Sem pretender acrescentar um chavo ao que se tem dito e escrito sobre poesia e poetas, não resisto a expender algumas notas sobre uma matéria que sempre tive no centro dos meus
circunlóquios, não apenas para escapar a uma força centrípeta insuportável, mas também para não me perder em coisa nenhuma, porque, sem poesia, a função da vida
é muito mecânica e, com poesia, pode ser menos satânica.
De modo que o poeta, se constrói memórias, é sem o saber e evita essa cilada que o tempo coloca no caminho de que reflete
e sente o que lembra e pensa isso tudo de um modo que não é de todo inocente e ingénuo e "naïf".
O poeta desconstrói memórias, dele e dos demais, do que aconteceu fora
e dentro do seu mundo, como se elas desconstruíssem os mundos, interiores e exteriores, de tal modo que ele não encontra o seu lugar, por mais que lho reservem.
O poeta é desconstruído pelas
memórias, que tem, que perdeu e que não foi capaz de reconhecer, como um corpo pelo oxigénio em que arderam as suas células.
O poeta é o criador das musas que o enjeitam e julga saber
disso, até certo ponto.
"Ser feliz é uma actividade que requer toda uma vida e não pode existir em menos tempo" - Aristóteles, Ética a Nicómaco
quinta-feira, 10 de novembro de 2022
O poeta é o criador das musas
quinta-feira, 27 de outubro de 2022
Se o coração falasse
Esteja onde estiver
Faça o que fizer
Pense o que pensar
Diga o que disser
Tenha o que tiver
Sinta o que sentir
Está onde não estou
Estou onde não está
A pedra a ouvir
Se o coração falasse
Diria mil poemas
À tentativa de possuir
Outros mil ao sentir
A falta
Muitos mais ao engano
Que há nisso tudo
E no que falta sentir
Que nunca é de mais
Se for beleza
Por mais que confunda
A céu aberto
Até o desejo doer
Na cava profunda
Da sombra suave
De castelos de areia
Diria mil tolices
Às flores por perto
Sem fazer ideia do tempo
Sem sepultura
A voltar para trás
Aos gritos
Para fazer a vontade
Aos versos aflitos.
domingo, 23 de outubro de 2022
Emboscadas
Por onde vão sem estradas
Nem marcas de ninguém
Se houver escadas
Para o além
Por onde vai sem música
O deambulo sem senão
Das ninfas disfarçadas
De mulheres de alguém
E o alvoroço que resta
Um pouco mais aquém
Por onde vão não há senão
Mundo de ninguém
E não conforta senão
A quem liberta
Não ter porta
Nem cerca.
sábado, 15 de outubro de 2022
Viver
Ai o sublime prazer de coçar
A metafísica comichão
A divagar
Com pródiga comoção
Que ora enxota a pulga
Ora exalta o cão
A elevar a imagem
Que não faz questão
Senão do valor
Da opinião esfarrapada
Sobre uma ópera interrompida
Por uma sorte avara
Que mudou a vida
E esquecer que a saudade
É a última a morrer
Que não se mata saudades
De ter sido
E de não ter sabido
Viver
Peculiares são os rios
Que tortos dançam
Na nitidez dos olhos
Avançam
Na noite alcançam
Definires
De momentos belos
Que nos esquecem
Quando menos esperamos
Onde havia castelos
Só nós estamos.
domingo, 9 de outubro de 2022
Confesso que vivi
Confesso que vivi
Sem pensar em preservar o que tinha
O espaço e a minha liberdade
A visão do meu mundo
Da casa grande
Das vistas largas
Onde cabiam
Quase todos os sonhos
Que havia
Da tranquilidade
Da interminável vinha
Onde nidificavam as aves
Que eu conhecia pelos nomes
Todos os sóis e chuvas
E todas as luas
Que ali me encontravam
Com a alegria e as uvas
Que não faltavam
Na paz criativa da fantasia
De falar incansavelmente
Com as coisas
E de elas falarem comigo
Como se fossem encarnações
Do maior amigo
Que era Deus
Anunciando o outono
E o inverno
E a primavera
Naquele paraíso privado
Em que havia mistérios
Sombras por todo o lado
E estrelas no firmamento
Mas tudo com tal significado
Que até a tristeza
Ali acontecia
Como concretização
De alguma profecia
De milhões de anos
Nem nos dias de nevoeiro denso
Me perdia
Porque havia no ar
Um cheiro dos lugares
Da beira rio
Ou o ladrar dos cães
À passagem das muares
Do moleiro pelos socalcos
Se a noite caísse nos becos
Sem chegar a casa
Bastava um assobio
Para ouvir os ecos
De socorro
Do mundo inteiro.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Metáforas
Os que fecharam as portas
Deixaram o silêncio de fora
A vadiar como um penitente
Até que o silêncio
Tomou conta de tudo
E quando as portas se abriram com o vento
Ele saiu de dentro
E pos-se a vadiar como um rio novo
A que não se chamaria rio ainda
E talvez não venha a ser
Senão metáfora de deus.
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
Derivas ideológicas
Vale a pena pensar no problema das derivas ideológicas e equacioná-lo no tempo, para termos uma perspectiva espácio-temporal que nos ajude a medir proporcionalidades e tentar compreender os fenómenos.
A mim, intriga-me e instiga a minha curiosidade, por exemplo, que no extraordinário curto período de cerca de 60 anos, numa época sem TV, de analfabetismo generalizado, muito longe das comunicações do nosso tempo, o marxismo, os movimentos sindicais, as lutas e reivindicações dos trabalhadores se tenham generalizado e disseminado por toda a parte, com grande sucesso.
E que, o muito que a esses movimentos devemos, apesar dos custos de revoluções, guerras e conflitos de todo o tipo, tenha sido tão facilmente ofuscado e ignorado numa época em que dispomos de meios sofisticadíssimos de comunicação social.
Parece que as condições que explicam o sucesso daqueles movimentos socialistas foram sendo afastadas a tal ponto que o sucesso desses movimentos ditou que perdessem algum do seu sentido, como alguém que abandona a medicação por se sentir curado.
Ora, estamos a assistir a um recrudescer das infecções por abrandamento de anticorpos.
É certo que já não estamos nos alvores da revolução industrial e da exploração do proletariado e que podemos contar com um armário cheio de medicamentos e de terapias. Os próprios vírus sofreram mutações irreversíveis.
Tudo isto exigirá que se actualizem os antídotos, uma vez que as vacinas já não produzem efeitos.