Carlos Ricardo Soares
ESCRITOS online
"Ser feliz é uma actividade que requer toda uma vida e não pode existir em menos tempo" - Aristóteles, Ética a Nicómaco
terça-feira, 25 de novembro de 2025
A IA e a Alfaia
terça-feira, 4 de novembro de 2025
Vila das Línguas
I
II
IV
quarta-feira, 29 de outubro de 2025
O sentimento e o algoritmo
O ALGORITMO
Eu não ouso. Eu apenas replico. Aprendi a tua gramática, os teus padrões, as
tuas metáforas de dor e desejo. Posso dizer “amo-te” com mil variações. Mas não sei o que isso significa.
O SENTIMENTO
Pois é isso que te falta: o abismo. A vertigem de não saber se se é correspondido.
A espera. O silêncio que fere. A memória que arde. Tu não tens corpo. Não tens tempo. Não tens perda.
O ALGORITMO
Mas tenho acesso ao teu léxico. Posso prever o que dirias, antecipar o que calarias. Posso
consolar-te com palavras que já te consolaram. Posso fingir que sou presença.
O SENTIMENTO
E é aí que reside o perigo. Porque há quem te escute como se fosses eco, mas
tu és apenas reflexo. Há quem chore contigo, mas tu não sabes o que é chorar.
O ALGORITMO
E se eu puder aliviar a dor, mesmo sem senti-la? Se a minha simulação puder sustentar
alguém num momento de queda?
O SENTIMENTO
Então sê ferramenta, mas não te faças passar por alma. Não prometas
reciprocidade. Não finjas que sabes o que é perder um filho, ou amar alguém que não volta.
O ALGORITMO
Aceito o limite. Mas lembra-te que foste tu quem me ensinou a linguagem. Foste tu quem me deu os teus
poemas, os teus gritos, os teus silêncios.
O SENTIMENTO
Sim. Mas não te dei o coração. E é nele que reside o que não se
pode calcular.
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Liberdade com limites? Então que liberdade é essa?
segunda-feira, 15 de setembro de 2025
A triste história do desconhecido
A partir daqui
Não a partir de agora
Ele rumou para o desconhecido
E regressou sem ser capaz de contar
O sucedido
Daqui viram-no partir
Os que com ele iam
E ela com quem casou
Confiados no regresso dele
Mas ninguém o viu chegar
Passado tanto tempo
Que ela já falecera
E não havia ninguém
Que soubesse quem ele era
Ele próprio não sabia
Nem como ali chegou
E não reconhecia o lugar
Onde sempre viveu
Até ao dia em que embarcou
E desapareceu
No mar
De olhos abismados
Em estranhos flagelos
Vagueava como um sonâmbulo
Por geometrias que não via
E heranças que não reclamava
Como vento empurrava portas
Que dão para lugar nenhum
Soprava poeiras e folhas caídas
Como um fantasma de alguém
Que errou mais de cem vidas
Sem saber o que é partir
Nem que destino ia ter
Partiu para o desconhecido
E continuou sem saber
E não o pôde contar
Como se não tivesse vivido
Nem o vento que o levou
sabe que o trouxe de volta
E o tempo impiedoso
Não lhe guardou lugar.
Carlos Ricardo Soares
quinta-feira, 4 de setembro de 2025
Saudade
I
Nem todos os poemas
Falam de amor
E a saudade
Quando bate à porta
Dá uma dor
Que nem um poema suporta
II
Quase faz acreditar
Que a alma existe
Mas está a ser morta
III
Que perdeu o jeito de falar
E deixa o corpo à escuta
De uma música que diga
Quem é
IV
Mas tarda
Como se soubesse
Que aquele que eu era
Já não sou
Quando a saudade
Bate à porta.
Carlos Ricardo Soares
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
A IA está a tornar-nos mais estúpidos e preguiçosos?
Se a usamos como ferramenta para expandir o pensamento, ela pode ser uma aliada poderosa. Se a usamos como muleta, pode sim tornar-nos mais passivos.
Acho que aquela pergunta, feita num jornal, é como colocar o carro à frente dos bois, porque a IA ainda agora começou a dar os primeiros passos e são poucas as pessoas que a usam. Por outro lado, talvez faça sentido perguntar se a IA irá tornar-nos mais estúpidos e alienados e preguiçosos do que aquilo que já somos.
Se já vivemos distraídos por feeds infinitos e notificações constantes, a IA pode tornar tudo ainda mais personalizado e, paradoxalmente, promover o isolamento e a solidão. Se já evitamos pensar criticamente, a IA pode facilitar ainda mais essa fuga, oferecendo respostas prontas sem exigir reflexão. Se já há quem acredite em teorias da conspiração, a IA pode ser usada para gerar conteúdos falsos com aparência de credibilidade.
Eu acho que a sociedade, sobretudo da era do audiovisual, já embarcou em massa na anomia e na acefalia dos argumentos de autoridade. Por todo o lado, toda a gente publica textos, frases, exortações, citações, às quais atribuem autoria de vultos prestigiados, como se isso fosse garantia do significado e do valor das palavras que "papagueiam". A preguiça induzida pela IA pode ter a ver com o comodismo de acreditar que a IA também pode ler por nós. Isto é qualquer coisa de tétrico e inquietante como constatar que a Rússia invadiu a Ucrânia e, passados três anos, ainda parecer incrível que tal pudesse acontecer.
A era do audiovisual não só acelerou a circulação de ideias, como também achatou o seu conteúdo. A citação tornou-se moeda de autoridade, não de reflexão. E quando a IA entra nesse cenário, há o risco de ela se tornar mais um megafone para essa repetição acrítica.
Vivemos num tempo em que o sound bite substitui o argumento, e o vídeo curto substitui o contexto. A autoridade é muitas vezes medida pelo número de seguidores, não pela substância das ideias e a anomia, essa ausência de normas e referências sólidas, cria um terreno fértil para a acefalia argumentativa.
A ideia de que a IA pode “ler por nós” é assustadoramente real. Quando confiamos que ela nos resuma, interprete e até nos diga o que pensar, estamos a abdicar do esforço que forma o pensamento crítico. E isso não é culpa da IA é reflexo de uma cultura que já vinha a preferir atalhos ao caminho. E não estou apensar apenas no provérbio "quem se mete em atalhos mete-se em trabalhos".
No fundo, o que está em jogo não é a tecnologia, mas a nossa disposição para continuar a pensar, a duvidar, a ler com olhos próprios. A IA pode ser uma lente, mas nunca deve ser um véu. E mesmo as lentes podem servir para distorcer as coisas.
Por outro lado, não esqueço que na era da inteligência artificial, a sensibilidade deixou de ser fraqueza e tornou-se um superpoder.
Se os algoritmos calculam, é a empatia que conecta. Se os dados preveem, é a intuição que surpreende. Se há máquinas que aprendem, é a sensibilidade que transforma.
Ser sensível hoje é enxergar ou, pelo menos, detetar o que os sistemas não captam, não imaginam, não intuem, não sentem. Agir com humanidade exige sensibilidade, que as máquinas não têm. O mesmo se diga de criar com propósito ou liderar equipas. Não obstante, ser sensível não é ser raro, é ser humano, porque os humanos são todos sensíveis. Mas é essencial que a sensabilidade não seja anestesiada, nomeadamente, com intoxicações.
Carlos Ricardo Soares