sábado, 19 de novembro de 2022

Falar idiota

Os estranhos sentidos das coisas transformadas

Em sombras de outras coisas

Que não foram

Em barcos ancorados sobre o dorso

Que alguma vez tiveram

Quando foram nadas

Ou apenas eram

Desejadas

Estranhas ilusões

Que nos povoam realmente

E nos percorrem

Como se fossemos estradas

Que deixamos para trás

Porque não imaginamos

Que viriam sequer a existir

De uma forma que está longe

De ser a melhor possível

De alguém sentir outonos

Ou falar idiota.

 

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Sensacional


O hábito ao que é sonante

E ensurdece

Ao que destoa e preocupa

Ao ruído esgotante

Às ladainhas e às rimas

Ao esquerdo direito

“Up” is...

Esquerdo

Como um rio murmurante

Que fica para trás

E se ouve constante

Ao que é doce

E viciante

Ao se não é

Que fosse

Comediante

À espoleta do relógio

E ao monólogo do lente

Entediante

É uma azáfama

Frustrante

E por aí adiante.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

O poeta é o criador das musas

Sem pretender acrescentar um chavo ao que se tem dito e escrito sobre poesia e poetas, não resisto a expender algumas notas sobre uma matéria que sempre tive no centro dos meus circunlóquios, não apenas para escapar a uma força centrípeta insuportável, mas também para não me perder em coisa nenhuma, porque, sem poesia, a função da vida é muito mecânica e, com poesia, pode ser menos satânica.
De modo que o poeta, se constrói memórias, é sem o saber e evita essa cilada que o tempo coloca no caminho de que reflete e sente o que lembra e pensa isso tudo de um modo que não é de todo inocente e ingénuo e "naïf".
O poeta desconstrói memórias, dele e dos demais, do que aconteceu fora e dentro do seu mundo, como se elas desconstruíssem os mundos, interiores e exteriores, de tal modo que ele não encontra o seu lugar, por mais que lho reservem.
O poeta é desconstruído pelas memórias, que tem, que perdeu e que não foi capaz de reconhecer, como um corpo pelo oxigénio em que arderam as suas células.
O poeta é o criador das musas que o enjeitam e julga saber disso, até certo ponto.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Se o coração falasse

Esteja onde estiver

Faça o que fizer

Pense o que pensar

Diga o que disser

Tenha o que tiver

Sinta o que sentir

Está onde não estou

Estou onde não está

A pedra a ouvir

Se o coração falasse

Diria mil poemas

À tentativa de possuir

Outros mil ao sentir

A falta

Muitos mais ao engano

Que há nisso tudo

E no que falta sentir

Que nunca é de mais

Se for beleza

Por mais que confunda

A céu aberto

Até o desejo doer

Na cava profunda

Da sombra suave

De castelos de areia

Diria mil tolices

Às flores por perto

Sem fazer ideia do tempo

Sem sepultura

A voltar para trás

Aos gritos

Para fazer a vontade

Aos versos aflitos.

domingo, 23 de outubro de 2022

Emboscadas

Por onde vão sem estradas

Nem marcas de ninguém

Se houver escadas 

Para o além

Por onde vai sem música  

O deambulo sem senão

Das ninfas disfarçadas 

De mulheres de alguém

E o alvoroço que resta

Um pouco mais aquém

Por onde vão não há senão

Mundo de ninguém

E não conforta senão

A quem liberta

Não ter porta

Nem cerca.


sábado, 15 de outubro de 2022

Viver

Ai o sublime prazer de coçar

A metafísica comichão

A divagar

Com pródiga comoção

Que ora enxota a pulga

Ora exalta o cão

A elevar a imagem

Que não faz questão

Senão do valor

Da opinião esfarrapada

Sobre uma ópera interrompida

Por uma sorte avara

Que mudou a vida

E esquecer que a saudade

É a última a morrer

Que não se mata saudades

De ter sido

E de não ter sabido

Viver

Peculiares são os rios

Que tortos dançam

Na nitidez dos olhos

Avançam

Na noite alcançam

Definires 

De momentos belos

Que nos esquecem

Quando menos esperamos

Onde havia castelos

Só nós estamos.

domingo, 9 de outubro de 2022

Confesso que vivi

Confesso que vivi 

Sem pensar em preservar o que tinha

O espaço e a minha liberdade

A visão do meu mundo

Da casa grande

Das vistas largas

Onde cabiam

Quase todos os sonhos

Que havia

Da tranquilidade

Da interminável vinha

Onde nidificavam as aves

Que eu conhecia pelos nomes

Todos os sóis e chuvas

E todas as luas

Que ali me encontravam

Com a alegria e as uvas

Que não faltavam

Na paz criativa da fantasia

De falar incansavelmente

Com as coisas

E de elas falarem comigo

Como se fossem encarnações

Do maior amigo

Que era Deus

Anunciando o outono

E o inverno

E a primavera

Naquele paraíso privado

Em que havia mistérios

Sombras por todo o lado

E estrelas no firmamento

Mas tudo com tal significado

Que até a tristeza

Ali acontecia

Como concretização

De alguma profecia

De milhões de anos

Nem nos dias de nevoeiro denso

Me perdia

Porque havia no ar

Um cheiro dos lugares

Da beira rio

Ou o ladrar dos cães

À passagem das muares

Do moleiro pelos socalcos

Se a noite caísse nos becos

Sem chegar a casa

Bastava um assobio

Para ouvir os ecos

De socorro

Do mundo inteiro.