sexta-feira, 19 de março de 2021

As coisas e os números III

O Hilário disse ao seu amigo: as coisas e os números têm uma relação estranha mas fascinante.

O amigo: a divisibilidade das coisas não é como a divisibilidade dos números.

Hilário: qualquer número é uma unidade divisível em unidades

O amigo: mas uma determinada coisa não é divisível em coisas iguais.

Hilário: mas como explicar ou compreender que uma coisa possa dar origem a coisas diferentes dela?

O amigo: no momento do big bang só havia uma coisa, uma unidade.

Hilário: e era uma coisa infinitamente infinitesimal.

O amigo: que se dividiu numa infinidade de coisas diferentes dela, numa infinidade de unidades.

Hilário: o uno, o todo, passou a ser constituído por uma infinidade de coisas

O amigo: e se dividisse este euro em dois? Dava-te um e ainda ficava com outro.

Hilário: se dividires uma unidade por dois o resultado é duas unidades.

O amigo: mas não é possível dividir uma maçã em duas maçãs.

segunda-feira, 8 de março de 2021

As coisas e os números II

Enquanto escrevo sobre realidade e conhecimento, volto a pensar no Hilário, que disse ao seu amigo:
- O uno é o todo, que nós desconhecemos.
E o amigo acrescentou:
- No entanto, a unidade(=1) é composta de um número infinito de partes.
Hilário: cada parte, cada fracção da unidade é, por sua vez, uma unidade.
O amigo: o todo é constituído pelas partes, do mesmo jeito que a unidade é o somatório, ou o conjunto, o total das unidades.
Hilário: unidades entendidas como 1+1+1..., de tal modo que, por exemplo, 1/2= 1+1=2.
O amigo: dividida em duas partes a unidade passa a ser duas unidades.
Hilário: boa! Deste-me uma ideia: se dividir um euro em dois, posso ficar com um e dar-te o outro.
O amigo: mas não consegues dividir um euro em dois, como não consegues dividir uma maçã em duas, ou outra coisa qualquer.
Hilário: pois não, só se consegue isso com os números.

quinta-feira, 4 de março de 2021

As coisas e os números

Estou a pensar nesta curiosidade, que me ocorreu agora, enquanto escrevo sobre realidade e conhecimento.

O Hilário disse ao seu amigo que qualquer número é um somatório de uns, 1+1+1...

O amigo do Hilário disse-lhe que a realidade das coisas é diferente dos números, porque a água não pode ser HO-1, ou H4O2.

O Hilário respondeu que então era por isso que o amigo não tinha 4 mulheres a que deduzia 3.

O amigo disse: exacto, e também não tenho um milhão de euros a que subtraio 999999.

Pois é, disse o Hilário intrigado, já desconfiava que a minha rua não tem dez milhões de habitantes a que retiraram 9998000.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O futuro já começou ontem

O que torna o futuro mais apetecível é este presente sofrível, para não dizer deprimente. 

Há muita gente que se apazigua e encontra panaceias na imaginação do passado. Outros procuram sair do presente, o mais rapidamente possível, dispondo-se a pagar um preço por isso. Outros ainda, fazem todo o tipo de esforços para não saírem do presente, por várias razões, entre elas, não quererem voltar ao passado (como se isso fosse possível), nem quererem o futuro, onde, de certo, só há coisas más ou menos boas, tudo o mais tem de ser construído, edificado, com imenso esforço, muito mais do que aquele que é necessário, todos os dias, para que tudo continue na mesma.

Mas o futuro já começou ontem.

Os ovos do futuro já estão a incubar. Podem não eclodir todos, mas os que eclodirem serão mais determinantes do que os outros. Ovos de víboras e de serpentes, de pombas e de andorinhas, de peixes e de galinhas...E ovos de ouro...E muitos outros ovos em cestas de investimentos diversificados, em apostas...

Mas isto dos ovos é terrível, porque os ovos de uns são uma ameaça, ou um perigo, para os ovos de outros. Há quem se ocupe em destruir e devorar os ovos dos outros.

E, na realidade, por mais ecografias que se façam, nunca se sabe se vai eclodir um monstro.

Mais do que uma esperança, o futuro apresenta-se como uma fatalidade.

É preciso estar imbuído de uma boa dose de desespero e de infortúnio para forçar a casca e tentar uma saída. Uma saída é isso mesmo, não necessariamente para um local melhor, para uma situação melhor (pode ser para a boca de um predador), mas mesmo quando se conhecem os riscos, nem sempre é possível deixar de os correr e pode ser melhor corrê-los.

Se isto é aplicável a qualquer época, ou momento histórico, o nosso apresenta a particularidade de, em geral, os riscos, aparentemente, estarem ou poderem ser controlados. Acreditamos nisso.

Isto pode não encorajar suficientemente a tal saída, mas o nosso maior desafio é esse: ousar, que nunca o risco foi tão pequeno, nem as expectativas tão grandes, e não deixar os nossos “negócios” ao acaso, nem os nossos créditos por mãos alheias.

 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Uma colónia dos partidos

Nem tudo era mau no tempo do D. Afonso Henriques, pelo menos até ao desastre de Badajoz, que foi mesmo o primeiro grande desastre de Portugal.  

E nem tudo era mau no tempo de Salazar, como, por exemplo, o patrulhamento dos rios, para que ninguém pescasse sem licença, das florestas, para que ninguém caçasse sem licença ou incendiasse, ou se refugiasse, o patrulhamento das estradas, a obrigatoriedade de licença, vacinação e cadeado para cães, a proibição de andar descalço em lugares públicos, enfim, alguns exemplos de que me lembro, que alguns tomarão como exemplos de coisas más. 

Agora, não sei se o termo mais apropriado será declínio, porque já estamos em declínio há tanto tempo que começa a ser impossível que seja declínio. É como entrar num túnel, só se entra até meio, a partir daí já se está a sair.   

Mas que Portugal, mais ou menos inadvertidamente, mais ou menos programadamente, se transformou numa colónia dos partidos políticos, seja em nome de uma internacional qualquer, financeira, da saúde, do comércio e turismo, militar, ou dos trabalhadores, nós somos uma colónia de uma União Europeia que é possível ser vista como a garantia tutelar da nossa democracia por quem os partidos têm a compreensível devoção dos vassalos pelos senhores.  

Aliás, também nem tudo era mau no feudalismo.  

A realidade acaba por ser sempre o que nos salva. Se a esperança é a última a morrer é por causa disto.  

Os governos nunca souberam governar porque quanto mais tentam governar mais desgovernam.  

E se forem governos muito voluntaristas, ignorantes e determinados, o mais provável é que estejam a asfixiar as alternativas que a imaginação pode sempre prodigalizar a quem não sabe, mas precisa. 

Qualquer que seja o desgoverno é governo. Tem é que haver um desgoverno. Os partidos políticos não se governam bem? E a culpa é nossa, que nos queixamos? 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

As pessoas são ilhas

As pessoas são ilhas, mas a maior parte delas só desconfiam disso nos momentos em que se sentem sós e sentem o que mais ninguém pode sentir por elas, por mais que finjam compreender e, se compreendessem, também não iriam adiantar nada. 
Os poetas talvez descubram isso e se ponham a fabricar barcos, navios, caravelas, aviões, para transpor os oceanos da língua e das linguagens que nos ligam efectivamente mas que, mais do que isso, nos dão a ilusão de não sermos ilhas que, efectivamente, somos. 
Quanto mais tentamos sair da ilha mais percebemos que uma ilha não pode sair de si mesma. 
A imaginação, não obstante, ajuda. 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Sem conhecimento não há nada - II

Todo o conhecimento é sobre o passado, sobre factos. Facto é passado. 

Por outro lado, vemos B. Russel a insurgir-se contra os idealistas e os platónicos, enquanto defende um materialismo estrito, com argumentos que não podem deixar de ser metafísicos, quando diz, por ex., «o universo escolheu funcionar de um modo matemático e não do modo que os poetas e os físicos teriam desejado. Talvez isso seja lastimável, mas dificilmente se espera que um matemático o lamente.»   (Bertrand Russel - Ensaios Céticos).  

Aliás, na mesma linha de Galileu, quando este se refere ao grandíssimo livro da natureza escrito em linguagem matemática. Como se a linguagem, matemática ou verbal, ou outra, preexistisse ao homem, não seja criação sua e ele, meramente, a tivesse descoberto.  

As ciências da vida, dão-nos conta de que a vida é uma espécie de linguagem, com a sua estrutura e os seus códigos e redes de comunicação.  

O conhecimento é uma estrutura explícita de uma linguagem cuja estrutura é determinada, ou formatada, pelo nosso cérebro e todo o sistema sensitivo e cognitivo.  

As características do nosso pensamento, as formas como pensamos e como representamos a realidade e comunicamos, não foram, nem são escolha nossa, «nem do modo que os poetas e os físicos teriam desejado», para ironizar um pouco com B. Russel.  

Tanto quanto sei, a natureza (em sentido estrito, sem incluir o homem) não produz números, fórmulas, equações, cálculos, perguntas, palavras, signos, símbolos, formas geométricas, triângulos, etc., mas nós somos capazes disso e parece que até as estruturas mecânicas que somos capazes de construir têm sempre forma geométrica. 

 

Também, sendo a realidade contínua mas não conseguindo nós pensar de modo contínuo, as nossas representações mentais são fruto dos nossos sentidos, integrados no nosso sistema neurológico, fragmentárias, parciais e uma sucessão de instantâneos, que seriam outras se outras fossem as formas de “interacção, conexão” entre nós e o mundo. Basta pensar, por momentos, no que observa, capta, conhece, um cego de nascença, por ex., quando entra numa sala cheia de gente.  

E o que seria o conhecimento humano sobre o mundo se, por acaso, não tivéssemos olhos para ver. Onde se falaria em evidências?  

Nos tribunais, por ex., fala-se em audiências.  

A justiça aparece representada com uma venda nos olhos. Embora signifique que não deve ser influenciada nas suas decisões pelo estatuto social ou pelas características pessoais das partes no processo, também pode significar a necessidade de arbitrar sobre factos que não observou, nem observa.

Interrogo-me se temos possibilidade de pensar o todo, mesmo tomando como um todo apenas uma parte e, ao mesmo tempo, pensar as partes que o constituem. Somos capazes de analisar, mas parece que não temos capacidade para representar mentalmente uma síntese.  

 

A própria linguagem verbal, até a que usamos correntemente, atingiu níveis de abstracção tais que se emancipou das suas referências significadas e funciona muitas vezes como uma espécie de matemática, ou moeda fungível, através da qual se podem fazer jogos e trocas infindáveis e operações sem limite, com largos espectros de significação e sentido, sem deixar de cumprir os requisitos de validade lógica. 

O nosso equipamento natural, ou a nossa estrutura física, com os sentidos que possuímos e os recursos de racionalidade de expressão e de comunicação, mormente linguísticos, os códigos e o modo como tudo se processa no nosso organismo e nas redes neuronais individuais e sociais, em que estamos inseridos e conectados, têm as características e o potencial que têm e não outras, que desejássemos escolher.  

O que acho verdadeiramente notável e espantoso é a nossa aptidão para criar geometrias, números e relações lógicas, símbolos e signos que nos permitem representar a realidade e tratá-la como se ela fosse uma forma, um número, um símbolo, ou uma ideia e, tantas vezes, tomarmos estas nossas criações abstractas como características da realidade concreta e objectivada.