domingo, 14 de janeiro de 2024

Conhece-te a ti mesma

O maior desafio, para compararmos uma máquina “pensante” a um humano pensante, em meu entender, está em apurarmos o que é um pensamento, um processo neurológico de pensamento e como esse processo físico se replica ou reflete (não como num espelho, mas reflexo dinâmico, construído) sobre si mesmo sem se repetir jamais.
O “cogito, ergo sum” de Descartes não nos ajuda a responder ao desafio, nem nos remete para as três leis da lógica ou leis clássicas do pensamento, embora elas estejam implicadas naquela frase. Distinguir e analisar o pensamento humano como processo de atos pensantes, se é que o é, o que são atos e o que é “pensante” está mais em linha com o conselho, advertência, "conhece-te a ti mesmo", atribuída ao filósofo grego Sócrates, do que com a sua, igualmente célebre, filosofia “só sei que nada sei”. Embora o pensamento tenha uma natureza reflexiva sobre si mesmo, o pensamento está para o seu reflexo numa ordem de precedência e o seu reflexo é algo descontínuo, memorizado, que interrompe aquele e dá lugar a outro.
O “conhece-te a ti mesmo” é da ordem introspetiva, sem deixar de ser da ordem do conhecimento, mas da estrutura e do processo que gera esse conhecimento. O “só sei que nada sei” é da ordem da linguagem, da análise lógica e epistemológica da formulação do pensamento/ideias.
No “conhece-te a ti mesmo” o objeto faz parte da incógnita, ou seja, o ti mesmo é o objeto de um conhecimento que se pretende, mas um e outro, objeto e conhecimento, são indissociáveis e são também reflexo um do outro, mas não como num espelho. São um reflexo construído, dinâmico e não fixo.
Além disso, neste caso, o objeto de conhecimento (indeterminado e indefinido) é da ordem do “existir”, da existência, da realidade (coisa), enquanto que, em “só sei que nada sei”, se trata de uma declaração formal e abstrata, que vale pelo significado e pela lógica que pode ter, sendo da ordem do “ser”, da essência, do conhecimento, da linguagem, do pensamento objetivado, verbalização.
Enquanto os humanos pensam com imensa espontaneidade e liberdade, sempre numa condição de existência, em constante e inevitável contingência biológica evolutiva, autores do seu pensamento, sobre a sua existência cujo modo de ser é pensar (relembro as leis do pensamento que referi no início) e cuja condição é viver ininterruptamente e, quando conscientes, decidindo e escolhendo (num quadro de possibilidades) o que lhes proporciona satisfação, a IA não.
O dever-ser é a antevisão, a representação antecipada daquilo que ocorrerá, acontecerá, será consequência, efeito, da escolha, do ato que a realiza ou corporiza. Essa representação não é arbitrária e tem como princípio ativo, vital, homeostático, a sobrevivência, que é uma forma de egoísmo, mas não se confunde com egoísmo em sentido ético.
A IA não pensa em função da sobrevivência e do risco que corre. A avaliação que faz é meramente numérica e quantitativa, ou lógica. É capaz de simular egoísmo ou altruísmo, como simula outros cálculos e, porventura, sentimentos. E se for capaz de simular Verdade e Direito, duvido que seja capaz de o reconhecer.
Perguntarmos o que é Verdade, Direito, talvez a resposta seja surpreendente: é o que não deve ser outra coisa, ou, é o que deve ser e não outra coisa.
Retomamos neste ponto Descartes e as problemáticas dos existencialistas, mormente em torno da existência e da essência. Não tenho esperança de que a IA pense como eu, nem que ela pense que eu venha a pensar como ela.
Por isso, aliás, apetece-me aconselhar e advertir a IA, como o faziam os antigos pensadores: “conhece-te a ti mesma”.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Memória do amor

Efígies indistintas

à garupa de camelos enigmáticos

buscam os signos erráticos

de sortilégios de meias tintas

em declarações proscritas

de magos mumificados

pelo nevoeiro denso

exibem ouros defumados

e o cheiro não é de incenso

vindo de todos os lados

que impele os eruditos a arejar

num deserto imenso pela frente

para trás o que não sabem explicar

em fila ordeira sem virar os olhos

mais cautelosos do que aventureiros

que não levam desejo de voltar

nem lhes pesam esperanças

ou medo do que encontrarão

o que levam na memória

não se sabe senão

do que fica na memória 

o amor

e das saudades que terão

ainda menos se sabe

porque nem eles saberão

que misérias e tormentos carregam

ou que riquezas

que não conheciam

para trás delegam

tantas incógnitas na poeira

inexprimíveis aliás

passam em caravana

de equívocos

transpondo

fronteiras de credos

e nenhuma tentativa

para evitar

passatempos de alfândegas

da fé

da morte

como passaporte.


 Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O fotógrafo

Caiu neve
e tudo branqueou
menos o vulto negro e solitário
que subia a calçada
e tropeçou
mas ninguém o nomeou
nem o fotógrafo
que ele salvou
do esquecimento.

Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Por mais que a tristeza

Elas são belas

por mais que a tristeza lhes turve os olhos

por mais que tentem esconder que o são

são

são belas mesmo que não gostem

e que prefiram ser o que não são

serem belas parece um mérito

mas é uma condição

por mais que a beleza parta o coração.


Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Bela ou feia


Com este texto convoco ao aprazível exercício de pensamento e interpelo à reflexão sobre os nossos comportamentos, mais ou menos privados, mais ou menos exteriorizados por sentenças, suscetíveis de consciencialização e conhecimento acerca das linhas com que nos cosemos, para usar uma expressão bastante feia.
E ai de quem me contradisser, porque também será feio. Se formos para o tribunal, então o juiz que faça a justiça de aceitar ou rejeitar o pleito e de fundamentar a decisão.
Com esta brincadeira, estou a pensar na subjetividade dos juízos, por um lado, e na objetividade das sentenças, por outro. Os meus juízos estéticos, sobre a natureza, ou sobre os artefactos são o que decide se algo, na natureza, ou no artefacto, é belo, ou não, ou se é repulsivo, atraente, agradável, desagradável, etc.. Não é o juízo sentença da minha mãe, ou o do pintor dos diabos que vai decidir sobre a realidade das coisas, por mais efeitos que possa ter sobre o meu comportamento e por mais que condicione a forma como vejo as coisas.
Ou seja, o meu juízo estético opera sobre uma realidade cujas características não são belas, ou feias, antes de eu decidir. Nem estou a questionar se e porquê há formas belas ou feias, independentemente de o julgarmos.
Na realidade, não é por eu julgar uma coisa bela, ou feia, que ela o é. Ser bela ou feia não é uma característica da coisa, quando muito, é uma atribuição que eu faço. E isto não quer dizer que é uma atribuição arbitrária, ou que é aleatória. Não quer dizer que não tenha a ver com características da coisa.
Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Gente zangada não se ri

Gente zangada. Gente zangada não se ri. Mas já vi gente ganzada a rir como louca.  Enquanto ri a gente não se zanga. Acontece o mesmo com o choro. Ninguém ri e chora ao mesmo tempo. Mas há personagens que têm afivelada a máscara do riso, do choro, da ira, da bonomia, da sonolência, da loucura, etc.. D. Quixote, por exemplo, não ria e não fazia rir. Sancho compreendia de tal modo o seu amo que nem tentava fazer graça.

Há uma autenticidade na expressão dos sentimentos e das emoções, seja pela ira, seja pelo riso, ou pelo choro, pela euforia, pela estupidez, pela loucura, ou pelo mutismo, que não se compadece com zombarias ou com por a ridículo alguém, porquanto isso é de mau gosto, é feio, e tem de maldade.

Gente zangada, gente animada, gente embriagada, gente drogada, gente alienada, gente feliz, gente pobre, gente desprezada, gente triste, gente galvanizada, gente ilustrada, gente castigada, gente oprimida, gente do campo e gente da cidade, gente de armas, gente de fora e gente da terra, gente é uma palavra portuguesa do mais versátil que há.

Gente zangada pode fazer jus à muito conhecida expressão “quem não se sente não é filho de boa gente”.
De qualquer modo, gente que gosta de rir dos outros, em geral, não suporta, ou tolera mal, que se riam à sua custa. Não é o caso dos grandes humoristas, como Woody Allen que, preferencialmente, e por curiosa necessidade, riem de si próprios.
Aposto que Deus não ri, nem tem sentido de humor, mas também não se zanga.

 Carlos Ricardo Soares

sábado, 28 de outubro de 2023

Meter as palavras na ordem

As palavras podem ser nossas aliadas, mas a nossa desconfiança deve ser total. 

Não acredito que alguém tenha o poder de meter as palavras na ordem.

Não te deixes conduzir pelas palavras.

Carlos Ricardo Soares