segunda-feira, 5 de julho de 2010

O conhecimento não ocupa lugar




O conhecimento só existe na medida em que existam pessoas. Pessoas capazes de o formular, de o comunicar e operacionalizar. Se as pessoas desaparecessem, o mundo, tal como está, com todos os registos, bibliotecas, bases de dados, artefactos, artes… seria um mundo não habitado pelo conhecimento. Um computador não tem conhecimento. Uma biblioteca não tem conhecimento. O conhecimento não está em lado nenhum. Nem no cérebro. Ou está? O conhecimento é uma função/actividade muito específica, complexa e dinâmica de descodificação/elaboração /codificação de informações de características muitas vezes difíceis de delimitar.
Dizer que o mundo não seria habitado pelo conhecimento, não quer dizer que no mundo, com todos os seres vivos, não abunde informação. Assim, a vida e os comportamentos dos animais, por exemplo, tendem a assegurar objectivos de conservação e de sobrevivência, não porque possuam conhecimento para tal e o façam em função desse conhecimento, mas porque estão “programados” para isso.


sexta-feira, 2 de julho de 2010

Indício de sabedoria


Vejo as reservas que podemos levantar face ao conhecimento, como um indício de sabedoria.
Quando dizemos que alguém tem conhecimento de algo, o que é que isso significa? Ou por outra, quando alguém tem conhecimento de algo, o que é que tem? Onde está o conhecimento? Ocupa lugar? Qual a relação entre o conhecimento e aquilo que se conhece? Pode falar-se em conhecimento falso e conhecimento verdadeiro? E os saberes? Também são sempre ou falsos ou verdadeiros?
Alguém me ajuda a responder a estas questões?
Quando falamos de sabedoria estamos a considerar que há diferenças entre saber, conhecimento, ciência e sabedoria. Por exemplo, transmitir conhecimento envolve linguagens que não são propriamente, nem necessariamente, semelhantes às que se usam para partilhar e comunicar sabedoria ou, em geral, saberes de vária ordem. Os gestos, os comportamentos, as expressões corporais, as artes, a literatura… E as prioridades da acção, os valores e as virtudes podem justificar-se na sabedoria antes de o serem ou de poderem ser justificados por alguma espécie de conhecimento.
Toda a sabedoria e todo o saber são formas de conhecimento?
E a inversa é verdadeira?

domingo, 27 de junho de 2010

Lutamos contra a ignorância e o erro



Não lutamos apenas contra a ignorância. Também lutamos contra o erro. E, por motivos muito diversos que aos interesses humanos dizem respeito, somos induzidos a ignorâncias e a erros contra os quais não estamos imunes e precisamos de nos precaver. Travamos estas lutas, intermináveis, com os instrumentos de que dispomos de observação e de análise e, na dúvida, com reservas, à defesa, advertidos da falibilidade das premissas, das conclusões e do próprio processo intelectual do conhecimento, para já não falar do reducionismo e das condições da comunicabilidade do conhecimento.



sábado, 26 de junho de 2010

Realidade e discurso (sobre a mesma)



Por um lado temos a realidade, os fenómenos observáveis. Por outro, temos as representações dessa realidade e o discurso sobre a mesma. As leis do pensamento e da linguagem e do intelecto mostram-se muito toscos instrumentos de análise e de compreensão dos fenómenos. Mas, ao mesmo tempo, são eles que nos permitem reflectir criticamente sobre os próprios limites e as contingências das linguagens. Em parte, será porque o acesso a essa realidade é condicionado à partida pelas características desses instrumentos. Noutra parte, o acesso à realidade é fortemente condicionado pelo nosso interesse na mesma.
A tendência para considerarmos que o que não observamos não existe ou que só existe o que conseguimos abarcar é por sua vez uma determinante. Noutra parte, ainda, o que observamos e o que podemos concluir sobre o que observamos não é mais do que aquilo que esses instrumentos alcançam. Um dos aspectos em que esses instrumentos se revelaram surpreendentes foi a capacidade de se observarem e analisarem a si mesmos e de produzirem e desenvolverem instrumentos com capacidades cada vez maiores de observação e de análise. 



quinta-feira, 24 de junho de 2010

Ele disse «Deus não existe». Isto é uma contradição




Ele disse «Deus não existe». Isto é uma contradição. Ainda assim, encontrar o Deus filosófico ou cosmológico não é o encontro com o Deus Vivo e não resolve todos os problemas que Deus nos coloca. E os problemas que Deus nos coloca não são problemas teoréticos. Qualquer abordagem literal dos textos sagrados está condenada ao fracasso. Mas qualquer que seja a abordagem desses textos ela não nos dará respostas a qualquer tipo de perguntas. E coloca-nos sobretudo interrogações sobre nós próprios, sobre a nossa relação com os outros, sobre a nossa condição humana, sobre a vida, sobre Deus. Ao lê-los, a nossa inteligência, os processos de conhecimento, discursivos e não só e de comunicação, estão constantemente postos em causa.

domingo, 20 de junho de 2010

O Velha - X




A rádio local dedicou um programa especial à morte do Velha. O Amante de Catástrofes fez questão de prestar homenagem a esse homem de quem lhe disseram três coisas: que lhe chamavam Velha, que se apresentava como Alberto Caeiro e que era pastor de transístores. Abriu o programa com rajadas de metralhadora e, após um silêncio sepulcral, declarou, num tom declamatório «assalto e assassínio de um desconhecido».
Os dois repórteres, incumbidos de lhe trazerem notícias do Velha, foram as primeiras pessoas a ser informadas da sua morte, no hospital, onde se deslocaram para tentarem levá-lo ao estúdio para ser entrevistado.
Dois dias antes tê-lo-iam encontrado de perfeita saúde e teriam tido oportunidade de dar a conhecer um pouco da história da própria vida que ele fosse capaz de contar. Mas agora era tarde e ninguém poderia ajudá-los, nem com depoimentos. Por sua vez, as informações do hospital eram lacónicas. Até o nome que constava na ficha de internamento não era aquele pelo qual o Velha era conhecido. E diziam uma hora e uma data do falecimento, mas nenhuma referência ao nascimento, morada, naturalidade, ascendência…
Além disso, sabiam que tinha sido assaltado e agredido, depois das aulas à noite, a caminho de casa e que a polícia lavrou auto da ocorrência. As suas atenções, agora, estariam voltadas para a investigação e eventual descoberta do(s) autor(es) do(s) crime(s).

sábado, 12 de junho de 2010

O Velha - IX


O quadro clínico do Velha agravara-se e não havia ninguém referenciado como familiar ou amigo a quem o hospital pudesse comunicar a situação. A última pessoa com quem ele tinha vivido falecera dois dias antes dele se despedir da Serra Alta e de, ao chegar a Pérolas Falsas, chorar de inconsolável tristeza. E já tinha passado perto de um ano.
Era a tia-avó Anja, abandonada à solidão, numa aldeia de mais de cem casebres vazios, de portas e janelas escancaradas, cada vez menos visitados pelos fantasmas da memória enferma ao ponto de a ensurdecer e cegar a maior parte do tempo, desde que se levantava até que adormecia.
Com o seu rebanho de transístores, o Velha distraía-se de a ver, àquela que o criara de pequeno, que não conheceu pai nem mãe, nem lhe disseram alguma vez se eram vivos.
Com os anos, ele cresceu e a tia, envelhecendo, deixou, pouco a pouco, de o reconhecer. O Velha não saberia dizer a idade com que ela, arrastando o pesado corpo, no inverno, se deslocava para onde houvesse sol e, no verão, para onde a água fresca cantasse na fonte.
E não sendo capaz de, por si só, regressar a casa era ele quem, incerto de ser ouvido, a guiava, falando todo o tempo do doloroso e lento percurso sobre calhaus rolados, certamente pré-históricos, até aos cinco tormentos que era subirem cinco degraus de granito da escada desmantelada da entrada. A tia-avó, sem poder comentar, gemia e chorava, amparada ao sobrinho-neto e ao cajado cujas marcas da passagem do tempo haviam sido já por este apagadas. Quando, finalmente, chegavam à cozinha ela esperava que ele pusesse na mesa algum alimento para debicarem.
Também foram assim os derradeiros momentos da vida dessa mulher de quem não se sabe se chegou a pensar que o mundo existia para lá da Serra Alta.