quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Gente zangada não se ri

Gente zangada. Gente zangada não se ri. Mas já vi gente ganzada a rir como louca.  Enquanto ri a gente não se zanga. Acontece o mesmo com o choro. Ninguém ri e chora ao mesmo tempo. Mas há personagens que têm afivelada a máscara do riso, do choro, da ira, da bonomia, da sonolência, da loucura, etc.. D. Quixote, por exemplo, não ria e não fazia rir. Sancho compreendia de tal modo o seu amo que nem tentava fazer graça.

Há uma autenticidade na expressão dos sentimentos e das emoções, seja pela ira, seja pelo riso, ou pelo choro, pela euforia, pela estupidez, pela loucura, ou pelo mutismo, que não se compadece com zombarias ou com por a ridículo alguém, porquanto isso é de mau gosto, é feio, e tem de maldade.

Gente zangada, gente animada, gente embriagada, gente drogada, gente alienada, gente feliz, gente pobre, gente desprezada, gente triste, gente galvanizada, gente ilustrada, gente castigada, gente oprimida, gente do campo e gente da cidade, gente de armas, gente de fora e gente da terra, gente é uma palavra portuguesa do mais versátil que há.

Gente zangada pode fazer jus à muito conhecida expressão “quem não se sente não é filho de boa gente”.
De qualquer modo, gente que gosta de rir dos outros, em geral, não suporta, ou tolera mal, que se riam à sua custa. Não é o caso dos grandes humoristas, como Woody Allen que, preferencialmente, e por curiosa necessidade, riem de si próprios.
Aposto que Deus não ri, nem tem sentido de humor, mas também não se zanga.

 Carlos Ricardo Soares

sábado, 28 de outubro de 2023

Meter as palavras na ordem

As palavras podem ser nossas aliadas, mas a nossa desconfiança deve ser total. 

Não acredito que alguém tenha o poder de meter as palavras na ordem.

Não te deixes conduzir pelas palavras.

Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 24 de outubro de 2023

A ideia de inutilidade

A ideia de inutilidade, aplicada à filosofia, ou à poesia, ou à matemática e até à própria física, só colhe num sentido muito restrito de utilidade. 

A nossa cultura científica, humanística, filosófica, artística, linguística, foi construída através do pensamento, da atividade pensante, do discurso legitimador e fundante dos valores, das normas, dos critérios, dos modos de proceder e de trabalhar e de governar e de fazer justiça e de falar...

 Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Saber ler

Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, foi um dos livros de autores portugueses que mais me surpreenderam, numa releitura já algo tardia, depois de ter passado por essa obra, no Liceu, como um fantasma que apenas vira as páginas. Fiz o mesmo com Os Maias, de Eça de Queirós e com outras obras. Enquanto eu não tiver uma motivação particular para ler, e não incluo aqui a obrigação de ler, normalmente, também não o faço só por distração. Mas tenho noção de que existem muitas formas de leitura e que nem todas são as mais adequadas.
Não é apenas o saber ler, que é importante para descodificar a obra, é também o ato de leitura como um exercício, ou um investimento cultural, de aquisição, enriquecimento cultural, ou de mera jardinagem cultural, divertimento, ou passatempo.
Há autores que não escrevem para certos leitores. Nota-se claramente que não estão à espera (não devem esperar) que certo tipo de leitores (passe a expressão) leiam o que escrevem. Alguns livros não podem ser lidos senão por uma minoria de pessoas com muita erudição e experiência da vida. Independentemente do proveito ou do prazer, do enriquecimento ou satisfação que deem ao leitor, exigem repertórios e uma atenção que será raro encontrar. Ler, no sentido de ser capaz de ler qualquer livro, é para muito poucos.
A tentativa de escrever para o maior número possível de leitores, envolve a consideração de que a maior parte não se mete a ler para ficar mal disposto, cansado, frustrado, aborrecido.
Não vou desenvolver as veredas que nos levariam, por aí fora, acerca deste assunto já tão explorado e sempre surpreendente.
Vou apenas referir que há autores cuja leitura nos cansa quase tanto como os terá cansado a eles escrever, como se, constantemente, durante horas, tivéssemos que assistir ao suplício dos ciclistas que pedalam durante cinco minutos, para chegar ao alto de Nossa Senhora da Graça.
Outros aligeiram de tal modo as coisas que nos dão de bandeja, em duas frases, a notícia da vitória. Outros ainda, mais complacentes com a deles e a nossa preguiça, nem precisam de dar a notícia da vitória, uma vez que a vitória, nesses casos, está implícita, ou é suposto que exista.
O que é complexo não é o que escrevem é aquilo sobre o qual não dizem nada.
Quem escreve só é colocado perante o problema de escolher entre o que escrever e o que não escrever, se tiver sobre o que escrever. Depois há os poderes, ou competências, ou talentos, de como escrever e de saber se querem, ou podem, ser lidos, quando e por quem. Independentemente de terem à disposição canais de comunicação, divulgação, com potenciais leitores.
 
Carlos Ricardo Soares

domingo, 17 de setembro de 2023

Ninguém é obrigado a acreditar

Não acrediteis

ninguém é obrigado a acreditar

se acreditardes

saibais

que não sabeis

enquanto não verificardes

e se ajuizardes

ajuizareis

sobre o que imaginardes.

  Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Alegria é isso

Algo faz acreditar

que a alegria é isso

um peixe a surfar

sem pensar nisso

epitáfio

na onda passageira

em que medito

sem me preocupar

com aquilo em que acredito

ou deixo de acreditar.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Hermenêutica

Não vejo como ultrapassar o facto de um texto significar por si próprio e apenas por si próprio. Se o autor vier a terreiro, por exemplo, para explicar o que escreveu, isto já é outro texto. Se o autor vier à praça para discordar da interpretação que alguém faz do que escreveu, está no seu direito, mas não lhe assiste nenhum privilégio interpretativo daquilo que está escrito. 
Por exemplo, o legislador faz textos, sob a forma de normas, mas não tem competência para os interpretar vinculativamente. Isto para mim é muito claro. 
Se, por exemplo, alguém interpreta o que escrevo de um modo que me aparece inepto e sem apoio na letra, na lógica, no contexto e no sentido que é possível e legítimo esperar e exigir que um leitor normalmente competente reconheça, só me resta discutir isso e, embora seja eu o autor, não estou garantido só por isso de que o meu intérprete não tenha mais razão. 
Há inúmeros casos, alguns que ficaram célebres, de autores que acabaram interpretados de vários modos sem que, ao menos, um deles correspondesse àquilo que eles diziam pensar e defender. E pouco, ou nada puderam fazer contra isso. Estou a pensar em Karl Marx, que não se revia no marxismo, mas podia referir outros casos emblemáticos.
Agora, não deixa de ser aliciante e desafiante pensar o problema em termos de, por exemplo, alguém querer dizer, e menos ensinar, marxismo a Marx, ou cristianismo a Cristo, ou o padre-nosso ao vigário.
Nestes casos, porém, já não estamos apenas a interpretar textos, que valem o que valem e não aquilo que os seus autores queriam ou querem, mas a configurar situações em que um movimento, uma corrente de pensamento, a doutrina, enfim, já está distanciada das fontes, ao ponto de não se poder confundir o rio com a nascente.
O autor dos textos não tem como impor ao intérprete a sua própria interpretação. 
O intérprete pode, inclusivamente, ser mais arguto, competente, culto, ter mais repertório e talento do que o autor. Normalmente, o autor ganha muito com intérpretes deste jaez e perde muito com intérpretes mais limitados.
 Carlos Ricardo Soares