Um problema que eu vejo no tratamento académico dos problemas, que não são meramente académicos, mormente ideológicos e doutrinais de toda a ordem,
com implicações político-partidárias ou fazendo derivar das estruturas político-partidárias esses problemas, até porque os reduz teoricamente, logo à partida, não
àquilo que eles são mas àquilo que se diz que são, ou que é correto dizer que são, ou que se pretende que sejam, um problema, dizia eu, é a aptidão da linguagem, por
mais brutal que seja, para a eufemização, seja do crime, seja da miséria, seja da desgraça, seja da doença…
Qualquer que seja o lamaçal, ou o pântano, ou o charco de sangue, para não dizer o inferno insuportável, em que coloquem os outros, os criminosos serão
sempre tratados, pelo menos, com o eufemismo de criminosos e verão sempre os seus atos hediondos tratados, pelo menos, com a dignidade de atos hediondos e tudo isso nos é servido constantemente, pela comunicação
social, desde o pequeno almoço ao jantar, como aperitivo e sobremesa.
Os maiores assassinos da história aparecem todos os dias, anos a fio, em tronos de ouro, a serem cumprimentados cortesmente pelos paladinos do direito, da justiça e
da paz. Por todos aqueles que, supostamente, se pudessem, teriam o dever de os estrangular, ou, no mínimo, mandar aniquilar.
A satisfação que podemos tirar dessa eufemização, senão a única, é que os demónios não deixam que os tratem mal e têm
de ser bem tratados, pelo menos, só enquanto não puderem ser aniquilados e esquecidos.
Mas a mensagem passa claramente para a opinião pública e para o sentir dos indivíduos e dos grupos: os inimigos declarados não traem, os outros não
sabemos.
Vem isto tudo a propósito dos efeitos da linguagem como eufemização e não apenas da necessidade dos eufemismos da linguagem.
A contraposição entre público e privado numa sociedade e numa cultura em que o real objetivo de cada indivíduo e das organizações é
obter vantagem da situação, independentemente de ser o amigo ou o inimigo, porque tudo o resto é lamentável, aparece como um artifício para distrair o patego e conduzir o rebanho sem maiores
percalços.
Até o ilícito se torna lícito a partir do momento em que é “a brincar” e se generaliza ao ponto de ser impune. E o mesmo acontece com o ser
ou não ser capital humano.
Na realidade, não é A, ou B, quem decide ou determina o que é capital humano, ou o que o deixa de ser, nem a quem o Estado serve, se é aos privados, e
a quais.
Com efeito, diariamente, assistimos à confirmação da constatação de que o Estado está mais nas mãos dos privados do que os privados
desejariam, ou admitiriam, em tese geral e segundo as propagandas político-partidárias. Os arautos da privatização são os cabotinos no teatro da República, porque, debaixo dessa veste
estão os grandes beneficiários do erário público, seja por entronização, com influência na beneficiação direta, seja por efeito de benefícios e políticas
sociais que, através da prestação de serviços, que não se destinam a eles, neles vão desaguar (que é uma palavra muito rica de sentidos).
No meio desta aparente barafunda de bancadas sob efeitos pirotécnicos, que extravasam para as avenidas em fanfarras e hinos guerreiros, com o seu potencial de incitação
ao medo e de incapacitação para o discernimento, os professores, de acordo com as respetivas disciplinas, e sem prescindirem do mérito científico das mesmas, mais do que identificarem eufemismos,
podem constituir pontos de referência, senão faróis e bússolas, para os seus alunos. E essa função não tem que ser modesta.
Carlos Ricardo Soares