sábado, 16 de julho de 2022

Valores da literatura

A literatura, para além de outras virtudes, e não estou a pensar em defeitos (que até podem ser vistos como suas principais virtudes) é um exercício intelectual, uma atividade exigente de leitura e interpretação que cada um fará ao jeito e até onde se lhe proporcionar o gosto, a imaginação e a criatividade, sem esquecer a experiência e os conhecimentos necessários para a descodificar/produzir.
Os autores, para mim, são indissociáveis das obras. E, acima de tudo, a literatura é o paradigma da liberdade, tanto na perspetiva do autor, quanto na perspetiva do leitor.
Mas, para isso, para ser paradigma da liberdade, não pode ser uma literatura ao serviço de uma propaganda. Quero dizer com isto que literaturas há muitas e que não me interessa por aí além uma literatura militante, pré-feita, ou pré-formatada, por mais habilidoso, criativo ou genial que seja o escritor a manusear conteúdos e formas e formatos.
Divulgadores de cartilhas ideológicas, militantes de qualquer espécie, doutrinadores e pregadores talentosos capazes de nos fazerem chorar contra nossa vontade e de até nos fazerem termos vergonha disso, como se tivéssemos sido hipnotizados, não há muitos, se é que os há, mas não me seduzem.
Isso de tocar violino num serrote, pode fazer-me arrepiar e até aguar dos olhos, como me acontece nos funerais, mas não é a arte da minha vida.
Há autores de quem gosto e, independentemente das histórias e dos enredos que contam, que pouco me interessam, me transmitem visão, inteligência, humanidade dos bichos e desumanidade dos deuses, irrelevância dos anjos, bravura dos touros, integridade dos burros, coragem dos ignorantes, força dos destemidos, paixão dos simples e ingénuos, espírito guerreiro dos ofendidos, insubmissão dos maltratados, revolta dos empobrecidos, inconformismo dos caluniados, capacidade de abnegação, pela verdade, pela autenticidade, pela justiça e pelo direito, contra tudo e contra todos, sem cedências a partidos, religiões, conluios, arranjinhos e trapaças palacianas ou de alcova, que não perdoam a ninguém que seja um verme, quer ele esteja nas instâncias superiores dos intocáveis, ou não. Se fossem feras eram puras, respeitáveis como leões, ou águias, ou serpentes, que não fazem mal a uma pomba, mas são implacáveis e inclementes com eles próprios, segundo os seus critérios, ainda que só em ficção.
Quem não sonha passar num crivo destes?
Autores que ousaram, ou ousam, enfrentar os poderes, todos os tipos de poderes, seja o poder do sexo, ou do dinheiro, ou das armas, da democracia, ou da ciência, ou da religião, mesmo sem esperança de os vencerem?
Que, inclusivamente, ousaram, ou ousam, enfrentar os poderes da literatura?
Autores que foram vencidos por ela, e ainda bem?
Não só pelos poderes da literatura, mas pelos seus valores, que não cabem na frincha de nenhum mealheiro?

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Poderá um professor ensinar mais do que aquilo que sabe?

O trabalho de um professor, a função da escola pública (não confundir com escola em sentido amplo), a função de uma universidade, a função de um educador, de uma instituição de educação, religiosa, ideológica, científica, ainda são pensadas e entendidas e gizadas segundo moldes de proficiências providenciais, ou providenciadas, ou a providenciar, assentes em pressupostos que devem servir e reproduzir, porque é preciso trabalhar muito para que tudo continue na mesma, embora isto seja uma grande ilusão, porque nada continua na mesma.
Poderá um professor ensinar mais do que aquilo que sabe?
Ou um aprendiz aprender só aquilo que o mestre lhe ensina?
Nenhum aprendiz aprende só o que o mestre lhe ensina, nem tudo o que o mestre lhe quer ensinar.
A maior parte das vezes temos aprendizes que aprendem de inúmeros mestres.
Muitas vezes aprendem com os próprios pensamentos e com a própria sombra, com o eco dos próprios erros.
A questão é então sobre o que se pode e deve potenciar num processo que é inevitável porque é natural.
A base da educação e do ensino é a ideia de que se deve socializar e integrar o indivíduo num determinado sistema social e económico, político e religioso, de modo a torná-lo funcional e proveitoso para o sistema e para si próprio, evitando que ele possa vir a ser um problema para si próprio e para o sistema.
Parte-se da ideia geral e abstracta de que há princípios e valores em que todo o indivíduo deve ser educado e que, desde que os respeite, tem toda a liberdade para agir.
Entre esses princípios e valores estão a honestidade, o trabalho, o respeito, o jogo limpo, a solidariedade e o mérito.
Mas há toda uma casta de valores que, numa cultura de exacerbação da esperteza e da inteligência na viciação do jogo, para disso tirar proveito, não propriamente indevido, mas inacessível ao comum dos mortais, não fazem parte do cardápio de aprendizagens e de práticas institucionalizadas. Ou seja, a escola, a igreja, o tribunal, a catequista, o partido, o professor, o mestre-escola, as estruturas distribuidoras do sentido do dever, cumprem a função de ensinar e educar para as regras dos jogos, ou para as leis da natureza, mas dificilmente, ou nunca, ensinam e preparam para o jogo, para os negócios, para as posições de vantagens e como tirar desforço de um golpe do adversário.
O desfasamento da escola relativamente à vida é brutal quando de um lado da corda estão os mais nutridos e desinibidos traficantes/negociantes de milhões e do outro os anémicos e anacoretas alquimistas, ou lunáticos alfarrabistas.
E não estou a dizer que estes não sejam os activos realmente importantes para os negócios daqueles.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Máquinas pensantes que sentem

Se em qualquer situação, seja de bem estar, de violência, de maus tratos, de ambientes e de interações inteligentes, de paz ou de guerra, de contemplação ou ascetismo, de sonho ou de paixão, o ser humano, como máquina pensante que é, como máquina que discorre e analisa e conclui sobre o que sente e, metodologicamente ou não, reverte o que pensa para a mesa da experiência, numa interação, ou controlo dos sentidos pela razão e da razão pelos sentidos, o problema da educação tem a ver sobretudo com os limites que são impostos pelo respeito devido ao educando, muito mais do que os que são devidos pelo educando ao educador. 
A responsabilidade do educador precede, em toda a linha, a do educando. 
Num primeiro momento, em que este nem sequer tem habilidades e capacidades de entendimento e de vontade e de liberdade, porque a máquina pensante humana é uma máquina biológica melindrosa e delicada, além de ser muito sensível (quanto à inteligência deixo o assunto para especialistas) está na roda viva de uma realidade que o antecede e o condiciona imenso. 
A evolução dessa máquina viva é ditada e determinada, em grande parte, por aqueles que a rodeiam e por aquilo que acontece. 
Gostar ou não das “propostas”, do “menu”, do “cardápio” de credos, disciplinas (o termo disciplina é muito interessante para estas minhas considerações gratuitas), possibilidades, expectativas, é fundamental, mas o que é decisivo é a oportunidade e a capacidade para alcançar o que, nesse horizonte de possibilidades, mais ou menos ilusórias, mais ou menos enganadoras, se deseja alcançar, sem detrimento dos motivos e das razões pelos quais se deseja.
A máquina pensante assemelha-se em tudo a um estômago triturador, cujos refluxos não dependem da vontade, por mais incómodos e indesejáveis que sejam. Mas, com ou sem refluxos, a máquina aprende sempre e aprende com tudo. 
Com ou sem educação, aprende. 
O problema está em saber o que deve aprender (se é que deve), na perspetiva da máquina, que merece todo o respeito, ainda que seja diferente de todas as outras, e na perspectiva das outras máquinas, que sabem o que lhe ensinar (se ela quiser e puder aprender, sem prejuízo daquilo que for seu desejo e sua vontade). 
Não basta ter uma mesa repleta de iguarias, é necessário apetite, vontade de comer, acto de comer e, a parte também complexa, sujeita a muitos percalços, de fazer a digestão, usar a energia e defecar.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Todas as ciências são ciências do homem

Há que evitar uma tentação, que é uma tendência dos processos de pensamento, de tomar a análise pelo analisado e, daí, fazer todo o tipo de inferências, ou colocar um computador a fazê-lo, ad aeternum, no éter. 

Uma sugestão, para o desafio colocado pela ideia de uma hierarquização dos conhecimentos e das ciências, é partir do princípio de que, realmente, todo o conhecimento, todo o discurso, toda a ciência, são humanos e que todas as ciências, em última instância, são tentativas de responder a questões e resolver problemas do homem. 

Neste sentido, todo o conhecimento é "antropologia" e a importância das ciências deriva do serviço ou da utilidade que elas possam ter para o homem, para a sociedade, para a humanidade. 

Neste sentido, seríamos tentados a considerar que nenhuma ciência é tão importante e relevante para o homem como o é a antropologia, ou, em geral, as ciências humanas e sociais. Continua a ser válido o brocardo antigo "conhece-te a ti mesmo" como algo cuja importância não pode ser diminuída nem substituída. 

Só que, como referimos, todas as ciências existem e concorrem para esse conhecimento, apesar de enfoques específicos de cada uma sobre a realidade. 

O nosso modo de conhecer é descontínuo e é em diferido, mas a realidade não.

sábado, 30 de abril de 2022

As democracias dão muito trabalho

As democracias dão muito trabalho, têm muitas fragilidades, demoram muito tempo e, embora sejam castradoras de bestas, até das que se arvoram em besta do apocalipse, ou em dragões demolidores, que vomitam fogo de mil maneiras ardilosas, ao mesmo tempo que abalam, com o poder das bombas, os sítios onde os humanos vivem e constroem a humanidade, nem por isso elas, as democracias, têm conseguido evitar e menos ainda impedir que as bestas, aspirantes a besta do apocalipse, se saciem de sangue até arrotarem de sadismo e isso ser uma passagem vaidosa e triunfal pelos palcos das maiores tragédias no teatro de desumanidade e ódio, que diverte as bestas e em que estas desejam transformar o mundo .
Mas as democracias, que mais de metade do mundo nunca experienciou e que quase não sobreviveram ao hitler e ao staline e outros de igual vocação, baralharam, deram cartas, jogaram dentro das regras, tiveram paciência para enfrentar os desafios e as ameaças, suportaram todas as pressões, e ganharam aos batoteiros, usurpadores sem vergonha, nem princípios, e sem moral, que apostaram tudo na violência demolidora e mortífera e na crença da sua posição dominante.
As democracias são mais fortes do que parecem. Mesmo derrotadas pela força das armas, mantêm-se invictas pela força propagadora e indomável da moral que estará sempre onde estiver um humano (que não seja uma besta candidata a besta do apocalipse).

domingo, 17 de abril de 2022

Fala o almirante

O almirante falou
Fala o almirante
Todos os cemitérios são iguais
Por mais que tentem ser originais
Por mais que tentem ser mais
Todos têm uma entrada
Sem regresso
Franqueada aos mortos
E só aos mortais
Que fazem os funerais
Os cemitérios parecem tristes
De mais
Os cemitérios não sentem
Nem dizem nada
Não têm culpa nenhuma
De serem locais
Tenebrosos
Sobretudo o mar
Com suas sombras onduladas
Ao luar
Ao vento
Onde os mochos não piam
No silêncio nocturno.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Aproximações à verdade XVIII

Hilário: estou a pensar no sofrimento, na função que desempenha

Amiga: só os seres vivos sofrem

Hilário: sofrer e sentir são duas funções biológicas complementares

Amiga: sentir dor, mal-estar, é indissociável de sentir bem-estar, alegria, satisfação

Hilário: viver é estar nessa tensão, nessa adaptação constante a graus e tipos de satisfação que não têm de ser dolorosos, mas que podem ser extremamente dolorosos e até insuportáveis

Amiga: o homem tem desenvolvido uma cultura de prevenção de situações em que, por exemplo, a privação de bens essenciais, de água, de alimentos, de cuidados de saúde e de protecção contra as intempéries, seriam rapidamente muito dolorosas e insuportáveis, causando imenso sofrimento

Hilário: mas não é apenas para evitar desconforto, dor ou sofrimento que a cultura produziu mecanismos de prevenção e defesa, grande parte da cultura é um acervo de atividades e de objectos e de formas de dar satisfação aos nossos desejos e vícios, ao prazer pelo prazer

Amiga: nesse caso, o desejo aparece como desconforto e, ao mesmo tempo, como antecipação da satisfação que se obteria ou obterá e, se for muito fomentado, se se tornar obsessivo, pode ser fonte de dor e de sofrimento, moral e físico

Hilário: um prazer, ou uma fonte de prazer, nessas situações transforma-se num desprazer ou numa fonte de sofrimento, como acontece nos vícios

Amiga: parece que estar vivo é um processo em que, por desconforto, mal-estar, ou sofrimento, ao buscar satisfação e ao obtê-la, o ser vivo passa para um estado temporário, relativamente breve e passageiro, de homeostasia

Hilário: se este estado não fosse passageiro, se fosse definitivo, isso corresponderia à morte, ou a um estado fantasmático de consciência sem corpo, em que as religiões do espírito acreditam, mas que ninguém sabe o que é

Amiga: um dos aspectos mais interessantes e preocupantes dessa condição dos seres vivos, em geral, e do homem em particular, é que a dor e o sofrimento têm sido instrumentalizados, ou usados como meio de dominar e de controlar e de obrigar e de sujeitar os seres vivos e os humanos

Hilário: é como se o desconforto, a dor e o sofrimento, e não apenas os desejos e as ambições e os vícios, fossem uma espécie de moeda de troca em relações humanas mercantilizadas

Amiga: mas quando se chega ao ponto de provocar dor e sofrimento e morte, em pessoas que se sentem bem, que estão em paz, porque dessa forma se pretende obrigá-las a realizar algo que elas não querem, nem devem fazer, para satisfação, por exemplo, de um objectivo político-militar-económico de um grupo, ou de uma organização, estadual, ou outra, creio que se atingiu um pico de sordidez e de imoralidade e de aberração, que excede tudo

Hilário: isso é a manipulação perversa das nossas funções biológicas, como a função do sofrimento, que referi no início.

Amiga: nada é tão odioso como a guerra

Hilário: nada é tão nobre e sublime como a guerra defensiva

Amiga: e o que dirias do contra-ataque?