quarta-feira, 19 de maio de 2021

Aproximações à verdade III

Hilário: passou metade da vida a curar as enfermidades com álcool

Amiga: e a outra metade a culpar o álcool das suas enfermidades

Hilário: a brincar que o digas

Amiga: o problema foi quando deixou de beber

Hilário: hã?

Amiga: como é que explicou isso ao médico?

Hilário: o quê?

Amiga: porque é que deixou de beber?

sábado, 15 de maio de 2021

Aproximações à verdade II

Hilário: «existe algum conhecimento tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar?»

Amiga: e tens alguma forma de saber isso?

Hilário: nem sei o que é um homem razoável, nem sei o que é conhecimento tão certo, mostra-me um e outro e eu direi se duvido

Amiga: mas sabes, ao menos, o que é duvidar?

Hilário: tenho dúvidas

Amiga: não és um céptico

Hilário: um céptico é alguém que tem que saber muito

Amiga: voltando à tua pergunta inicial, como responderia um céptico?

Hilário: não responderia que sim, mas eu gostava muito de ouvir as razões

Amiga: mas se respondesse que não, também tinha que apresentar fundamentos

Hilário: e se respondesse que não sabia, só por si, isto não é cepticismo

Amiga: haverá alguma forma, método ou demonstração que “obrigue” um céptico a acreditar?

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Aproximações à verdade

Hilário: talvez não haja muitas coisas que eu e tu não compreendamos

Amiga: se for assim, poucas coisas haverá que não tenham explicação

Hilário: tudo tem uma razão de ser

Amiga: ou melhor, para tudo temos uma razão de ser

Hilário: excepto o que falta explicar

Amiga: os crimes, as guerras, o holocausto, os deuses, as religiões, a corrupção, as desigualdades…

Hilário: têm uma explicação, são racionais

Amiga: os actos humanos são racionais

Hilário: o amor, a teoria da relatividade, a música, a alegria, a crítica da razão…

Amiga: racional é tudo o que os humanos fazem voluntariamente

Hilário: o nosso problema é que muito do que fazem é inaceitável e incorrecto

Amiga: concordo, olhando para a história e para o que acontece à nossa volta.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Então, toma sentido

 O homem é quem dá sentido a tudo e nada senão o homem dá e toma sentido ao humano.

Qualquer ideologia que coloque o homem ao serviço de algo que não tenha o homem como princípio, meio e fim, só pode estar errada e, se tiver força, arrastará a humanidade para o abismo. Nenhuma liberdade ou poder individual, por conseguinte, nem poder de grupo, de partido, igreja, nacional, ou estadual, poderá legitimamente sobrepor-se e sacrificar a liberdade, direitos de exercício e de gozo, de qualquer indivíduo. Nem o dinheiro, nem o lucro, nem o interesse colectivo, nem o interesse de um indivíduo, por mais idolatrado que seja, poderá justificar o sacrifício ou as restrições aos direitos de ninguém.

Só o homem tem dignidade, capacidade e legitimidade para reivindicar e realizar o estatuto de sujeito, activo e passivo, dos significados e dos sentidos.

O discurso da subordinação dos interesses individuais, seja a uma divindade, seja à nação, ou outra coisa qualquer, mesmo quando tem subjacente que isso é no interesse do indivíduo, ou que os interesses do indivíduo são assim mais bem salvaguardados, é um discurso legitimador, na prática, do domínio de uns sobre os outros, dos que se arrogam representar as divindades ou a nação... sobre os outros.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Imaginação, sonho e conhecimento

Perturba-me mais pensar no infinitamente infinitesimal do que no infinitamente grande, se é que assim se pode dizer.
O conhecimento é o que torna a realidade fascinante, sem embargo de a realidade do conhecimento ser o que nos fascina. Quando começamos a ver e a ouvir os abismos como se eles nos vissem e nos ouvissem, a imaginação e o sonho já estão a fazer o seu trabalho. Suspeito de que a importância da imaginação e do sonho, tão bem referidos por Einstein e Pessoa, tenham a ver com a curiosidade e a inquietação, ou o desassossego, sobretudo como modos de ser e de se manifestar do cérebro em determinados contextos problemáticos e de imersão muito controlada numa língua que se faz linguagem e veículo assumido de conhecimento.
A partir do momento em que as coisas deixam de ser o que são, porque não são o que parecem, não têm de ser o que parecem, nem têm de ser o que são, porque podem ser o que não parecem, nem são, deixamos de estar diante de um quadro de “realidades” e passamos a estar diante de um quadro de possibilidades. Deixamos de estar perante um puzzle em que só há uma forma de encaixar as peças umas nas outras e passamos a estar diante de peças de legos muito sofisticadas, como um vírus, ou mais ainda, que permitem imaginar e projectar e realizar construções à medida e ao gosto da imaginação e conhecimento de cada um.
O puzzle que foi a cultura, durante séculos, chegou e sobrou para quebrar as cabeças dos humanos. O próprio puzzle tinha feitiço e magia mais do que suficiente para atordoar e dobrar a espinha aos mais indomáveis dos sábios. Estes, por sua vez, não raro, incrementavam as dificuldades mais do que proporcionalmente aos méritos do que sabiam. A alquimia é um exemplo que se me impõe.
A era científica e tecnológica teve o efeito paulatino e discreto, mas eficiente e inelutável, de desfazer, de desmistificar o puzzle e de mostrar que, por trás do puzzle, há aglomerações dinâmicas e incessantes de legos e que as próprias palavras podem ser peças de legos com uma versatilidade e uma potencialidade praticamente sem limites.
Acredito que a imaginação e o sonho participam nos processos de revelação dos cenários cujos recursos, mecanismos e ferramentas precisam de uma curiosidade e de uma vontade para serem desenigmados, descobertos, e materializados.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Para que serve a cultura ?

Num texto, com o título «Para que serve a cultura?», Eugénio Lisboa coloca questões e dá ou sugere algumas respostas, que são de entendimento difícil e, aparentemente, supérfluas por serem de pendor e de teor especulativo acerca de comportamentos humanos que, penso eu, se manifestam em contextos muito sofisticados e torturados de jogo, com as suas regras e os seus juízes, ainda que longe de estarem institucionalizados e reconhecidos como tais e, mais ainda, longe de serem aceites, tanto uns como outros, por serem quase sempre autopropostos e, no que diz respeito aos veredictos, do mais inconsistente e lastimável que há, por serem, quase sempre, ou esmolados, ou pedinchados, ou estrategicamente concedidos por quem se investe no poder de o fazer. Há mais exemplos de situações reais, possíveis e imaginárias.

Se já é inatingível estabelecer critérios, que o sejam, daquilo que deve-ser o jogo, quanto mais causador de conflitos e de intolerâncias não será a intervenção de árbitros que chamam a si o protagonismo da discórdia.

O artista, poeta, romancista, músico, pintor, arquitecto, pensador, cientista, realizador, enfim, todos os criadores, críticos, podem estar à mercê do juiz mais ou menos piedoso, que são eles próprios.  Mas ao que eles não escapam é ao jogo da vida, da cultura, dos árbitros que decidem o jogo, dos valores, dos mercados…

A não ser que os desprezem e não lhes reconheçam idoneidade nenhuma, mas isto não resolve nada e só agrava as coisas. Os criadores não estão adstritos a nenhum dever especial de bonomia, harmonia, cedência, de sujeição, de complacência, de irmandade ou clientelismo, em troca de expectativas de serem valorizados, bem pelo contrário, certas cumplicidades podem comprometer a credibilidade e o valor do seu trabalho.

Nada é menos supérfluo do que a arte, as ideias claras, o pensamento revelador, o engenho inovador e a visão surpreendente, a ciência, a criação humana, enfim, a cultura.

Nada é mais humano do que a cultura, da qual destaco o prodígio da língua e as linguagens. Ela é a realidade humana, uma das faces da realidade em sentido amplo, sendo a outra face a realidade natural, embora o homem também seja um animal, que faz parte desta.

Se pensarmos o homem como um animal, de acordo com o critério da necessidade vital, diremos que a cultura é supérflua.

Mas o princípio da economia que rege os organismos vivos, incluindo o homem, deixou de ser no humano um ter de ser, tipo tropismo, e adquiriu a natureza de um poder ser, tipo possibilidades, alternativas.

Se isto pode ser visto deste modo, a racionalidade humana nasceu assim, da possibilidade de escolha. A partir daqui, tudo pode ser explicado com coerência e consistência, inclusivamente, se e porquê a cultura é um edifício da ordem do dever-ser.

Aliás, não esqueçamos que a economia é a ciência das escolhas. Justamente, tudo aquilo que nos interessa, em cada situação de possibilidades de escolha, alternativas ou não, é saber qual é a melhor escolha.

O problema, que me parece ser o busílis de todos os problemas de ordem humana e social, ou a mãe de todas as frustrações culturais, não é a possibilidade de erro. Esta possibilidade está presente em qualquer escolha, por mais informada que seja, porque só o futuro dirá do acerto ou desacerto da escolha, em função do critério que se seguiu.

De resto, qualquer escolha implica renunciar às alternativas. Isto também pode ser muito problemático. E há escolhas que têm de ser feitas impreterivelmente, que não podem esperar pelos conselhos da melhor ciência.

Mas, dizia eu, mais acima, a mãe de todas as frustrações é o arbítrio.

A cultura está num ponto de desenvolvimento que nos permite ter esperanças de que as sociedades humanas se entenderão acerca do que devem ser as melhores escolhas, em todos os domínios. A paz será, assim, possível.

A mãe de todas as frustrações é que, não é por dispormos do entendimento necessário sobre o que deve ser feito, a nível individual, estadual, internacional, mundial, nem por isso ser feito, que estamos livres de actos criminosos, terroristas, atentados, de loucura, etc., que deitem tudo a perder.

Nada do que é humano, exceptuando a sua natureza animal involuntária, que funciona em modo autónomo, e o arbítrio, que é individual, a que não chamo liberdade, tem outra matriz que não seja a cultura.

Assim sendo, a cultura é a realidade sem a qual o humano, enquanto social, não existiria.

A questão “para que serve a cultura?”, tal como as respostas que se lhe deem, é, obviamente, cultural e, como qualquer outra realidade, pode servir para objectivos (culturais) muito diversos, sem que possamos antever todos.

A cultura serve unicamente, e é tudo o que interessa, para sermos o que somos, ou seja, o ser humano é um ser cultural e vice versa, no sentido em que um não tem significado sem o outro.

terça-feira, 30 de março de 2021

Homem em torno do qual tudo deve gravitar


Tenho a percepção de que a filosofia vai ser cada vez mais importante, não tanto como teoria geral de conhecimento dos mundos, mas sobretudo como teoria geral de como esses mundos devem ser, considerando que todo o conhecimento, por si mesmo, é humano e não tem outra génese, nem outro sentido e que o pensamento humano, enquanto racionalidade, é sempre um dever ser no espectro das possibilidades, ou, de outra forma, as escolhas do ser humano dentro do leque das possibilidades, não são aleatórias, há algum grau de tensão entre a vontade e a liberdade, que é resolvido por algum tipo de racionalidade. E se isto é o que acontece, quer haja filosofia ou não, quer haja ciência ou não, o facto de o sabermos é de uma importância e relevância nem sempre fácil de compreender. 
Na realidade, as coisas acontecem, quer o saibamos quer não. Aparentemente, tanto nos faria saber como não saber. Ou, saber e nada saber iria dar ao mesmo.
Mas a filosofia vai buscar a sua importância e relevância à necessidade de explicar isso a si mesma e, não menos importante, explicar a importância e a relevância de todo o conhecimento, em especial o científico, não do ponto de vista económico, técnico, utilitário, mas do ponto de vista epistemológico. E isto não é pequena coisa. 
Para tentarmos perceber este problema, pensemos que os próprios investigadores científicos, os cientistas, raramente revelam ter a noção da diferença que fazem no universo do conhecimento. Sabem que o seu trabalho é da maior importância para todos e todos, mais ou menos, percebemos que a ciência resolve uma quantidade de problemas que só ela sabe. 
Poderíamos ter lido todas as bíblias e todos os tratados de filosofia e saber toda a matemática e conhecer todos os livros de auto-ajuda e técnicas de socorro a náufragos e ter o mais alto QI e ter bebido muita água, mas não acredito que conseguíssemos descobrir, por meras inferências, dedutivas ou indutivas, nem sequer por adivinhação, a composição química da água. Ainda que já conhecêssemos o hidrogénio e o oxigénio, esse conhecimento não no-lo permitiria descobrir, por si só, sem uma experiência que o revelasse. E se os nossos conhecimentos, numa mínima parte são deduções ou induções de crenças no que nos dizem e, na sua maioria, meras crenças, por confiarmos naquilo que nos dizem, vivemos numa realidade virtual a tal ponto baseada em imagens e discursos, que nos escapa trivialmente a natureza e o âmbito do conhecimento científico, como se fosse uma extensão dos conhecimentos em geral. 
Escapa-nos, trivialmente, que não há conhecimento científico “a priori”, que não podemos conhecer Paris sem ir lá, que não podemos conhecer uma árvore através de um manual, por mais completo que seja, que não podemos comer um bife através de um vídeo, que não podemos saber hoje que o sol vai nascer amanhã. 
O conhecimento científico não é frustrante. Frustrante é, muitas vezes, não saber o que fazer com ele, ou fazer o que não devia ter sido feito. 
A filosofia não é o tribunal de contas do que devia ter sido feito, de acordo com as normas, nem do que devem ser as normas, mas é o tribunal do que deve-ser declarado, considerando que deve ser uma declaração de sabedoria, por ser humana acerca do homem em torno do qual tudo deve gravitar, porque o contrário não faz sentido.