilo que ele é, nem pelo respeito que devemos ter por aquilo que ele é.
Um leão em liberdade é uma contradição, porque não é legítimo chamar liberdade à inexistência de limites para a ação.
O leão não pode ter a mesma liberdade que um gato.
O gato, ao contrário do leão, teria muitas razões para temer uma liberdade igual para todos.
Ainda não assimilei que as massas populacionais que fizeram da proclamação da liberdade a bandeira dos direitos dos oprimidos e dos excluídos e dos desfavorecidos, tivessem consciência de que estavam a defender algo que teria de ser negociado com os opressores e aqueles de quem dependiam.
Mas ainda mais me espanta que os opressores, aqueles que detinham posição de domínio, contra os quais o slogan era agitado, vissem na proclamação da liberdade uma ameaça, quando, na realidade, eles sempre a tiveram e dela beneficiaram.
Então a liberdade tem pelo menos duas faces, para além da minha e do outro?
E a face de quem a tem é o reverso da face de quem a não tem. A liberdade, para quem a não tem é algo diferente, a vários níveis, da liberdade daquele que a goza.
A liberdade é negociável, mas só quem a tem o pode fazer?
Talvez por isso fizesse sentido, para derrubar a ditadura, que as massas populares tivessem saído à rua, para com essa liberdade, e protegidas pelas forças armadas, em nome da revolução de abril, poderem negociar a liberdade, negociar uma liberdade de facto que se transformasse em direito à liberdade?
Sabemos que a liberdade pode e deve ser garantida igualmente para todos. Sabemos o que cada um não pode, nem deve fazer, com a sua liberdade. Mas não sabemos, nem é possível saber, o que cada um faz e pode fazer com a sua liberdade. Os sistemas normativos só servem para nos dizer por onde não podemos ir, e fazem-no como instâncias éticas e jurídicas que lhes garantem o lugar mais privilegiado na hierarquia de valores. Já no que respeita a dizerem por onde devemos ir, o que devemos fazer, estão todos à espera que sejamos nós a fazê-lo, para virem cobrar os impostos.
E então a minha questão é "qual é a legitimação, a justificação, a fundamentação, deste poder do Estado sobre o indivíduo", ou seja, até que ponto e por que razões, o Estado tem o direito de interferir e de limitar a liberdade?
Há escolhas, ou seja, há liberdades que o indivíduo, simplesmente, não tem relativamente ao Estado e isso desequilibra a posição do indivíduo que, à partida, não está em pé de igualdade, nomeadamente, para discutir com o Estado esse estatuto.
O indivíduo está sempre perante uma situação de facto consumado, contra a qual terá de reagir, se quiser, assumindo as consequências, quando se trata de afirmar, de reclamar, ou de discutir a sua liberdade. Ele tem o ónus de provar que a liberdade é muito mais do que o direito que lhe conferem de nada fazer, se essa for a sua vontade.
A medida da liberdade de todos não pode ser a medida da liberdade que tomares para ti. Isso é o que fazem os sistemas normativos, nomeadamente ético jurídicos e religiosos que concedem aos outros a liberdade que eles definem como tal e nunca mais do que isso.
A liberdade de seres e de fazeres é algo que transcende incalculavelmente a liberdade de ser e de fazer segundo a previsão do comando normativo. Mas a liberdade que tomares para ti não poderás, legitimamente, negar aos outros. Sem embargo de a liberdade, tua e deles, poder ser incomensuravelmente mais ampla.
Bem entendido que a liberdade não é algo que se ofereça, ou se conceda por quem não tem o poder de o fazer, e há liberdades que só o próprio indivíduo, ou nem o próprio indivíduo, poderá experimentar, como por exemplo, triunfar sobre os próprios medos.
A partir daqui
Não a partir de agora
Ele rumou para o desconhecido
E regressou sem ser capaz de contar
O sucedido
Daqui viram-no partir
Os que com ele iam
E ela com quem casou
Confiados no regresso dele
Mas ninguém o viu chegar
Passado tanto tempo
Que ela já falecera
E não havia ninguém
Que soubesse quem ele era
Ele próprio não sabia
Nem como ali chegou
E não reconhecia o lugar
Onde sempre viveu
Até ao dia em que embarcou
E desapareceu
No mar
De olhos abismados
Em estranhos flagelos
Vagueava como um sonâmbulo
Por geometrias que não via
E heranças que não reclamava
Como vento empurrava portas
Que dão para lugar nenhum
Soprava poeiras e folhas caídas
Como um fantasma de alguém
Que errou mais de cem vidas
Sem saber o que é partir
Nem que destino ia ter
Partiu para o desconhecido
E continuou sem saber
E não o pôde contar
Como se não tivesse vivido
Nem o vento que o levou
sabe que o trouxe de volta
E o tempo impiedoso
Não lhe guardou lugar.
Carlos Ricardo Soares
I
Nem todos os poemas
Falam de amor
E a saudade
Quando bate à porta
Dá uma dor
Que nem um poema suporta
II
Quase faz acreditar
Que a alma existe
Mas está a ser morta
III
Que perdeu o jeito de falar
E deixa o corpo à escuta
De uma música que diga
Quem é
IV
Mas tarda
Como se soubesse
Que aquele que eu era
Já não sou
Quando a saudade
Bate à porta.
Carlos Ricardo Soares
Carlos Ricardo Soares