domingo, 25 de agosto de 2024

Aproximações à verdade XXIX


Hilário: tenho andado a tentar perceber porque é que, passados sessenta anos, ou mais, desde que ouvi falar de Luís de Camões, cada vez me fascina mais o homem e menos o mito

Amiga: Camões, para mim, só não é um personagem de uma história de ação, porque era poeta e escreveu os Lusíadas

Hilário: não há como separar o homem e a obra

Amiga: não há como separar o homem, a obra e o tempo, a história, o contexto histórico

Hilário: o tempo, a história, o contexto histórico, sem Camões, seriam entendidos de modo diferente

Amiga: grande parte da visão que temos de Portugal desse tempo é-nos proporcionada por Luís de Camões, nascido há 500 anos

Hilário: é admirável e genial este português, tão situado no tempo dos descobrimentos e tão pouco distanciado dos factos da história de Portugal, ter congeminado uma visão tão rica e tão realista dessa história

Amiga: o fascínio de que falavas há pouco deve estar associado ao facto de que, no caso de Camões, a realidade supera sempre a imaginação e o mito

Hilário: é isso, ele faz parte da história, não como outro cidadão que, como ele, embarcou e, porventura, como ele, tenha regressado, mas como protagonista da sua própria epopeia

Amiga: que serve de simbologia espantosa para a epopeia dos Lusíadas

Hilário: foram 56 anos de vida, entre 1524 e 1580

Amiga: Camões pouco escreveu sobre si próprio. Quem não conhecer a obra e a história do homem, dentro da história de Portugal, não entende nada do que estamos a falar.


Carlos Ricardo Soares 

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

O sonho comanda a vida II


Voltando ao meu texto anterior, à cultura como todos os atos (processos conscientes/racionais/individuais de escolha, num quadro de possibilidades) de manifestação, objetivação, objetificação, e factos correspondentes, parece legítimo pensar que as filosofias, as ciências, as artes, as engenharias, as letras (línguas, literaturas), as religiões, os valores, os desportos, os ofícios, os usos e costumes, têm em comum o processo de escolha, consciente/racional/individual.
Assim, só para exemplificar, Moisés, Platão, Santo Agostinho, Copérnico, Galileu, Camões, Pedro Nunes, Descartes, Napoleão, Kant, Newton, Darwin, Einstein, em suma, todos nós, quando praticamos um ato (processo mental, tal como o defino), seja ele apenas mental, sobre algo muito trivial e automatizado, ou sobre algo inaudito, original e complexo, seja ele de manifestação exterior, com mais ou menos intencionalidade significativa e de comunicação, estamos a operar funções neurológicas e mentais que poderíamos descrever e mapear como funções comuns. Do mesmo modo que dizemos que todos nós, quando andamos, temos um corpo com pernas que se movem uma a seguir à outra. O que nos distingue não é esta função, ainda que o não façamos como se fossemos réplicas perfeitas uns dos outros.
Não obstante, enquanto podemos observar o modo como andamos e analisar anatomicamente a estrutura que suporta e permite o processo de movimentos e de atos que envolvem caminhar, já o mesmo não acontece com o ato de pensar, de escolher, de executar mentalmente.
Falar de anatomia de um pensamento? Só em sentido metafórico, mesmo que quiséssemos referir-nos não ao pensamento mas ao suporte físico, neurológico, em que ele ocorre.
Devemos, então, considerar que a situação dá azo a um problema epistemológico severo, tanto no que concerne à fisiologia mental do ato, qualquer que ele seja, como no que respeita às fases do processo do ato, enquanto fenómeno mental consciente e racional, como o defino.
 
Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O sonho comanda a vida I


O sonho comanda a vida - este verso do poema «Pedra Filosofal», de António Gedeão, continua a ser surpreendente e opõe-se a todos os pessimismos - a cultura como realização de escolhas que são atos conscientes, racionais (a minha noção de racionalidade não coincide com o uso corrente do termo. A racionalidade que inventou os mitos e os deuses é a mesma que inventou o telescópio e a teoria da evolução). Esses atos ocorrem em situações tão variadas que podem ser do mais espontâneo até ao mais refletido, ponderado, programado. Independentemente de ser mais ou menos fantasioso, mais ou menos impossível, mais ou menos desejado, o pensamento sobre o objetivo e o objeto a realizar, se for possível realizar e houver vontade disso, é uma representação antecipada daquilo que ocorrerá, das consequências e dos efeitos do ato (pode haver consequências e efeitos imprevistos, imprevisíveis, acidentais, que escapam à intenção e ao controlo do indivíduo). 
O quadro de possibilidades normalmente é muito mais complexo do que aquele que está sob o domínio do indivíduo. A previsibilidade nem sempre é completa e a previsão, frequentemente, está focada em efeitos muito parcelares, sem ter em conta outras variáveis.
Se pusermos a tónica na análise da estrutura do ato, do processo mental que toma consciência, racionaliza as possibilidades da situação, representa antecipadamente consequências e efeitos e exerce a escolha, realiza a escolha, temos importantes motivos para pensar que a ação humana é guiada, pautada, orientada, dirigida a algo, à realização de algo de que se faz alguma ideia, de que se tem alguma representação. Então, se os atos humanos não forem sempre a realização de sonhos, parece que são sempre, pelo menos, a realização de alguma ideia, representação de um objetivo. 
E este objetivo, o efeito e consequência pretendidos, começa por ser uma representação prévia, antes de ser uma realização concreta. Se este é o modo de atuar humano, se a cultura, como produção humana, compreendendo toda a produção humana, é a realização de representações mentais (ter presente que nem todas as representações mentais, nem mesmo uma pequeníssima parte, logram concretização, objetivação, objetificação) poderíamos ser tentados a pensar que há uma simples relação de precedência do mental sobre o cultural e que este é fruto daquele. No entanto, as representações mentais, mormente as que se propõem à realização, são elas próprias um resultado vivo, dinâmico e criativo do indivíduo com a cultura e com o mundo, em geral. É como se a vida fizesse sonhar. Tal como sonhar é viver, viver é sonhar. Não há garantias de que o sonho se realize. 
Mas pode acontecer, como muitas vezes acontece, que as realizações superem os sonhos.

Carlos Ricardo Soares


domingo, 4 de agosto de 2024

Senso comum


Se não tivesses sido sensata

Teríamos partido à aventura

Talvez até devorados

Por crocodilos emboscados

Mas a tua bússola interior

Não me confirmou

E tu

Sensatamente

Continuaste ancorada

Nas miragens da sede

De quem tem febre

Talvez tudo tivesse sido pior

Em qualquer caso

                    Carlos Ricardo Soares