O maior desafio, para compararmos uma máquina “pensante” a um humano pensante, em meu entender, está em apurarmos o que é um
pensamento, um processo neurológico de pensamento e como esse processo físico se replica ou reflete (não como num espelho, mas reflexo dinâmico, construído) sobre si mesmo sem se repetir jamais.
O
“cogito, ergo sum” de Descartes não nos ajuda a responder ao desafio, nem nos remete para as três leis da lógica ou leis clássicas do pensamento, embora elas estejam implicadas naquela
frase. Distinguir e analisar o pensamento humano como processo de atos pensantes, se é que o é, o que são atos e o que é “pensante” está mais em linha com o conselho, advertência,
"conhece-te a ti mesmo", atribuída ao filósofo grego Sócrates, do que com a sua, igualmente célebre, filosofia “só sei que nada sei”. Embora o pensamento tenha uma natureza
reflexiva sobre si mesmo, o pensamento está para o seu reflexo numa ordem de precedência e o seu reflexo é algo descontínuo, memorizado, que interrompe aquele e dá lugar a outro.
O “conhece-te
a ti mesmo” é da ordem introspetiva, sem deixar de ser da ordem do conhecimento, mas da estrutura e do processo que gera esse conhecimento. O “só sei que nada sei” é da ordem da linguagem,
da análise lógica e epistemológica da formulação do pensamento/ideias.
No “conhece-te a ti mesmo” o objeto faz parte da incógnita, ou seja, o ti mesmo é o objeto
de um conhecimento que se pretende, mas um e outro, objeto e conhecimento, são indissociáveis e são também reflexo um do outro, mas não como num espelho. São um reflexo construído,
dinâmico e não fixo.
Além disso, neste caso, o objeto de conhecimento (indeterminado e indefinido) é da ordem do “existir”, da existência, da realidade (coisa), enquanto que,
em “só sei que nada sei”, se trata de uma declaração formal e abstrata, que vale pelo significado e pela lógica que pode ter, sendo da ordem do “ser”, da essência,
do conhecimento, da linguagem, do pensamento objetivado, verbalização.
Enquanto os humanos pensam com imensa espontaneidade e liberdade, sempre numa condição de existência, em constante
e inevitável contingência biológica evolutiva, autores do seu pensamento, sobre a sua existência cujo modo de ser é pensar (relembro as leis do pensamento que referi no início) e cuja
condição é viver ininterruptamente e, quando conscientes, decidindo e escolhendo (num quadro de possibilidades) o que lhes proporciona satisfação, a IA não.
O dever-ser é
a antevisão, a representação antecipada daquilo que ocorrerá, acontecerá, será consequência, efeito, da escolha, do ato que a realiza ou corporiza. Essa representação
não é arbitrária e tem como princípio ativo, vital, homeostático, a sobrevivência, que é uma forma de egoísmo, mas não se confunde com egoísmo em sentido
ético.
A IA não pensa em função da sobrevivência e do risco que corre. A avaliação que faz é meramente numérica
e quantitativa, ou lógica. É capaz de simular egoísmo ou altruísmo, como simula outros cálculos e, porventura, sentimentos. E se for capaz de simular Verdade e Direito, duvido que seja capaz
de o reconhecer.
Perguntarmos o que é Verdade, Direito, talvez a resposta seja surpreendente: é o que não deve ser outra coisa, ou, é o que deve ser
e não outra coisa.
Retomamos neste ponto Descartes e as problemáticas dos existencialistas, mormente em torno da existência e da essência. Não tenho esperança
de que a IA pense como eu, nem que ela pense que eu venha a pensar como ela.
Por isso, aliás, apetece-me aconselhar e advertir a IA, como o faziam os antigos pensadores: “conhece-te a ti mesma”.
Carlos Ricardo Soares