domingo, 23 de outubro de 2022

Emboscadas

Por onde vão sem estradas

Nem marcas de ninguém

Se houver escadas 

Para o além

Por onde vai sem música  

O deambulo sem senão

Das ninfas disfarçadas 

De mulheres de alguém

E o alvoroço que resta

Um pouco mais aquém

Por onde vão não há senão

Mundo de ninguém

E não conforta senão

A quem liberta

Não ter porta

Nem cerca.


sábado, 15 de outubro de 2022

Viver

Ai o sublime prazer de coçar

A metafísica comichão

A divagar

Com pródiga comoção

Que ora enxota a pulga

Ora exalta o cão

A elevar a imagem

Que não faz questão

Senão do valor

Da opinião esfarrapada

Sobre uma ópera interrompida

Por uma sorte avara

Que mudou a vida

E esquecer que a saudade

É a última a morrer

Que não se mata saudades

De ter sido

E de não ter sabido

Viver

Peculiares são os rios

Que tortos dançam

Na nitidez dos olhos

Avançam

Na noite alcançam

Definires 

De momentos belos

Que nos esquecem

Quando menos esperamos

Onde havia castelos

Só nós estamos.

domingo, 9 de outubro de 2022

Confesso que vivi

Confesso que vivi 

Sem pensar em preservar o que tinha

O espaço e a minha liberdade

A visão do meu mundo

Da casa grande

Das vistas largas

Onde cabiam

Quase todos os sonhos

Que havia

Da tranquilidade

Da interminável vinha

Onde nidificavam as aves

Que eu conhecia pelos nomes

Todos os sóis e chuvas

E todas as luas

Que ali me encontravam

Com a alegria e as uvas

Que não faltavam

Na paz criativa da fantasia

De falar incansavelmente

Com as coisas

E de elas falarem comigo

Como se fossem encarnações

Do maior amigo

Que era Deus

Anunciando o outono

E o inverno

E a primavera

Naquele paraíso privado

Em que havia mistérios

Sombras por todo o lado

E estrelas no firmamento

Mas tudo com tal significado

Que até a tristeza

Ali acontecia

Como concretização

De alguma profecia

De milhões de anos

Nem nos dias de nevoeiro denso

Me perdia

Porque havia no ar

Um cheiro dos lugares

Da beira rio

Ou o ladrar dos cães

À passagem das muares

Do moleiro pelos socalcos

Se a noite caísse nos becos

Sem chegar a casa

Bastava um assobio

Para ouvir os ecos

De socorro

Do mundo inteiro.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Metáforas

Os que fecharam as portas

Deixaram o silêncio de fora

A vadiar como um penitente

Até que o silêncio

Tomou conta de tudo

E quando as portas se abriram com o vento

Ele saiu de dentro

E pos-se a vadiar como um rio novo

A que não se chamaria rio ainda

E talvez não venha a ser

Senão metáfora de deus.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Derivas ideológicas

Vale a pena pensar no problema das derivas ideológicas e equacioná-lo no tempo, para termos uma perspectiva espácio-temporal que nos ajude a medir proporcionalidades e tentar compreender os fenómenos. 

A mim, intriga-me e instiga a minha curiosidade, por exemplo, que no extraordinário curto período de cerca de 60 anos, numa época sem TV, de analfabetismo generalizado, muito longe das comunicações do nosso tempo, o marxismo, os movimentos sindicais, as lutas e reivindicações dos trabalhadores se tenham generalizado e disseminado por toda a parte, com grande sucesso. 

E que, o muito que a esses movimentos devemos, apesar dos custos de revoluções, guerras e conflitos de todo o tipo, tenha sido tão facilmente ofuscado e ignorado numa época em que dispomos de meios sofisticadíssimos de comunicação social. 

Parece que as condições que explicam o sucesso daqueles movimentos socialistas foram sendo afastadas a tal ponto que o sucesso desses movimentos ditou que perdessem algum do seu sentido, como alguém que abandona a medicação por se sentir curado. 

Ora, estamos a assistir a um recrudescer das infecções por abrandamento de anticorpos. 

É certo que já não estamos nos alvores da revolução industrial e da exploração do proletariado e que podemos contar com um armário cheio de medicamentos e de terapias. Os próprios vírus sofreram mutações irreversíveis. 

Tudo isto exigirá que se actualizem os antídotos, uma vez que as vacinas já não produzem efeitos.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Elogios

Elogio a pluma

Que toca a tua face

A rapsódia de luzes

Do teu cabelo

O disfarce

No escuro dos teus olhos

Submersos acenos

Do fino traço

Da tua silhueta

Amenos

Dardos pestanejam

De estrela para planeta

Recados sem venenos

Almejam

De uma caneta

Da espessura da boca

Elogio a seda

Da tua nuca

A escorregar dos ombros

Para o dorso

Destapando íntimos contornos

Ao suave decalque

Dos dedos

Num código tátil

Que abre

Sem quaisquer medos

Algemas secretas

Túmidos fonemas

Numa excitação desenfreada

Elogio as tuas pernas

No centro da tempestade

Bonança de poemas.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Perfeito só Deus

Até a ideia de perfeição está longe de ser perfeita.
Deus tem de ser perfeito, porque não seria Deus se o não fosse. Mas isto é circular, é o homem a inventar a hipótese de um absoluto que devia existir.
Deus foi criado porque devia existir.
Mas, tal como a perfeição, não existe.
Faz falta? Não sei se faz e não temos outro remédio senão tentar fazer aquilo que é preciso, tanto do ponto de vista dos juízos de ciência, como dos juízos estéticos, éticos, morais e religiosos.
Aliás, e esta é uma teoria inovadora, que estou a trabalhar e a testar desde há algum tempo, o homem, quer como indivíduo, quer como pessoa individual, escolhe o melhor em todo o tipo de situação em que poderemos falar de escolha, racional, consciente, ainda que a melhor escolha não seja boa e, muitas vezes, seja má.
Parece-me plausível que a noção de perfeição tenha sido trabalhada e cultivada sistematicamente na esfera do entendimento do que sejam as virtudes e como prato forte da moral religiosa e das teologias, incluindo as pagãs.
Ao entrarmos nesse capítulo, vamos abrir a porta a um museu em que podemos entrar para aprender sempre muito, até da história dos homens que acreditaram que a perfeição é algo que já existiu, que tem vindo a degenerar sucessivamente e que até Deus não consegue, ou não quer remediar, convivendo com a imperfeição de todas as coisas, excepto dele próprio, o que parece ser insólito.
De acordo com a teoria que estou a desenvolver, tudo parece mais simples e coerente se aceitarmos que não há cultura para além da humana, que só o homem dá sentido à realidade, que nenhuma outra realidade senão o homem dá sentido ao homem e que as escolhas do homem são as melhores.
Se assim for, estamos naturalmente determinados a uma melhoria tendencial, por via dos nossos actos individuais e das deliberações sociais a que não chamaria progresso, mas efeito de vivermos sob a égide do dever-ser, no sentido em que, para o homem o ser é o que deve ser (categórico, por imperativos de verdade, de necessidade, de lógica, hipotético, nas situações em que as escolhas têm como critérios meras crenças, de ordem estética, ética, moral, política, económica...).