sábado, 31 de maio de 2025

Eufemização


Um problema que eu vejo no tratamento académico dos problemas, que não são meramente académicos, mormente ideológicos e doutrinais de toda a ordem, com implicações político-partidárias ou fazendo derivar das estruturas político-partidárias esses problemas, até porque os reduz teoricamente, logo à partida, não àquilo que eles são mas àquilo que se diz que são, ou que é correto dizer que são, ou que se pretende que sejam, um problema, dizia eu, é a aptidão da linguagem, por mais brutal que seja, para a eufemização, seja do crime, seja da miséria, seja da desgraça, seja da doença…
Qualquer que seja o lamaçal, ou o pântano, ou o charco de sangue, para não dizer o inferno insuportável, em que coloquem os outros, os criminosos serão sempre tratados, pelo menos, com o eufemismo de criminosos e verão sempre os seus atos hediondos tratados, pelo menos, com a dignidade de atos hediondos e tudo isso nos é servido constantemente, pela comunicação social, desde o pequeno almoço ao jantar, como aperitivo e sobremesa.
Os maiores assassinos da história aparecem todos os dias, anos a fio, em tronos de ouro, a serem cumprimentados cortesmente pelos paladinos do direito, da justiça e da paz. Por todos aqueles que, supostamente, se pudessem, teriam o dever de os estrangular, ou, no mínimo, mandar aniquilar.
A satisfação que podemos tirar dessa eufemização, senão a única, é que os demónios não deixam que os tratem mal e têm de ser bem tratados, pelo menos, só enquanto não puderem ser aniquilados e esquecidos.
Mas a mensagem passa claramente para a opinião pública e para o sentir dos indivíduos e dos grupos: os inimigos declarados não traem, os outros não sabemos.
Vem isto tudo a propósito dos efeitos da linguagem como eufemização e não apenas da necessidade dos eufemismos da linguagem.
A contraposição entre público e privado numa sociedade e numa cultura em que o real objetivo de cada indivíduo e das organizações é obter vantagem da situação, independentemente de ser o amigo ou o inimigo, porque tudo o resto é lamentável, aparece como um artifício para distrair o patego e conduzir o rebanho sem maiores percalços.
Até o ilícito se torna lícito a partir do momento em que é “a brincar” e se generaliza ao ponto de ser impune. E o mesmo acontece com o ser ou não ser capital humano.
Na realidade, não é A, ou B, quem decide ou determina o que é capital humano, ou o que o deixa de ser, nem a quem o Estado serve, se é aos privados, e a quais. 
Com efeito, diariamente, assistimos à confirmação da constatação de que o Estado está mais nas mãos dos privados do que os privados desejariam, ou admitiriam, em tese geral e segundo as propagandas político-partidárias. Os arautos da privatização são os cabotinos no teatro da República, porque, debaixo dessa veste estão os grandes beneficiários do erário público, seja por entronização, com influência na beneficiação direta, seja por efeito de benefícios e políticas sociais que, através da prestação de serviços, que não se destinam a eles, neles vão desaguar (que é uma palavra muito rica de sentidos).
No meio desta aparente barafunda de bancadas sob efeitos pirotécnicos, que extravasam para as avenidas em fanfarras e hinos guerreiros, com o seu potencial de incitação ao medo e de incapacitação para o discernimento, os professores, de acordo com as respetivas disciplinas, e sem prescindirem do mérito científico das mesmas, mais do que identificarem eufemismos, podem constituir pontos de referência, senão faróis e bússolas, para os seus alunos. E essa função não tem que ser modesta.

                   Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 23 de maio de 2025

A (melhor) escolha

Quanto mais informação disponível e conhecimento, maior será o quadro de possibilidades para fazer a escolha que é, não obstante, em cada situação, a melhor de um quadro de possibilidades, ainda que, posteriormente, como acontece, por vezes, na escolha de um caminho, se verifique haver um caminho melhor, segundo o mesmo critério que serviu para escolher o primeiro.

                     Carlos Ricardo Soares

domingo, 4 de maio de 2025

Onde começa e acaba o dever/direito de respeito

O problema da garantia dos direitos fundamentais, como das regras e da lei, em geral, é que só funciona se e enquanto os titulares desses direitos também os respeitarem, ou seja, que quem os invoca a seu favor não seja passível de imputação da sua violação. 
Só estamos vinculados aos direitos dos outros se e na medida em que eles o estiverem. 
Por exemplo, um tirano que rasga a Declaração dos Direitos Humanos não tem direito a esperar que os outros a respeitem se isso lhe interessar. O mesmo se diga do Direito Internacional, em geral. 
Frequentemente, os ordenamentos jurídicos servem sobretudo, mesmo nas democracias, para que "os outros" os respeitem, havendo uma parte da população a quem aproveitam os direitos mas que não está onerada, nem responde, pelos deveres e pelas correspondentes obrigações. 
Fazer leis para "os outros" é mais comum do que parece e esses "outros" têm uma aguda percepção dessa realidade perversa.

               Carlos Ricardo Soares