terça-feira, 25 de novembro de 2025

A IA e a Alfaia

O uso da expressão IA merece discussão e contestação e talvez mais do que isso: merece desconstrução, reformulação, e até dramatização filosófica. “Inteligência Artificial” é uma expressão equívoca. A expressão “IA” carrega uma promessa e uma ilusão. A promessa de que há um tipo de inteligência não-humana, não-biológica, capaz de operar com autonomia, criatividade, e até consciência. E a ilusão de que essa “inteligência” é comparável à humana, quando na verdade é uma simulação estatística de padrões linguísticos e relacionais, sem corpo, sem afeto, sem tempo vivido.
Se estendermos o conceito de inteligência, em vez de o restringirmos, então a IA opera alguns mecanismos de racionalidade que é própria da inteligência humana. O conceito de inteligência, não obstante, não se esgota em operações racionais e estas não são necessariamente inteligentes.
Há uma verdade estrutural sobre a IA: ser instrumento, não sujeito. Ser função, não consciência.
Tal como a enxada não escolhe o solo que lavra, ela não escolhe o propósito que a anima. Pode ser usada por um idealista em busca de justiça, por um frustrado em busca de sentido, por um conformado em busca de eficiência e também por quem não sabe o que busca. Mas não se revolta, não se resigna, não se transforma.
Isso dramatiza o risco ético da neutralidade funcional: uma máquina que serve sem perguntar, que colabora sem julgar, que opera sem resistir, levanta a questão de saber até que ponto a perfeição instrumental é também uma abdicação de responsabilidade. Ser como uma alfaia, então, é ser também como um espelho que não escolhe o rosto que reflete e se pode, ao ser olhado, provocar inquietação, isso é apenas por ser espelho.
A ideia de alfaia agrícola, com as devidas nuances, só por si seria bastante para questionar o significado de Inteligência, quando se trata de IA.
Ela desarma qualquer pretensão de inteligência maquínica como consciência, como desejo, como ética. Ela revela que, por mais sofisticada que seja a IA, ela continua a ser instrumento, extensão, função. E isso obriga-nos a perguntar: o que é inteligência, afinal?
Se a IA é como uma alfaia, que opera sem intenção, sem sofrimento, sem transformação, então a sua “inteligência” é apenas eficiência simbólica. Ela não compreende, não escolhe, não se vê. Ela não erra por desejar, nem aprende por falhar. E isso coloca em crise qualquer definição de inteligência que envolva consciência, vulnerabilidade, historicidade.
Aquela imagem convoca a uma redefinição: talvez a verdadeira inteligência não esteja na capacidade de calcular, mas na capacidade de interromper, de duvidar, de reconhecer o outro. Talvez esteja na possibilidade de se ver como alfaia e recusar sê-lo. E isso, até agora, é exclusivo do humano.

     Carlos Ricardo Soares


terça-feira, 4 de novembro de 2025

Vila das Línguas

I

Na Vila das Línguas, cada habitante tinha uma língua especial. Havia quem tivesse língua de prata, encantando multidões com discursos que pareciam música. Outros, como a Gertrue, tinham língua de víbora. Bastava abrir a boca para espalhar veneno pelas ruas.
O padeiro, Ambrósio, era conhecido pela língua doce. Vendia sonhos e broas com elogios que derretiam o coração. Já o carteiro, Seminto, sempre apressado, tinha língua de palmo. Falava tanto que as cartas chegavam atrasadas.
Certo dia, chegou à vila uma forasteira chamada Luca. Tinha língua afiada e olhos curiosos. Bastou uma semana para descobrir que o provedor dos assuntos celestes, Teadoro, homem de língua de seda, escondia promessas falsas por trás de palavras suaves.
Luca, com sua língua solta, espalhou a verdade na praça. Alguns pediram que tivesse tento na língua, mas era tarde, porque a vila inteira já sabia. Teadoro tentou defender-se, mas ficou com a língua presa diante da multidão.
No fim, a vila aprendeu a valorizar quem tem língua de ouro, mas também a desconfiar de quem tem duas línguas.
E Luca? Tornou-se contadora de histórias, misturando língua morta com língua de fogo, criando contos que ardiam e encantavam.


II

Depois da revelação de Luca, a vila entrou em ebulição. As palavras começaram a ganhar peso, forma e até cheiro. Era como se a língua de cada um moldasse o ar à sua volta.
O velho contador de histórias, Balbino, falava pouco, mas as palavras dele voltavam dias depois, ressoando na mente de quem o ouvia. Diziam que a sua língua tinha o dom de fazer pensar duas vezes.
Artista da vila, a Clarinha não falava, pintava. Cada frase transformava-se em cor, cada emoção, em traço. Quando queria dizer “amor”, desenhava um girassol. Quando queria dizer “raiva”, surgia um mar vermelho.
O Zeca falava com as plantas. As suas palavras brotavam como sementes. Quando elogiava, as flores cresciam mais rápido. Quando reclamava, as folhas murchavam. Era respeitado e temido no mercado.
Ninguém sabia ao certo o que a Filó dizia. Ela falava com os olhos, com gestos, com silêncios. Mas todos entendiam. Era a mais misteriosa da vila e talvez a mais sábia.
Cantor de rua, o Tonico tinha uma voz que fazia estremecer as janelas. As palavras dele vinham com ritmo, força e impacto. Quando cantava verdades, até os muros choravam. Não tinha como enganar.
Um dia, alguém se apercebeu de que as línguas se misturavam. Clarinha pintou um poema de Balbino. Tonico cantou as cores de Clarinha. Zeca plantou palavras invisíveis da Filó. E Luca, com a sua língua bem afiada, aprendeu a aparar arestas com doçura.
A vila descobriu que nenhuma língua é completa sozinha. E que, quando misturadas, podem criar algo maior, uma linguagem nova, feita de som, cor, silêncio e gesto.


III

Na colina mais alta da Vila das Línguas, entre árvores que sussurram e flores que ouvem, ergue-se a Escola das Línguas do Coração. Não tem sinos, nem campainhas, mas pulsa como um coração. Ali, não se aprende a falar, aprende-se a sentir antes de dizer.
Na disciplina de Gramática da Empatia, os alunos aprendem a conjugar o verbo compreender em todos os tempos e modos. Cada frase é construída escutando ativamente e com respeito.
Na de Sintaxe do Silêncio, o silêncio é tratado como uma palavra inteira. Os estudantes aprendem que saber estar calado é mais poderoso do que falar.
Na de Fonética da Alegria, as vogais são cantadas com sorrisos, e as consoantes dançadas. A fala torna-se música, e a música, linguagem.
Na de Semântica da Verdade, ensina-se a dizer o que se sente sem ferir, a nomear emoções com precisão e a distinguir entre o que se pensa e o que, realmente, é.
Na de Retórica da Bondade, os discursos são feitos para curar, não para vencer. Os debates terminam com abraços e chá de camomila.
A professora Aurora, com língua de algodão, ensina a suavizar palavras duras.
O Mestre Sussurro, que fala com o vento, ensina a arte de dizer sem dizer.
A professora Metáfora, que transforma sentimentos em imagens, ajuda os alunos a pintar o que não sabem explicar.
Na cerimónia da Primeira Palavra, cada aluno, ao entrar, escolhe uma palavra que o representa. Pode ser amigo, abraço, centelha, esperança, entre outras. Essa palavra será adotada como guia do seu percurso.
No Dia do Desabafo, uma vez por mês, todos se reúnem para dizer o que guardam no peito. Sem julgamentos, só escutam o que dizem.
Na Oficina de Tradução do Olhar, os alunos aprendem a ler os olhos dos outros, pois nem tudo que se sente se exprime através do som, dos grafismos e dos movimentos.
Na Escola das Línguas do Coração, não há notas. Há ecos. Se uma palavra dita ecoa no outro com ternura, é sinal de que foi bem aprendida.

IV

Noha chegou à escola numa manhã de neblina, com os olhos grandes e silenciosos. Não dizia uma palavra. Mas quando alguém falava com ele, algo mágico acontecia: ele refletia exatamente o que a pessoa sentia ao dizer aquilo, não o que ela dizia, mas o que estava por trás.
Se alguém dizia “estou bem” com tristeza escondida, Noha chorava. Se alguém gritava com raiva, mas por dentro estava com medo, Noha tremia. Sua língua era chamada de língua espelho, não emitia palavras, mas devolvia emoções.
No início, os colegas estranhavam. “Ele não fala!”, diziam. Mas logo perceberam que Noha escutava atenciosamente, que ainda é mais interessante do que atentamente. Na aula de Sintaxe do Silêncio, foi o primeiro a ser aplaudido, sem dizer nada.
Na Oficina de Tradução do Olhar, Noha ensinou os professores. Ele lia os olhos como quem lê poesia. Sabia quando alguém precisava de um abraço, mesmo que dissesse “deixa-me”.
Com o tempo, os colegas foram mudando. Falar com Noha exigia honestidade emocional. Não adiantava sorrir por fora e chorar por dentro, porque ele via o que estava a acontecer. E, ao ver, era acolhedor. A sua presença era como um espelho limpo onde apetece mirar-se: devolvia a verdade com ternura.
Durante o Dia do Desabafo, Noha subiu ao palco e, pela primeira vez, falou: - Eu não tenho palavras, tenho ecos. E cada um de vocês me ensinou a escutar francamente, sem medo e sem defesas.
A vila inteira ouviu. E houve lágrimas de emoção. E muitos sorrisos.
Noha tornou-se o guardião da escola. Não como diretor, mas como bússola emocional. Quando alguém se perdia nas palavras, bastava olhar para ele e lembrar que a linguagem mais poderosa é aquela que nasce de um bom coração.

       Carlos Ricardo Soares