quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

ÉTICA não é um palavrão

O verdadeiro "espírito" do Natal é uma "matéria" luminosa, frágil e preciosa, que só existe porque alguém a guarda, a cultiva, a transmite. Esta matéria luminosa é a promessa de que o humano pode ser mais do que função, mais do que recurso, mais do que engrenagem de um sistema que o ultrapassa.
Mas esta luz não paira no vazio. Ela emerge num fundo de matéria escura, uma força difusa, caótica, quase invisível, que molda silenciosamente as estruturas do mundo contemporâneo: a liberdade mercantil sem freio, o impulso de transformar tudo em produto, a tendência para converter cada gesto humano em oportunidade de lucro. Esta matéria escura não é apenas económica; é simbólica, afetiva, cultural. Ela infiltra-se nos ritmos da vida, nos desejos, nas narrativas, nos imaginários.
E é precisamente por isso que não pode ser deixada sem rédea. Não porque o mercado seja intrinsecamente maligno, mas porque o mercado não conhece limites éticos por si mesmo. A sua lógica é expansiva, indiferente, indiferenciada. Ele avança até onde lhe permitem avançar. Se não for regulado, confinado, enquadrado por critérios em que o lucro não se disfarce de moral, ele ocupará todos os espaços disponíveis, inclusive os espaços da infância, da educação, da relação, da imaginação.
O problema é que este confronto não é um duelo entre dois blocos puros. Não há luz de um lado e trevas do outro. Há interpenetração, contaminação, assimilação mútua.
Aqui emerge a importância inexcedível da educação, que deveria ser o lugar da resistência, e que é já, muitas vezes, um artifício do mercado. Não apenas porque as escolas são pressionadas por “rankings”, métricas, indicadores, plataformas, produtos pedagógicos, mas porque a própria linguagem educativa foi colonizada por categorias mercantis: “competências”, “produtividade”, “capital humano”, “gestão de talentos”, “otimização do desempenho”.
A matéria escura infiltra-se na própria gramática da educação. E quando a linguagem é capturada, o pensamento segue atrás.
Assim, até o que deveria ser um espaço de formação humana se torna, subtilmente, um espaço de formatação funcional. O que deveria ser cuidado torna-se investimento. O que deveria ser relação torna-se serviço. O que deveria ser abertura torna-se preparação para o mercado. A criança, que deveria ser fim em si mesma, torna-se um meio.
É neste ponto que a ética da educação se torna uma tarefa quase trágica: resistir a partir de dentro de um sistema que já assimilou parte da resistência.
A luz luta contra a matéria escura, mas fá-lo num campo onde ambas já se tocam, se cruzam, se confundem. A educação tenta proteger a criança, mas fá-lo com ferramentas que o mercado já contaminou. A ética tenta preservar a dignidade, mas fá-lo num ambiente onde a dignidade é frequentemente traduzida em métricas de “bem-estar” vendáveis.
A luta é assimétrica, mas não é impossível. A luz não vence pela força, vence pela persistência. Não vence pela expansão, vence pela profundidade. Não vence pela visibilidade, vence pela verdade.
A ética da educação é, portanto, a arte de manter viva a matéria luminosa num universo onde a matéria escura domina a gravidade. É a arte de impedir que o lucro se disfarce de moral. É a arte de impedir que a criança seja absorvida por forças que não compreende. É a arte de preservar a chama humana num mundo que a tenta apagar com brilhos artificiais.
E talvez seja na consciência desta dificuldade extrema, desta quase impossibilidade, que a ética encontra a sua força. Porque a ética não é o que fazemos quando é fácil, é o que fazemos quando tudo conspira para que desistamos.

             Carlos Ricardo Soares