sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O fotógrafo

Caiu neve
e tudo branqueou
menos o vulto negro e solitário
que subia a calçada
e tropeçou
mas ninguém o nomeou
nem o fotógrafo
que ele salvou
do esquecimento.

Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Por mais que a tristeza

Elas são belas

por mais que a tristeza lhes turve os olhos

por mais que tentem esconder que o são

são

são belas mesmo que não gostem

e que prefiram ser o que não são

serem belas parece um mérito

mas é uma condição

por mais que a beleza parta o coração.


Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Bela ou feia


Com este texto convoco ao aprazível exercício de pensamento e interpelo à reflexão sobre os nossos comportamentos, mais ou menos privados, mais ou menos exteriorizados por sentenças, suscetíveis de consciencialização e conhecimento acerca das linhas com que nos cosemos, para usar uma expressão bastante feia.
E ai de quem me contradisser, porque também será feio. Se formos para o tribunal, então o juiz que faça a justiça de aceitar ou rejeitar o pleito e de fundamentar a decisão.
Com esta brincadeira, estou a pensar na subjetividade dos juízos, por um lado, e na objetividade das sentenças, por outro. Os meus juízos estéticos, sobre a natureza, ou sobre os artefactos são o que decide se algo, na natureza, ou no artefacto, é belo, ou não, ou se é repulsivo, atraente, agradável, desagradável, etc.. Não é o juízo sentença da minha mãe, ou o do pintor dos diabos que vai decidir sobre a realidade das coisas, por mais efeitos que possa ter sobre o meu comportamento e por mais que condicione a forma como vejo as coisas.
Ou seja, o meu juízo estético opera sobre uma realidade cujas características não são belas, ou feias, antes de eu decidir. Nem estou a questionar se e porquê há formas belas ou feias, independentemente de o julgarmos.
Na realidade, não é por eu julgar uma coisa bela, ou feia, que ela o é. Ser bela ou feia não é uma característica da coisa, quando muito, é uma atribuição que eu faço. E isto não quer dizer que é uma atribuição arbitrária, ou que é aleatória. Não quer dizer que não tenha a ver com características da coisa.
Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Gente zangada não se ri

Gente zangada. Gente zangada não se ri. Mas já vi gente ganzada a rir como louca.  Enquanto ri a gente não se zanga. Acontece o mesmo com o choro. Ninguém ri e chora ao mesmo tempo. Mas há personagens que têm afivelada a máscara do riso, do choro, da ira, da bonomia, da sonolência, da loucura, etc.. D. Quixote, por exemplo, não ria e não fazia rir. Sancho compreendia de tal modo o seu amo que nem tentava fazer graça.

Há uma autenticidade na expressão dos sentimentos e das emoções, seja pela ira, seja pelo riso, ou pelo choro, pela euforia, pela estupidez, pela loucura, ou pelo mutismo, que não se compadece com zombarias ou com por a ridículo alguém, porquanto isso é de mau gosto, é feio, e tem de maldade.

Gente zangada, gente animada, gente embriagada, gente drogada, gente alienada, gente feliz, gente pobre, gente desprezada, gente triste, gente galvanizada, gente ilustrada, gente castigada, gente oprimida, gente do campo e gente da cidade, gente de armas, gente de fora e gente da terra, gente é uma palavra portuguesa do mais versátil que há.

Gente zangada pode fazer jus à muito conhecida expressão “quem não se sente não é filho de boa gente”.
De qualquer modo, gente que gosta de rir dos outros, em geral, não suporta, ou tolera mal, que se riam à sua custa. Não é o caso dos grandes humoristas, como Woody Allen que, preferencialmente, e por curiosa necessidade, riem de si próprios.
Aposto que Deus não ri, nem tem sentido de humor, mas também não se zanga.

 Carlos Ricardo Soares

sábado, 28 de outubro de 2023

Meter as palavras na ordem

As palavras podem ser nossas aliadas, mas a nossa desconfiança deve ser total. 

Não acredito que alguém tenha o poder de meter as palavras na ordem.

Não te deixes conduzir pelas palavras.

Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 24 de outubro de 2023

A ideia de inutilidade

A ideia de inutilidade, aplicada à filosofia, ou à poesia, ou à matemática e até à própria física, só colhe num sentido muito restrito de utilidade. 

A nossa cultura científica, humanística, filosófica, artística, linguística, foi construída através do pensamento, da atividade pensante, do discurso legitimador e fundante dos valores, das normas, dos critérios, dos modos de proceder e de trabalhar e de governar e de fazer justiça e de falar...

 Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Saber ler

Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, foi um dos livros de autores portugueses que mais me surpreenderam, numa releitura já algo tardia, depois de ter passado por essa obra, no Liceu, como um fantasma que apenas vira as páginas. Fiz o mesmo com Os Maias, de Eça de Queirós e com outras obras. Enquanto eu não tiver uma motivação particular para ler, e não incluo aqui a obrigação de ler, normalmente, também não o faço só por distração. Mas tenho noção de que existem muitas formas de leitura e que nem todas são as mais adequadas.
Não é apenas o saber ler, que é importante para descodificar a obra, é também o ato de leitura como um exercício, ou um investimento cultural, de aquisição, enriquecimento cultural, ou de mera jardinagem cultural, divertimento, ou passatempo.
Há autores que não escrevem para certos leitores. Nota-se claramente que não estão à espera (não devem esperar) que certo tipo de leitores (passe a expressão) leiam o que escrevem. Alguns livros não podem ser lidos senão por uma minoria de pessoas com muita erudição e experiência da vida. Independentemente do proveito ou do prazer, do enriquecimento ou satisfação que deem ao leitor, exigem repertórios e uma atenção que será raro encontrar. Ler, no sentido de ser capaz de ler qualquer livro, é para muito poucos.
A tentativa de escrever para o maior número possível de leitores, envolve a consideração de que a maior parte não se mete a ler para ficar mal disposto, cansado, frustrado, aborrecido.
Não vou desenvolver as veredas que nos levariam, por aí fora, acerca deste assunto já tão explorado e sempre surpreendente.
Vou apenas referir que há autores cuja leitura nos cansa quase tanto como os terá cansado a eles escrever, como se, constantemente, durante horas, tivéssemos que assistir ao suplício dos ciclistas que pedalam durante cinco minutos, para chegar ao alto de Nossa Senhora da Graça.
Outros aligeiram de tal modo as coisas que nos dão de bandeja, em duas frases, a notícia da vitória. Outros ainda, mais complacentes com a deles e a nossa preguiça, nem precisam de dar a notícia da vitória, uma vez que a vitória, nesses casos, está implícita, ou é suposto que exista.
O que é complexo não é o que escrevem é aquilo sobre o qual não dizem nada.
Quem escreve só é colocado perante o problema de escolher entre o que escrever e o que não escrever, se tiver sobre o que escrever. Depois há os poderes, ou competências, ou talentos, de como escrever e de saber se querem, ou podem, ser lidos, quando e por quem. Independentemente de terem à disposição canais de comunicação, divulgação, com potenciais leitores.
 
Carlos Ricardo Soares