Se não sentíssemos/acreditássemos que “as coisas não têm de ser como são”, título de um trabalho que estou a realizar, ou, por outras palavras, se estivéssemos convencidos de que as coisas têm de ser como são, ficaríamos parados a ver acontecer, nada fazendo por nossa iniciativa, limitando-nos a respirar. Não obstante, e paradoxalmente, é porque as coisas são como são que nós sentimos e acreditamos que não têm de ser como são. Porque percebemos no modo de ser das coisas a susceptibilidade de as alterarmos, dentro das nossas possibilidades. E foi aqui e é aqui que surgiram/surgem os problemas e os conflitos. Os problemas surgem no sentir/acreditar, na necessidade e na (im)possibilidade da satisfação. Nós estamos dependentes das necessidades, no mesmo sentido da sua satisfação. Quando perguntamos, hoje, de que necessitamos, podemos constatar, por exemplo, que necessitamos de muitas coisas que os nossos antepassados não necessitavam. Passaríamos muito bem sem muitas coisas que existem, se elas não existissem. É a necessidade que torna as coisas úteis, ou, pelo contrário, é a utilidade das coisas que as torna necessárias?
Se perguntarmos porque temos necessidade de ir para a escola, o que mais me surpreende e choca, não é a resposta, é o ela ser imperiosa. Não existe escolha. E por que motivo? Toda a gente sabe, concorde ou não, goste ou não, é como ter de usar um transporte, ou falar uma língua, ou um telefone/telemóvel, ou uma arma. É como se quisessem impor-nos algo sem o qual preferíamos passar, ou, pelo menos, sem nos perguntarem se temos preferência.
Estamos hoje sujeitos, de forma violenta, ou quase violenta, a todo o tipo de dependências crescentes de estruturas desumanas, surdas e mudas, que nos cobram preços, em troca de serviços que não podemos dispensar.
Dentro deste comércio viciado e altamente desleal, ratificado e promovido pelos sistemas políticos e de justiça, entre os que têm as cabeças e as mãos atadas e os que têm liberdade para os explorar e armas para os alvejar, a educação e o ensino não são o menor artifício de dependência.
O que eu acho desejável, por mais utópico que seja, mas gosto de ser utópico até onde me deixarem, ou puder, é que haja a máxima independência dos indivíduos relativamente à educação. Infelizmente, verifico que acontece, cada vez mais o contrário. Cada vez mais, o ensino e a educação e as escolas, em geral, se apresentam e são entendidas, como meios de formação para o exercício de uma profissão, quer se goste ou não, e seja pelos motivos que forem.
A maior parte das pessoas até podem dar-se bem com isto e sentirem-se gratas por haver e lhes darem a oportunidade, por exemplo, de envergarem uma farda, ou de integrarem uma equipa, etc., e até sentirem elevados níveis de satisfação, de realização e de reconhecimento social, mas isso não deixa de ser a satisfação de uma necessidade.
A necessidade, seja pelo hábito ou não, dita e impõe a resposta, as aprendizagens, a escola, o ensino, a educação.
Onde vejo um problema é na alienação do indivíduo, da pessoa que se entrega, “que perde a vida” não para se salvar, mas porque sente/acredita que a sua vida tem a ganhar, até em sentido social, com a realização dos valores sociais susceptíveis de lhe darem retorno, seja profissional, ou outro.
Mas também vejo um problema na alienação do indivíduo a si mesmo, alienando-se da sociedade, que não busca, nem espera, nem encontrará por certo, na escola, no ensino e na educação, a resposta, ou o tipo de resposta, para a qual o ensino e a educação não estão vocacionados, nem preparados.
"Ser feliz é uma actividade que requer toda uma vida e não pode existir em menos tempo" - Aristóteles, Ética a Nicómaco
domingo, 11 de junho de 2023
domingo, 28 de maio de 2023
Na noite
O vento não sossega
na noite imensa
os cães não param de ladrar
a quem pensa
de outro tempo
ladainhas à indiferença
toutinegras
a suplicar
mas não adormeço
não vá a menina acordar.
quinta-feira, 25 de maio de 2023
Trabalho incansável
O meu trabalho tem sido incansável
o sol ardente anda a secar tudo
como um fogo
e eu não me iludo
com o frescor das noites
porque sinto os rios a parar
de me olhar
e as manhãs não acordam
com a coragem da primavera
quando vou esperar o dia
no promontório
sobre as lezírias
vejo muita gente à espera
como eu
que o rio volte a ser
o que era.
quarta-feira, 17 de maio de 2023
Religiões
As razões para a existência de religiões, que se poderiam traduzir por funções pelas quais as religiões existiram e existem, não têm variado muito ao longo do tempo e, tanto quanto penso, só colidem com a ciência e o pensamento crítico na medida em que estes põem em causa os seus fundamentos, os seus dogmas, as suas práticas e os seus objectivos, ou fins.
Por outro lado, a função e o papel das religiões, mesmo das religiões sem Deus, ou de muitos deuses, ou das ideologias, mormente políticas e sociais, têm sido substituídos ou complementados, em parte, por formas de mobilização e de consciencialização, por exemplo, em torno dos Direitos Humanos e do Dever de Respeito para com a natureza, em todas as suas formas.
Mas muitos daqueles que acham normal o Estado apoiar o seu partido político, o seu clube de futebol, determinadas práticas culturais que lhes agradam, ou a sua religião, criticam que o faça aos outros, partidos, clubes, culturas, religiões. Este tem sido, também, o problema histórico das relações entre religiões, pensamento crítico e ciência.
Até onde estará uma religião disposta a ir no respeito pelas outras religiões? E no respeito por aqueles que não têm religião, ou pensam que a religião é um erro, ou um malefício?
Até onde estarão os críticos da religião, ou os indiferentes, ou os incuriosos, dispostos a ir no respeito pelas religiões, pelos clubes adversários, pelos partidos políticos, pelos deuses, pelas bandeiras e pelos hinos?
Até que ponto as questões acerca da existência de deus ou dos deuses interessam aos religiosos e aos outros e são relevantes para a realidade social e sociológica das religiões?
E porque não admitir, até por hipótese, que a maior parte dos religiosos não o é por causa de um deus, nem por causa dos argumentos a favor da sua existência e que alguns dos que acreditam num deus, com ou sem argumentos, não são religiosos?
Por outro lado, a função e o papel das religiões, mesmo das religiões sem Deus, ou de muitos deuses, ou das ideologias, mormente políticas e sociais, têm sido substituídos ou complementados, em parte, por formas de mobilização e de consciencialização, por exemplo, em torno dos Direitos Humanos e do Dever de Respeito para com a natureza, em todas as suas formas.
Mas muitos daqueles que acham normal o Estado apoiar o seu partido político, o seu clube de futebol, determinadas práticas culturais que lhes agradam, ou a sua religião, criticam que o faça aos outros, partidos, clubes, culturas, religiões. Este tem sido, também, o problema histórico das relações entre religiões, pensamento crítico e ciência.
Até onde estará uma religião disposta a ir no respeito pelas outras religiões? E no respeito por aqueles que não têm religião, ou pensam que a religião é um erro, ou um malefício?
Até onde estarão os críticos da religião, ou os indiferentes, ou os incuriosos, dispostos a ir no respeito pelas religiões, pelos clubes adversários, pelos partidos políticos, pelos deuses, pelas bandeiras e pelos hinos?
Até que ponto as questões acerca da existência de deus ou dos deuses interessam aos religiosos e aos outros e são relevantes para a realidade social e sociológica das religiões?
E porque não admitir, até por hipótese, que a maior parte dos religiosos não o é por causa de um deus, nem por causa dos argumentos a favor da sua existência e que alguns dos que acreditam num deus, com ou sem argumentos, não são religiosos?
quarta-feira, 10 de maio de 2023
O poder da magia
A multidão obedece aos magos
que brincam com as leis da natureza
que as infringem
que pela palavra ou o gesto
fazem os impossíveis triviais
de transformar as coisas
pela ordem que lhes dão
a multidão não obedece
a uma coleção de metáforas mortas
ela trabalha como pode
o seu fado
com mais ou menos enfado
o que mais desperta a atenção
é a magia
seja do Aladino
do Potter ou de Jesus
ai como era bom
poder mover montanhas
pelo feitiço das palavras
sem máquinas nem martelos
sem faíscas brilhantes
ou trovões coruscantes
e ficar à espera para ver
o resto da matéria
já sabemos
ou nem precisamos de saber.
sábado, 22 de abril de 2023
Eram mulheres
Eram mulheres
aliás desenhos de mulheres
seminuas
ou coisa parecida
escondidos num caderno
de listas de mercearia
e de receitas de bolos
o caderno mais assustador
que alguma vez se abriu
diante dos nossos olhos
de adolescentes
bem conscientes
de estarmos ali
às escondidas de toda a gente
mas não de Deus
nem do Diabo
que não temíamos
a abrir as portas
do inferno
com a forma diabólica
de um caderno.
sábado, 8 de abril de 2023
Quantos gumes tem a faca
Desconhecia o poeta húngaro, Attila József, e este seu poema esplendoroso.
Quando nasci tinha uma faca na mão.
Dizem: é poesia.
Mas peguei na pena, melhor ainda que a faca.
Nasci para ser homem.
Dos que ficam na memória a rebobinar, a rebobinar. Saltou-me à ideia o estereótipo de Luís de Camões com a espada numa mão e a pena na outra. Uma faca de dois gumes. Mas quantos gumes pode ter uma faca? E muito mais. Humano, simplesmente humano, como a páscoa.
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