domingo, 11 de junho de 2023

As coisas não têm de ser como são

Se não sentíssemos/acreditássemos que “as coisas não têm de ser como são”, título de um trabalho que estou a realizar, ou, por outras palavras, se estivéssemos convencidos de que as coisas têm de ser como são, ficaríamos parados a ver acontecer, nada fazendo por nossa iniciativa, limitando-nos a respirar. Não obstante, e paradoxalmente, é porque as coisas são como são que nós sentimos e acreditamos que não têm de ser como são. Porque percebemos no modo de ser das coisas a susceptibilidade de as alterarmos, dentro das nossas possibilidades. E foi aqui e é aqui que surgiram/surgem os problemas e os conflitos. Os problemas surgem no sentir/acreditar, na necessidade e na (im)possibilidade da satisfação. Nós estamos dependentes das necessidades, no mesmo sentido da sua satisfação. Quando perguntamos, hoje, de que necessitamos, podemos constatar, por exemplo, que necessitamos de muitas coisas que os nossos antepassados não necessitavam. Passaríamos muito bem sem muitas coisas que existem, se elas não existissem. É a necessidade que torna as coisas úteis, ou, pelo contrário, é a utilidade das coisas que as torna necessárias?
Se perguntarmos porque temos necessidade de ir para a escola, o que mais me surpreende e choca, não é a resposta, é o ela ser imperiosa. Não existe escolha. E por que motivo? Toda a gente sabe, concorde ou não, goste ou não, é como ter de usar um transporte, ou falar uma língua, ou um telefone/telemóvel, ou uma arma. É como se quisessem impor-nos algo sem o qual preferíamos passar, ou, pelo menos, sem nos perguntarem se temos preferência.
Estamos hoje sujeitos, de forma violenta, ou quase violenta, a todo o tipo de dependências crescentes de estruturas desumanas, surdas e mudas, que nos cobram preços, em troca de serviços que não podemos dispensar.
Dentro deste comércio viciado e altamente desleal, ratificado e promovido pelos sistemas políticos e de justiça, entre os que têm as cabeças e as mãos atadas e os que têm liberdade para os explorar e armas para os alvejar, a educação e o ensino não são o menor artifício de dependência.
O que eu acho desejável, por mais utópico que seja, mas gosto de ser utópico até onde me deixarem, ou puder, é que haja a máxima independência dos indivíduos relativamente à educação. Infelizmente, verifico que acontece, cada vez mais o contrário. Cada vez mais, o ensino e a educação e as escolas, em geral, se apresentam e são entendidas, como meios de formação para o exercício de uma profissão, quer se goste ou não, e seja pelos motivos que forem.
A maior parte das pessoas até podem dar-se bem com isto e sentirem-se gratas por haver e lhes darem a oportunidade, por exemplo, de envergarem uma farda, ou de integrarem uma equipa, etc., e até sentirem elevados níveis de satisfação, de realização e de reconhecimento social, mas isso não deixa de ser a satisfação de uma necessidade.
A necessidade, seja pelo hábito ou não, dita e impõe a resposta, as aprendizagens, a escola, o ensino, a educação.
Onde vejo um problema é na alienação do indivíduo, da pessoa que se entrega, “que perde a vida” não para se salvar, mas porque sente/acredita que a sua vida tem a ganhar, até em sentido social, com a realização dos valores sociais susceptíveis de lhe darem retorno, seja profissional, ou outro.
Mas também vejo um problema na alienação do indivíduo a si mesmo, alienando-se da sociedade, que não busca, nem espera, nem encontrará por certo, na escola, no ensino e na educação, a resposta, ou o tipo de resposta, para a qual o ensino e a educação não estão vocacionados, nem preparados.

domingo, 28 de maio de 2023

Na noite

O vento não sossega

na noite imensa

os cães não param de ladrar

a quem pensa

de outro tempo

ladainhas à indiferença

toutinegras

a suplicar

mas não adormeço

não vá a menina acordar.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Trabalho incansável

O meu trabalho tem sido incansável

o sol ardente anda a secar tudo

como um fogo

e eu não me iludo

com o frescor das noites

porque sinto os rios a parar

de me olhar

e as manhãs não acordam

com a coragem da primavera

quando vou esperar o dia

no promontório

sobre as lezírias

vejo muita gente à espera

como eu

que o rio volte a ser

o que era.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Religiões

As razões para a existência de religiões, que se poderiam traduzir por funções pelas quais as religiões existiram e existem, não têm variado muito ao longo do tempo e, tanto quanto penso, só colidem com a ciência e o pensamento crítico na medida em que estes põem em causa os seus fundamentos, os seus dogmas, as suas práticas e os seus objectivos, ou fins.
Por outro lado, a função e o papel das religiões, mesmo das religiões sem Deus, ou de muitos deuses, ou das ideologias, mormente políticas e sociais, têm sido substituídos ou complementados, em parte, por formas de mobilização e de consciencialização, por exemplo, em torno dos Direitos Humanos e do Dever de Respeito para com a natureza, em todas as suas formas.
Mas muitos daqueles que acham normal o Estado apoiar o seu partido político, o seu clube de futebol, determinadas práticas culturais que lhes agradam, ou a sua religião, criticam que o faça aos outros, partidos, clubes, culturas, religiões. Este tem sido, também, o problema histórico das relações entre religiões, pensamento crítico e ciência.
Até onde estará uma religião disposta a ir no respeito pelas outras religiões? E no respeito por aqueles que não têm religião, ou pensam que a religião é um erro, ou um malefício?
Até onde estarão os críticos da religião, ou os indiferentes, ou os incuriosos, dispostos a ir no respeito pelas religiões, pelos clubes adversários, pelos partidos políticos, pelos deuses, pelas bandeiras e pelos hinos?
Até que ponto as questões acerca da existência de deus ou dos deuses interessam aos religiosos e aos outros e são relevantes para a realidade social e sociológica das religiões?
E porque não admitir, até por hipótese, que a maior parte dos religiosos não o é por causa de um deus, nem por causa dos argumentos a favor da sua existência e que alguns dos que acreditam num deus, com ou sem argumentos, não são religiosos?

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O poder da magia

A multidão obedece aos magos

que brincam com as leis da natureza

que as infringem

que pela palavra ou o gesto

fazem os impossíveis triviais

de transformar as coisas

pela ordem que lhes dão

a multidão não obedece

a uma coleção de metáforas mortas

ela trabalha como pode

o seu fado

com mais ou menos enfado

o que mais desperta a atenção

é a magia

seja do Aladino

do Potter ou de Jesus

ai como era bom

poder mover montanhas

pelo feitiço das palavras

sem máquinas nem martelos

sem faíscas brilhantes

ou trovões coruscantes

e ficar à espera para ver

o resto da matéria

já sabemos

ou nem precisamos de saber.

sábado, 22 de abril de 2023

Eram mulheres


Eram mulheres

aliás desenhos de mulheres

seminuas

ou coisa parecida

escondidos num caderno

de listas de mercearia

e de receitas de bolos

o caderno mais assustador

que alguma vez se abriu

diante dos nossos olhos

de adolescentes

bem conscientes

de estarmos ali

às escondidas de toda a gente

mas não de Deus

nem do Diabo

que não temíamos

a abrir as portas

do inferno

com a forma diabólica

de um caderno.


sábado, 8 de abril de 2023

Quantos gumes tem a faca

Desconhecia o poeta húngaro, Attila József, e este seu poema esplendoroso. 

Quando nasci tinha uma faca na mão.

Dizem: é poesia.

Mas peguei na pena, melhor ainda que a faca.

Nasci para ser homem.

Dos que ficam na memória a rebobinar, a rebobinar. Saltou-me à ideia o estereótipo de Luís de Camões com a espada numa mão e a pena na outra. Uma faca de dois gumes. Mas quantos gumes pode ter uma faca? E muito mais. Humano, simplesmente humano, como a páscoa.