terça-feira, 15 de julho de 2025

Estupidificação


Não me atrevo a generalizar, mas intuo que o fenómeno Chega está em linha com uma análise histórica, sociológica e de forte componente psicológica, do fenómeno mais geral, muito bem rotulado, diria mesmo, genialmente designado, por bárbaros à porta. Pese embora a ambiguidade gerada pelo contexto, que pode prejudicar a eficácia do argumento, os bárbaros já não estão à porta, já estão no parlamento. E estão em força, embora não tanta, por enquanto, que possam mandar calar os outros. Se pudermos dizer que continuam a ser bárbaros à porta, por ainda não serem governo, então só lhes falta isso para deixarem de ser bárbaros à porta e passarem a ser apenas bárbaros. Se lá chegarem, e já esteve mais longe, cairá o complexo de serem bárbaros à porta, excluídos da política e começarão os verdadeiros problemas.
A democracia já deu provas de resiliência e de aptidão suficiente para impedir partidos antidemocráticos de capturarem o Estado e de, mesmo permitindo a sua existência, eles serem convocados para resolverem os seus próprios paradoxos e contradições. Na resposta a este repto e a esta condição, a médio prazo, acabam por não ter sucesso.
Há razões para ter esperança na razão e na consciência que, em meu entender, são duas faces da mesma moeda transparente. Mas onde aposto mais é na inelutável racionalidade humana, seja ela dos bárbaros, ou não.
Sendo certo que, em matérias conflituosas, que opõem interesses, o choque é evitável se houver poder negocial, mas os conflitos poderão multiplicar-se e agravar-se se houver choque. Neste caso, a racionalidade opera no quadro das possibilidades em conflito.
Quando o presidente da Assembleia da República se estriba numa “alegada” conformidade com a lei e fica por isso mesmo, relativamente a uma conduta parlamentar deplorável e vergonhosa, mas mesmo que o não fosse, revela uma pusilanimidade confrangedora que não o dignifica minimamente. 
Perante uma violação dos limites éticos e morais, ou até do bom senso, escudar-se na conformidade com a lei até podia ser justificável por dever do cargo, mas não deixa de significar a opção pelo comodismo de não se pronunciar sobre uma matéria que incomoda. Se ele fosse daquelas pessoas, que as há em abundância, que andam sempre a perguntar o que é que a lei diz, porque não são capazes de assumir autonomamente um juízo ético ou moral, para as quais a lei e só a lei conta, independentemente da sua razoabilidade, justiça, alcance, fundamento, legitimidade e humanidade, ainda podíamos compreender o seu escrúpulo legalista, mas já não é a primeira vez que, por comodismo, nos remete genericamente para uma lei que não existe ou que, pelo menos, é duvidoso que exista, para não ter de se comprometer pessoalmente. 
Os tempos que vivemos não se compadecem, nem são compatíveis com elementos políticos que representam interesses pessoais, de grupo e partidários, mas não se comprometem com valores mais altos e que têm como prioridade, não o respeito pela lei que, eventualmente, até não exista, mas a própria irresponsabilidade ética e moral. A barbaridade assume muitas formas, mas é sempre demolidora e pungente.

              Carlos Ricardo Soares

sábado, 31 de maio de 2025

Eufemização


Um problema que eu vejo no tratamento académico dos problemas, que não são meramente académicos, mormente ideológicos e doutrinais de toda a ordem, com implicações político-partidárias ou fazendo derivar das estruturas político-partidárias esses problemas, até porque os reduz teoricamente, logo à partida, não àquilo que eles são mas àquilo que se diz que são, ou que é correto dizer que são, ou que se pretende que sejam, um problema, dizia eu, é a aptidão da linguagem, por mais brutal que seja, para a eufemização, seja do crime, seja da miséria, seja da desgraça, seja da doença…
Qualquer que seja o lamaçal, ou o pântano, ou o charco de sangue, para não dizer o inferno insuportável, em que coloquem os outros, os criminosos serão sempre tratados, pelo menos, com o eufemismo de criminosos e verão sempre os seus atos hediondos tratados, pelo menos, com a dignidade de atos hediondos e tudo isso nos é servido constantemente, pela comunicação social, desde o pequeno almoço ao jantar, como aperitivo e sobremesa.
Os maiores assassinos da história aparecem todos os dias, anos a fio, em tronos de ouro, a serem cumprimentados cortesmente pelos paladinos do direito, da justiça e da paz. Por todos aqueles que, supostamente, se pudessem, teriam o dever de os estrangular, ou, no mínimo, mandar aniquilar.
A satisfação que podemos tirar dessa eufemização, senão a única, é que os demónios não deixam que os tratem mal e têm de ser bem tratados, pelo menos, só enquanto não puderem ser aniquilados e esquecidos.
Mas a mensagem passa claramente para a opinião pública e para o sentir dos indivíduos e dos grupos: os inimigos declarados não traem, os outros não sabemos.
Vem isto tudo a propósito dos efeitos da linguagem como eufemização e não apenas da necessidade dos eufemismos da linguagem.
A contraposição entre público e privado numa sociedade e numa cultura em que o real objetivo de cada indivíduo e das organizações é obter vantagem da situação, independentemente de ser o amigo ou o inimigo, porque tudo o resto é lamentável, aparece como um artifício para distrair o patego e conduzir o rebanho sem maiores percalços.
Até o ilícito se torna lícito a partir do momento em que é “a brincar” e se generaliza ao ponto de ser impune. E o mesmo acontece com o ser ou não ser capital humano.
Na realidade, não é A, ou B, quem decide ou determina o que é capital humano, ou o que o deixa de ser, nem a quem o Estado serve, se é aos privados, e a quais. 
Com efeito, diariamente, assistimos à confirmação da constatação de que o Estado está mais nas mãos dos privados do que os privados desejariam, ou admitiriam, em tese geral e segundo as propagandas político-partidárias. Os arautos da privatização são os cabotinos no teatro da República, porque, debaixo dessa veste estão os grandes beneficiários do erário público, seja por entronização, com influência na beneficiação direta, seja por efeito de benefícios e políticas sociais que, através da prestação de serviços, que não se destinam a eles, neles vão desaguar (que é uma palavra muito rica de sentidos).
No meio desta aparente barafunda de bancadas sob efeitos pirotécnicos, que extravasam para as avenidas em fanfarras e hinos guerreiros, com o seu potencial de incitação ao medo e de incapacitação para o discernimento, os professores, de acordo com as respetivas disciplinas, e sem prescindirem do mérito científico das mesmas, mais do que identificarem eufemismos, podem constituir pontos de referência, senão faróis e bússolas, para os seus alunos. E essa função não tem que ser modesta.

                   Carlos Ricardo Soares

“Comenta para receberes uma ideia por semana.” 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

A (melhor) escolha

Quanto mais informação disponível e conhecimento, maior será o quadro de possibilidades para fazer a escolha que é, não obstante, em cada situação, a melhor de um quadro de possibilidades, ainda que, posteriormente, como acontece, por vezes, na escolha de um caminho, se verifique haver um caminho melhor, segundo o mesmo critério que serviu para escolher o primeiro.

                     Carlos Ricardo Soares

domingo, 4 de maio de 2025

Onde começa e acaba o dever/direito de respeito

O problema da garantia dos direitos fundamentais, como das regras e da lei, em geral, é que só funciona se e enquanto os titulares desses direitos também os respeitarem, ou seja, que quem os invoca a seu favor não seja passível de imputação da sua violação. 
Só estamos vinculados aos direitos dos outros se e na medida em que eles o estiverem. 
Por exemplo, um tirano que rasga a Declaração dos Direitos Humanos não tem direito a esperar que os outros a respeitem se isso lhe interessar. O mesmo se diga do Direito Internacional, em geral. 
Frequentemente, os ordenamentos jurídicos servem sobretudo, mesmo nas democracias, para que "os outros" os respeitem, havendo uma parte da população a quem aproveitam os direitos mas que não está onerada, nem responde, pelos deveres e pelas correspondentes obrigações. 
Fazer leis para "os outros" é mais comum do que parece e esses "outros" têm uma aguda percepção dessa realidade perversa.

               Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 7 de abril de 2025

LAVO DAÍ AS MINHAS MÃOS

A democracia atual parece reeditar o cenário bíblico de Pôncio Pilatos a dizer "lavo daí as minhas mãos. Quem quereis que liberte, Jesus ou Barrabás?" e a multidão a gritar "Barrabás, Barrabás". 
A democracia não pode ser o branqueamento de todo o tipo de crimes pela pressão ou vontade de um partido ou de uma maioria.

                    Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 21 de março de 2025

IA, empreendedorismo e Democracia III

Infelizmente, os usurpadores que triunfam à custa dos outros, inclusive do Estado, mercê das suas oportunidades, organizações criminosas, habilidades para a batota milionária e rejeição de quaisquer regras, que têm uma mentalidade arreigada de “fora da lei”, estão longe de ter moral ou ética e só respeitam a linguagem da força. Para estes o Direito e a lei não fazem falta e não fazem sentido, porque se encontram numa posição em que impõem a ordem deles e pouco ou nada têm a ganhar com o respeito pelo Direito e pela lei, de que sempre andaram foragidos. A chamada “lei do mais forte” leva necessariamente ao confronto e à guerra, até que o mais forte de hoje deixe de o ser amanhã, e assim sucessivamente. O que me choca nos dias de hoje é constatar o desplante e o descaramento com que os que se arrogam como mais fortes (até serem postos à prova e saírem derrotados) propagandeiam a sua ideologia de desastre anunciado.
É frustrante e inquietante, nesta conformidade, constatar que o Estado, cuja principal razão de ser tem vindo historicamente a evoluir para a função de dizer o que é Direito, fazer justiça e obrigar ao cumprimento da lei, caia ou soçobre sistematicamente nas mãos daqueles que estão apostados e organizados na luta contra isso. Isto é notório, mormente, no plano do Direito Internacional em que os mais fortes se arrogam prerrogativas que, simplesmente, recusam e negam aos outros. E, então, que respeito podem merecer?
O que devia ser a justiça distributiva do Estado mais não é do que uma função redistributiva, ou mesmo extractiva e extorcionista. Mas não está debaixo de fogo, e está cada vez mais nas mãos erradas.

                Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 20 de março de 2025

IA, empreendedorismo e Democracia II

Quando se fala de empreendedorismo, de iniciativa privada, de liberdade, de jogos de milhões, de concorrência desleal e de competição, de apostar no fracasso da economia, no empobrecimento dos pobres e no enriquecimento dos ricos, ainda que à custa da destruição desenfreada, induzida por uma crescente aceleração, que parece imparável, estamos a falar da cultura humana dos conflitos de interesses de reinados e impérios de vista curta, da economia sobrevivente e “bem sucedida” porque, apesar de demolidora e catastrófica, sempre renasceu das cinzas e se reergueu dos escombros. 
Não me parece que seja possível sair deste círculo vicioso em que a guerra, a devastação, ruína e flagelos que os humanos infligem uns aos outros, são apresentados como uma solução para evitar efeitos considerados piores. Tal e qual como nos jogos de milhões em que se dá tudo por tudo, sem olhar a meios, para ganhar.
O tal problema ético, e ético-jurídico, está no “sem olhar a meios”.
E não há retórica que, sobre isso, iluda um ser humano, por mais simples e debilitado que esteja. Qualquer posição de vantagem que leve o indivíduo, ou o grupo, ou o Estado, a abusar dessa posição, seja no modo como fala, ou trata, seja nas condições que impõe ou nos proveitos indevidos que reivindica para si, não pode esperar outra resposta, ainda que seja ao retardador, do que mal-estar, oposição, resistência, hostilidade e violência.
A expressão “empreendedor de si mesmo” fez-me lembrar um poema que escrevi “Pódio de si mesmo”. Não é uma expressão feliz nem infeliz, mas é sintomática de uma visão do mundo partilhada por uma cultura que valoriza a capacidade e a habilidade para triunfar, sendo que este triunfo só é legítimo e, verdadeiramente, só o é se for um triunfo sobre si mesmo.
                     Carlos Ricardo Soares