quinta-feira, 25 de maio de 2023

Trabalho incansável

O meu trabalho tem sido incansável

o sol ardente anda a secar tudo

como um fogo

e eu não me iludo

com o frescor das noites

porque sinto os rios a parar

de me olhar

e as manhãs não acordam

com a coragem da primavera

quando vou esperar o dia

no promontório

sobre as lezírias

vejo muita gente à espera

como eu

que o rio volte a ser

o que era.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Religiões

As razões para a existência de religiões, que se poderiam traduzir por funções pelas quais as religiões existiram e existem, não têm variado muito ao longo do tempo e, tanto quanto penso, só colidem com a ciência e o pensamento crítico na medida em que estes põem em causa os seus fundamentos, os seus dogmas, as suas práticas e os seus objectivos, ou fins.
Por outro lado, a função e o papel das religiões, mesmo das religiões sem Deus, ou de muitos deuses, ou das ideologias, mormente políticas e sociais, têm sido substituídos ou complementados, em parte, por formas de mobilização e de consciencialização, por exemplo, em torno dos Direitos Humanos e do Dever de Respeito para com a natureza, em todas as suas formas.
Mas muitos daqueles que acham normal o Estado apoiar o seu partido político, o seu clube de futebol, determinadas práticas culturais que lhes agradam, ou a sua religião, criticam que o faça aos outros, partidos, clubes, culturas, religiões. Este tem sido, também, o problema histórico das relações entre religiões, pensamento crítico e ciência.
Até onde estará uma religião disposta a ir no respeito pelas outras religiões? E no respeito por aqueles que não têm religião, ou pensam que a religião é um erro, ou um malefício?
Até onde estarão os críticos da religião, ou os indiferentes, ou os incuriosos, dispostos a ir no respeito pelas religiões, pelos clubes adversários, pelos partidos políticos, pelos deuses, pelas bandeiras e pelos hinos?
Até que ponto as questões acerca da existência de deus ou dos deuses interessam aos religiosos e aos outros e são relevantes para a realidade social e sociológica das religiões?
E porque não admitir, até por hipótese, que a maior parte dos religiosos não o é por causa de um deus, nem por causa dos argumentos a favor da sua existência e que alguns dos que acreditam num deus, com ou sem argumentos, não são religiosos?

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O poder da magia

A multidão obedece aos magos

que brincam com as leis da natureza

que as infringem

que pela palavra ou o gesto

fazem os impossíveis triviais

de transformar as coisas

pela ordem que lhes dão

a multidão não obedece

a uma coleção de metáforas mortas

ela trabalha como pode

o seu fado

com mais ou menos enfado

o que mais desperta a atenção

é a magia

seja do Aladino

do Potter ou de Jesus

ai como era bom

poder mover montanhas

pelo feitiço das palavras

sem máquinas nem martelos

sem faíscas brilhantes

ou trovões coruscantes

e ficar à espera para ver

o resto da matéria

já sabemos

ou nem precisamos de saber.

sábado, 22 de abril de 2023

Eram mulheres


Eram mulheres

aliás desenhos de mulheres

seminuas

ou coisa parecida

escondidos num caderno

de listas de mercearia

e de receitas de bolos

o caderno mais assustador

que alguma vez se abriu

diante dos nossos olhos

de adolescentes

bem conscientes

de estarmos ali

às escondidas de toda a gente

mas não de Deus

nem do Diabo

que não temíamos

a abrir as portas

do inferno

com a forma diabólica

de um caderno.


sábado, 8 de abril de 2023

Quantos gumes tem a faca

Desconhecia o poeta húngaro, Attila József, e este seu poema esplendoroso. 

Quando nasci tinha uma faca na mão.

Dizem: é poesia.

Mas peguei na pena, melhor ainda que a faca.

Nasci para ser homem.

Dos que ficam na memória a rebobinar, a rebobinar. Saltou-me à ideia o estereótipo de Luís de Camões com a espada numa mão e a pena na outra. Uma faca de dois gumes. Mas quantos gumes pode ter uma faca? E muito mais. Humano, simplesmente humano, como a páscoa.

domingo, 26 de março de 2023

É preciso dizer

O dia sem manhã

mas com versos

a abrir caminho

a felicidade pode chegar

através das palavras

muitas vezes

só as palavras têm poder

para tranquilizar

ou demover

é preciso dizer

certas palavras que têm o efeito

de serem as palavras certas

por parecerem certas

ainda que não façam crer

que aquilo que é preciso

que seja

é

ou será.

quinta-feira, 9 de março de 2023

Não alimento mitos

Não te encontro defeitos

amor

mas a vida é imperfeita

por vezes bela

atordoa

estonteia

a aconchegar dois animais

que não cabem dentro de nós

que farejam tudo

e a miragem

na sua humanidade.