I
Pensava que eras de carne e osso
E aproximei-me
Não vi que és da natureza das musas
Seja lá o que isso for
Carlos Ricardo Soares"Ser feliz é uma actividade que requer toda uma vida e não pode existir em menos tempo" - Aristóteles, Ética a Nicómaco
I
Pensava que eras de carne e osso
E aproximei-me
Não vi que és da natureza das musas
Seja lá o que isso for
Carlos Ricardo Soares
Carlos Ricardo Soares
Das múltiplas áreas da Educação para a cidadania, a literacia financeira apresenta-se a si mesma como um manequim de alta costura vestido à custa dos que só se podem culpar a si mesmos de alguma vez terem acreditado que se pode ganhar dinheiro seguindo os conselhos e artes mágicas dos prestidigitadores que a si mesmos se intitulam de financiadores da economia e garantes do sistema monetário nacional e internacional.
Nada mais aliciante para quem aspira a essa espécie de estrelato e tem a autoconfiança necessária para não temer as alturas dos truques e dos malabarismos desse mundo tanto mais desconhecido quanto mais se apresenta como objeto de literacia primária generalizada.
Tudo simples, tudo legal, tudo bem intencionado, mas até os mais jovens suspeitam e não confiam nessa forma de publicidade com seu quê de libidinoso.
Assim, mais do que alfabetizar para um mundo a que estamos umbilicalmente ligados pelos fluxos monetários, do que se trata é de uma espécie de anestesia preparatória para a aceitação indolor da agulha ou da faca.
Chamar formação ou consciencialização para a cidadania à campanha de descrição do papel e importância social e económica da função financeira e monetária das instituições financeiras, nomeadamente bancos, seguradoras e bolsas/mercados de valores, como pilares fundamentais dos circuitos das economias, até faria sentido e seria da máxima importância para os formandos cidadãos se em vez de ser no formato de cartilha de promoção e de validação das instituições promotoras, fosse no formato de análise crítica da realidade histórica desse tipo de instituições, nomeadamente quanto ao facto de serem instituições de capital alheio que assentam fundamentalmente num esquema sofisticado de pirâmide em que, invariavelmente, quem chega ao topo não lega às bases. Ou, para usar palavras mais simples, seria bom se a literacia financeira tivesse como objetivo e interesse central apresentar a realidade do poliedro das instituições financeiras e as regras desse jogo de espelhos, tantas vezes envergonhados, dos perdedores, sem esquecer de denunciar a batota dos ganhadores.
Mas os promotores da literacia financeira preferem fingir não compreender e desdenhar dos embirrentos, ao mesmo tempo que não ignoram que estas críticas são demasiada areia para a camioneta dos formandos cidadãos e que estes preferem surfar na onda dos ademanes do manequim de “haute couture”.
Carlos Ricardo SoaresHilário: já acabaste de ler a biografia de Camões?
Amiga: esta sim, mas ainda não li a que ainda não acabei de escrever
Hilário: também estás a escrever uma biografia de Camões?
Amiga: não é bem escrever, é mais imaginar do que construir, construir dá ideia de um puzzle, de andar a juntar peças
Hilário: sou leitor entusiasta de biografias, mas quando tento falar delas sinto que há uma distância intransponível entre a minha imaginação e aquilo que é comunicável
Amiga: Camões é um dos Lusíadas mais notáveis e fascinantes, mas não consigo dizer o que sinto e o que penso que me leva a afirmá-lo
Hilário: não se fala de Camões e, sobretudo, não se pensa em Camões como num indivíduo, acerca do qual pouco se sabe, que escreveu poemas e um livro
Amiga: não se fala em Camões como se fala em Camilo Pessanha, ou em Fernão Mendes Pinto, por exemplo
Hilário: quanto mais tentamos imaginar e colocarmo-nos na pele da sua humanidade, da sua humana experiência, vida, conhecimento, arte e obra, mais nos deparamos com um protagonista que, surpreendentemente e por razões de sobejo, podia ser a principal figura dos Lusíadas
Amiga: se estás a pensar o mesmo que eu, paradoxalmente, Camões não teve quem o escrevesse, quem o inscrevesse nos Lusíadas, como ele inscreveu Vasco da Gama
Hilário: mas a voz dele está lá, e o nome, e muitas ressonâncias que nos fazem desejar entender o verdadeiro significado das palavras e dos simbolismos que nos seduzem e ocupam tanto
Amiga: Camões é um personagem que nós temos de criar nos seus próprios termos, da sua experiência, da sua arte e elevação, segundo as condições e acontecimentos do seu tempo
Hilário: poeta que escreve para o mundo do seu tempo, que o hostilizou e ele conheceu com uma acuidade e envolvência singulares, numa ambivalência de amor e ódio, donde partiu amargurado e ao qual voltou, não menos dificilmente do que tinha partido dezassete anos antes, ainda para realizar os seus objetivos, que a vida dá muitas voltas, que eram fazer-nos ouvir a sua voz, uma voz de outros mundos
Amiga: para mim, que sou uma estudiosa de Camões e do seu tempo, há um Portugal antes de Camões e um Portugal após Camões e ele tinha a percepção dessa realidade
Hilário: achas que ele sentiu um choque quando comparou os Lusíadas do poema com os lusíadas com quem passou os últimos dez anos de vida?
Amiga: acho que ele sentiu a confirmação da grandeza do seu poema épico
Hilário: mas Portugal estava numa rota de crescentes dificuldades e decadência
Amiga: a grandeza de Portugal sempre se manifestou nas dificuldades e na decadência, assim como a grandeza de Camões se manifestou na forma como viveu, sublimando os obstáculos e os desaires em etapas de um percurso e obra cujo significado não se obtém senão pela perspetiva histórica
Hilário: Camões e os navegadores portugueses dessa época comungavam de um sentido de abnegação muito grande como se tivessem a noção de que eram personagens de uma narrativa maior que eles, pela qual estavam dispostos a dar tudo
Amiga: eles tinham a noção de que estavam a fazer grandes descobrimentos e grandes obras originais, em que se tornariam, indissociavelmente, as suas vidas.
Carlos Ricardo SoaresO direito de queixa é uma conquista histórica e institucional das razões de queixa. Alguém com razões de queixa é alguém que se perfila perante um responsável por dano ou ofensa, exigindo desagravo, restauração e punição.
Esta capacidade para se perfilar e exigir, a maior parte das vezes, não existe de facto e, quando existe de facto, a maior parte das vezes, é por si mesma um factor de prevenção suficiente. Quando não existe, resta a proteção de um grupo, ou do Estado, para promover o direito de queixa e subsequente tramitação. O que é notável e louvável no Direito, como sua génese essencial, é não poder ignorar as razões de queixa.
Se os sistemas jurídicos mundiais, mais ou menos estaduais, religiosos ou laicos, tivessem capacidade e vontade para reconhecer e atender as razões de queixa, reconhecendo o direito de queixa e responsabilizando efetivamente os autores dos danos e das ofensas, impondo-lhes a obrigação de restaurar as situações até onde for possível e sancionando-os devidamente pela sua conduta censurável, os litígios desmultiplicar-se-iam e seriam evitados à partida por uma legislação que dirimisse preventivamente as razões de queixa.
Que sentido faria o Direito, em geral e abstrato, se não houvesse razões de queixa? E, ao reconhecer essas razões, o Direito não pode ignorá-las e tem de ser a melhor resposta para elas, nomeadamente, consagrando o direito de queixa.
Ora, nenhum direito será Direito se houver razão de queixa dos direitos.
Carlos Ricardo Soares