Num texto, com o título «Para que serve a cultura?», Eugénio Lisboa coloca questões e dá ou sugere algumas
respostas, que são de entendimento difícil e, aparentemente, supérfluas por
serem de pendor e de teor especulativo acerca de comportamentos humanos que,
penso eu, se manifestam em contextos muito sofisticados e torturados de jogo,
com as suas regras e os seus juízes, ainda que longe de estarem
institucionalizados e reconhecidos como tais e, mais ainda, longe de serem
aceites, tanto uns como outros, por serem quase sempre autopropostos e, no que
diz respeito aos veredictos, do mais inconsistente e lastimável que há, por
serem, quase sempre, ou esmolados, ou pedinchados, ou estrategicamente
concedidos por quem se investe no poder de o fazer. Há mais exemplos de
situações reais, possíveis e imaginárias.
Se já é inatingível estabelecer critérios, que o sejam, daquilo que
deve-ser o jogo, quanto mais causador de conflitos e de intolerâncias não será
a intervenção de árbitros que chamam a si o protagonismo da discórdia.
O artista, poeta, romancista, músico, pintor, arquitecto, pensador,
cientista, realizador, enfim, todos os criadores, críticos, podem estar à mercê
do juiz mais ou menos piedoso, que são eles próprios. Mas ao que eles não escapam é ao jogo da
vida, da cultura, dos árbitros que decidem o jogo, dos valores, dos mercados…
A não ser que os desprezem e não lhes reconheçam idoneidade nenhuma, mas
isto não resolve nada e só agrava as coisas. Os criadores não estão adstritos a
nenhum dever especial de bonomia, harmonia, cedência, de sujeição, de
complacência, de irmandade ou clientelismo, em troca de expectativas de serem
valorizados, bem pelo contrário, certas cumplicidades podem comprometer a
credibilidade e o valor do seu trabalho.
Nada é menos supérfluo do que a arte, as ideias claras, o pensamento
revelador, o engenho inovador e a visão surpreendente, a ciência, a criação
humana, enfim, a cultura.
Nada é mais humano do que a cultura, da qual destaco o prodígio da língua
e as linguagens. Ela é a realidade humana, uma das faces da realidade em
sentido amplo, sendo a outra face a realidade natural, embora o homem também
seja um animal, que faz parte desta.
Se pensarmos o homem como um animal, de acordo com o critério da
necessidade vital, diremos que a cultura é supérflua.
Mas o princípio da economia que rege os organismos vivos, incluindo o
homem, deixou de ser no humano um ter de ser, tipo tropismo, e adquiriu a
natureza de um poder ser, tipo possibilidades, alternativas.
Se isto pode ser visto deste modo, a racionalidade humana nasceu assim,
da possibilidade de escolha. A partir daqui, tudo pode ser explicado com
coerência e consistência, inclusivamente, se e porquê a cultura é um edifício
da ordem do dever-ser.
Aliás, não esqueçamos que a economia é a ciência das escolhas.
Justamente, tudo aquilo que nos interessa, em cada situação de possibilidades
de escolha, alternativas ou não, é saber qual é a melhor escolha.
O problema, que me parece ser o busílis de todos os problemas de ordem
humana e social, ou a mãe de todas as frustrações culturais, não é a
possibilidade de erro. Esta possibilidade está presente em qualquer escolha,
por mais informada que seja, porque só o futuro dirá do acerto ou desacerto da
escolha, em função do critério que se seguiu.
De resto, qualquer escolha implica renunciar às alternativas. Isto também
pode ser muito problemático. E há escolhas que têm de ser feitas
impreterivelmente, que não podem esperar pelos conselhos da melhor ciência.
Mas, dizia eu, mais acima, a mãe de todas as frustrações é o arbítrio.
A cultura está num ponto de desenvolvimento que nos permite ter
esperanças de que as sociedades humanas se entenderão acerca do que devem ser
as melhores escolhas, em todos os domínios. A paz será, assim, possível.
A mãe de todas as frustrações é que, não é por dispormos do entendimento
necessário sobre o que deve ser feito, a nível individual, estadual,
internacional, mundial, nem por isso ser feito, que estamos livres de actos
criminosos, terroristas, atentados, de loucura, etc., que deitem tudo a perder.
Nada do que é humano, exceptuando a sua natureza animal involuntária, que
funciona em modo autónomo, e o arbítrio, que é individual, a que não chamo
liberdade, tem outra matriz que não seja a cultura.
Assim sendo, a cultura é a realidade sem a qual o humano, enquanto
social, não existiria.
A questão “para que serve a cultura?”, tal como as respostas que se lhe
deem, é, obviamente, cultural e, como qualquer outra realidade, pode servir
para objectivos (culturais) muito diversos, sem que possamos antever todos.
A cultura serve unicamente, e é tudo o que interessa, para sermos o que
somos, ou seja, o ser humano é um ser cultural e vice versa, no sentido em que
um não tem significado sem o outro.