terça-feira, 30 de março de 2021

Homem em torno do qual tudo deve gravitar


Tenho a percepção de que a filosofia vai ser cada vez mais importante, não tanto como teoria geral de conhecimento dos mundos, mas sobretudo como teoria geral de como esses mundos devem ser, considerando que todo o conhecimento, por si mesmo, é humano e não tem outra génese, nem outro sentido e que o pensamento humano, enquanto racionalidade, é sempre um dever ser no espectro das possibilidades, ou, de outra forma, as escolhas do ser humano dentro do leque das possibilidades, não são aleatórias, há algum grau de tensão entre a vontade e a liberdade, que é resolvido por algum tipo de racionalidade. E se isto é o que acontece, quer haja filosofia ou não, quer haja ciência ou não, o facto de o sabermos é de uma importância e relevância nem sempre fácil de compreender. 
Na realidade, as coisas acontecem, quer o saibamos quer não. Aparentemente, tanto nos faria saber como não saber. Ou, saber e nada saber iria dar ao mesmo.
Mas a filosofia vai buscar a sua importância e relevância à necessidade de explicar isso a si mesma e, não menos importante, explicar a importância e a relevância de todo o conhecimento, em especial o científico, não do ponto de vista económico, técnico, utilitário, mas do ponto de vista epistemológico. E isto não é pequena coisa. 
Para tentarmos perceber este problema, pensemos que os próprios investigadores científicos, os cientistas, raramente revelam ter a noção da diferença que fazem no universo do conhecimento. Sabem que o seu trabalho é da maior importância para todos e todos, mais ou menos, percebemos que a ciência resolve uma quantidade de problemas que só ela sabe. 
Poderíamos ter lido todas as bíblias e todos os tratados de filosofia e saber toda a matemática e conhecer todos os livros de auto-ajuda e técnicas de socorro a náufragos e ter o mais alto QI e ter bebido muita água, mas não acredito que conseguíssemos descobrir, por meras inferências, dedutivas ou indutivas, nem sequer por adivinhação, a composição química da água. Ainda que já conhecêssemos o hidrogénio e o oxigénio, esse conhecimento não no-lo permitiria descobrir, por si só, sem uma experiência que o revelasse. E se os nossos conhecimentos, numa mínima parte são deduções ou induções de crenças no que nos dizem e, na sua maioria, meras crenças, por confiarmos naquilo que nos dizem, vivemos numa realidade virtual a tal ponto baseada em imagens e discursos, que nos escapa trivialmente a natureza e o âmbito do conhecimento científico, como se fosse uma extensão dos conhecimentos em geral. 
Escapa-nos, trivialmente, que não há conhecimento científico “a priori”, que não podemos conhecer Paris sem ir lá, que não podemos conhecer uma árvore através de um manual, por mais completo que seja, que não podemos comer um bife através de um vídeo, que não podemos saber hoje que o sol vai nascer amanhã. 
O conhecimento científico não é frustrante. Frustrante é, muitas vezes, não saber o que fazer com ele, ou fazer o que não devia ter sido feito. 
A filosofia não é o tribunal de contas do que devia ter sido feito, de acordo com as normas, nem do que devem ser as normas, mas é o tribunal do que deve-ser declarado, considerando que deve ser uma declaração de sabedoria, por ser humana acerca do homem em torno do qual tudo deve gravitar, porque o contrário não faz sentido.

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