sábado, 20 de março de 2021

Ainda tento explicar a beleza


Ainda tento explicar a tua beleza

E o cheiro de chuva

Que parou depois

De me encostar a ti

Como ser a árvore

Para construíres os teus barcos

Sem que as aves desamorem

A tua respiração

No meu queixo

Enquanto fechava os olhos

Para desenhar janelas

Na nossa roupa

Com as mãos

No agasalho do teu corpo

Confirmava

Que não eras fantasia.


sexta-feira, 19 de março de 2021

As coisas e os números III

O Hilário disse ao seu amigo: as coisas e os números têm uma relação estranha mas fascinante.

O amigo: a divisibilidade das coisas não é como a divisibilidade dos números.

Hilário: qualquer número é uma unidade divisível em unidades

O amigo: mas uma determinada coisa não é divisível em coisas iguais.

Hilário: mas como explicar ou compreender que uma coisa possa dar origem a coisas diferentes dela?

O amigo: no momento do big bang só havia uma coisa, uma unidade.

Hilário: e era uma coisa infinitamente infinitesimal.

O amigo: que se dividiu numa infinidade de coisas diferentes dela, numa infinidade de unidades.

Hilário: o uno, o todo, passou a ser constituído por uma infinidade de coisas

O amigo: e se dividisse este euro em dois? Dava-te um e ainda ficava com outro.

Hilário: se dividires uma unidade por dois o resultado é duas unidades.

O amigo: mas não é possível dividir uma maçã em duas maçãs.

segunda-feira, 8 de março de 2021

As coisas e os números II

Enquanto escrevo sobre realidade e conhecimento, volto a pensar no Hilário, que disse ao seu amigo:
- O uno é o todo, que nós desconhecemos.
E o amigo acrescentou:
- No entanto, a unidade(=1) é composta de um número infinito de partes.
Hilário: cada parte, cada fracção da unidade é, por sua vez, uma unidade.
O amigo: o todo é constituído pelas partes, do mesmo jeito que a unidade é o somatório, ou o conjunto, o total das unidades.
Hilário: unidades entendidas como 1+1+1..., de tal modo que, por exemplo, 1/2= 1+1=2.
O amigo: dividida em duas partes a unidade passa a ser duas unidades.
Hilário: boa! Deste-me uma ideia: se dividir um euro em dois, posso ficar com um e dar-te o outro.
O amigo: mas não consegues dividir um euro em dois, como não consegues dividir uma maçã em duas, ou outra coisa qualquer.
Hilário: pois não, só se consegue isso com os números.

quinta-feira, 4 de março de 2021

As coisas e os números

Estou a pensar nesta curiosidade, que me ocorreu agora, enquanto escrevo sobre realidade e conhecimento.

O Hilário disse ao seu amigo que qualquer número é um somatório de uns, 1+1+1...

O amigo do Hilário disse-lhe que a realidade das coisas é diferente dos números, porque a água não pode ser HO-1, ou H4O2.

O Hilário respondeu que então era por isso que o amigo não tinha 4 mulheres a que deduzia 3.

O amigo disse: exacto, e também não tenho um milhão de euros a que subtraio 999999.

Pois é, disse o Hilário intrigado, já desconfiava que a minha rua não tem dez milhões de habitantes a que retiraram 9998000.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O futuro já começou ontem

O que torna o futuro mais apetecível é este presente sofrível, para não dizer deprimente. 

Há muita gente que se apazigua e encontra panaceias na imaginação do passado. Outros procuram sair do presente, o mais rapidamente possível, dispondo-se a pagar um preço por isso. Outros ainda, fazem todo o tipo de esforços para não saírem do presente, por várias razões, entre elas, não quererem voltar ao passado (como se isso fosse possível), nem quererem o futuro, onde, de certo, só há coisas más ou menos boas, tudo o mais tem de ser construído, edificado, com imenso esforço, muito mais do que aquele que é necessário, todos os dias, para que tudo continue na mesma.

Mas o futuro já começou ontem.

Os ovos do futuro já estão a incubar. Podem não eclodir todos, mas os que eclodirem serão mais determinantes do que os outros. Ovos de víboras e de serpentes, de pombas e de andorinhas, de peixes e de galinhas...E ovos de ouro...E muitos outros ovos em cestas de investimentos diversificados, em apostas...

Mas isto dos ovos é terrível, porque os ovos de uns são uma ameaça, ou um perigo, para os ovos de outros. Há quem se ocupe em destruir e devorar os ovos dos outros.

E, na realidade, por mais ecografias que se façam, nunca se sabe se vai eclodir um monstro.

Mais do que uma esperança, o futuro apresenta-se como uma fatalidade.

É preciso estar imbuído de uma boa dose de desespero e de infortúnio para forçar a casca e tentar uma saída. Uma saída é isso mesmo, não necessariamente para um local melhor, para uma situação melhor (pode ser para a boca de um predador), mas mesmo quando se conhecem os riscos, nem sempre é possível deixar de os correr e pode ser melhor corrê-los.

Se isto é aplicável a qualquer época, ou momento histórico, o nosso apresenta a particularidade de, em geral, os riscos, aparentemente, estarem ou poderem ser controlados. Acreditamos nisso.

Isto pode não encorajar suficientemente a tal saída, mas o nosso maior desafio é esse: ousar, que nunca o risco foi tão pequeno, nem as expectativas tão grandes, e não deixar os nossos “negócios” ao acaso, nem os nossos créditos por mãos alheias.

 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Uma colónia dos partidos

Nem tudo era mau no tempo do D. Afonso Henriques, pelo menos até ao desastre de Badajoz, que foi mesmo o primeiro grande desastre de Portugal.  

E nem tudo era mau no tempo de Salazar, como, por exemplo, o patrulhamento dos rios, para que ninguém pescasse sem licença, das florestas, para que ninguém caçasse sem licença ou incendiasse, ou se refugiasse, o patrulhamento das estradas, a obrigatoriedade de licença, vacinação e cadeado para cães, a proibição de andar descalço em lugares públicos, enfim, alguns exemplos de que me lembro, que alguns tomarão como exemplos de coisas más. 

Agora, não sei se o termo mais apropriado será declínio, porque já estamos em declínio há tanto tempo que começa a ser impossível que seja declínio. É como entrar num túnel, só se entra até meio, a partir daí já se está a sair.   

Mas que Portugal, mais ou menos inadvertidamente, mais ou menos programadamente, se transformou numa colónia dos partidos políticos, seja em nome de uma internacional qualquer, financeira, da saúde, do comércio e turismo, militar, ou dos trabalhadores, nós somos uma colónia de uma União Europeia que é possível ser vista como a garantia tutelar da nossa democracia por quem os partidos têm a compreensível devoção dos vassalos pelos senhores.  

Aliás, também nem tudo era mau no feudalismo.  

A realidade acaba por ser sempre o que nos salva. Se a esperança é a última a morrer é por causa disto.  

Os governos nunca souberam governar porque quanto mais tentam governar mais desgovernam.  

E se forem governos muito voluntaristas, ignorantes e determinados, o mais provável é que estejam a asfixiar as alternativas que a imaginação pode sempre prodigalizar a quem não sabe, mas precisa. 

Qualquer que seja o desgoverno é governo. Tem é que haver um desgoverno. Os partidos políticos não se governam bem? E a culpa é nossa, que nos queixamos? 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

As pessoas são ilhas

As pessoas são ilhas, mas a maior parte delas só desconfiam disso nos momentos em que se sentem sós e sentem o que mais ninguém pode sentir por elas, por mais que finjam compreender e, se compreendessem, também não iriam adiantar nada. 
Os poetas talvez descubram isso e se ponham a fabricar barcos, navios, caravelas, aviões, para transpor os oceanos da língua e das linguagens que nos ligam efectivamente mas que, mais do que isso, nos dão a ilusão de não sermos ilhas que, efectivamente, somos. 
Quanto mais tentamos sair da ilha mais percebemos que uma ilha não pode sair de si mesma. 
A imaginação, não obstante, ajuda.