Não me atrevo a generalizar, mas intuo que o fenómeno Chega está em linha com uma análise histórica, sociológica e de forte componente psicológica,
do fenómeno mais geral, muito bem rotulado, diria mesmo, genialmente designado, por bárbaros à porta. Pese embora a ambiguidade gerada pelo contexto, que pode prejudicar a eficácia do argumento,
os bárbaros já não estão à porta, já estão no parlamento. E estão em força, embora não tanta, por enquanto, que possam mandar calar os outros. Se pudermos
dizer que continuam a ser bárbaros à porta, por ainda não serem governo, então só lhes falta isso para deixarem de ser bárbaros à porta e passarem a ser apenas bárbaros.
Se lá chegarem, e já esteve mais longe, cairá o complexo de serem bárbaros à porta, excluídos da política e começarão os verdadeiros problemas.
A democracia já deu provas de resiliência e de aptidão suficiente para impedir partidos antidemocráticos de capturarem o Estado e de, mesmo permitindo
a sua existência, eles serem convocados para resolverem os seus próprios paradoxos e contradições. Na resposta a este repto e a esta condição, a médio prazo, acabam por não
ter sucesso.
Há razões para ter esperança na razão e na consciência que, em meu entender, são duas faces da mesma moeda transparente. Mas onde aposto
mais é na inelutável racionalidade humana, seja ela dos bárbaros, ou não.
Sendo certo que, em matérias conflituosas, que opõem interesses, o choque é evitável se houver poder negocial, mas os conflitos poderão multiplicar-se
e agravar-se se houver choque. Neste caso, a racionalidade opera no quadro das possibilidades em conflito.
Quando o presidente da Assembleia da República se estriba numa “alegada” conformidade com a lei e fica por isso mesmo, relativamente a uma conduta parlamentar
deplorável e vergonhosa, mas mesmo que o não fosse, revela uma pusilanimidade confrangedora que não o dignifica minimamente.
Perante uma violação dos limites éticos e morais, ou até
do bom senso, escudar-se na conformidade com a lei até podia ser justificável por dever do cargo, mas não deixa de significar a opção pelo comodismo de não se pronunciar sobre uma
matéria que incomoda. Se ele fosse daquelas pessoas, que as há em abundância, que andam sempre a perguntar o que é que a lei diz, porque não são capazes de assumir autonomamente um
juízo ético ou moral, para as quais a lei e só a lei conta, independentemente da sua razoabilidade, justiça, alcance, fundamento, legitimidade e humanidade, ainda podíamos compreender o seu
escrúpulo legalista, mas já não é a primeira vez que, por comodismo, nos remete genericamente para uma lei que não existe ou que, pelo menos, é duvidoso que exista, para não
ter de se comprometer pessoalmente.
Os tempos que vivemos não se compadecem, nem são compatíveis com elementos políticos que representam interesses pessoais, de grupo e partidários, mas não
se comprometem com valores mais altos e que têm como prioridade, não o respeito pela lei que, eventualmente, até não exista, mas a própria irresponsabilidade ética e moral. A barbaridade
assume muitas formas, mas é sempre demolidora e pungente.
Carlos Ricardo Soares