sexta-feira, 19 de agosto de 2022

A criação e a descrição dos processos criativos


Quando ficarem descritos e conhecidos e explicados os processos criativos, continuar-se-á sem saber e sem poder prever o que vai ser criado. E isto já era assim, quando no princípio era o verbo (dos processos criativos).
Até as descobertas científicas com mais repercussão nos nossos tempos, não criaram as coisas existentes mas deram-lhes uma "existência", ou representação, que elas não tinham. O que, por exemplo, Newton e Einstein descobriram, e que corporizaram nas suas teorias, não são realidades novas, não são naturezas novas. São realidades culturais novas (e nesse sentido são naturais, porque são humanas), entendimentos sobre realidades que talvez já existissem, acontecessem, funcionassem, muito antes do aparecimento do homem.
Até que ponto esses entendimentos, representações, modelos explicativos, podiam ter sido outros, ou serão substituídos por outros, é um dos aspectos mais intrigantes e fascinantes da aventura do conhecimento.
E é, no fundo, o intrigante e fascinante funcionamento da relação entre realidade, linguagem e conhecimento, ou, de como é viável falar de realidade senão pela linguagem e que conhecimento é esse.

sábado, 13 de agosto de 2022

Seca e sede

Este ano tem sido seco

Como a eternidade

Não há palavras que molhem

A palha que arde

Nem chuvas que deem de beber às fontes

Que têm sede

De verdade.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Inteligência A./consciência A.

A reflexão sobre o problema da consciência artificial sugere-me que ela será um desenvolvimento inevitável da inteligência artificial e que as ameaças daí derivadas talvez não tenham tanto a ver com o pressuposto pessimista de que a consciência natural esteja cada vez menos inteligente.
Estou até convicto, embora não convencido, de que a inteligência artificial, sob todas as suas formas (pelo menos as que eu suponho), veio incrementar extraordinariamente os processos de inteligibilidade e de inteligência e de consciência humanos. 
Se não no âmbito dos indivíduos, cuja capacidade para entender e pensar os problemas numerosos e crescentes pode estar condicionada por fatores que não dependem exclusivamente da sua disponibilidade física e mental para o fazer, pelo menos, no âmbito das organizações, políticas, técnicas, militares, científicas, educativas, judiciais, económicas, acredito que a consciência artificial poderá ser a chave para resolver o problema, até agora insolúvel e cada vez mais insuportável, de a humanidade estar refém de um qualquer terrorista que detenha o poder nuclear de destruir. Neste caso especialmente crítico e relevante, acredito que as decisões militares vão ser monitorizadas pela inteligência e pela consciência artificial de um modo muito mais complexo e completo do que, por exemplo, o diagnóstico de uma doença em que não é o médico que controla a máquina, mas é a máquina que controla o médico. 
Ou seja, nenhum militar e nenhuma equipa de militares achará que pode ou sabe que decisão tomar, porque isso não contará para nada, uma vez que a inteligência/consciência artificial o fará, garantidamente, com melhor sucesso. 
Para dar o exemplo da invasão da Ucrânia pela Rússia, acredito que, embora não fosse preciso inteligência/consciência artificial para chegar a essa conclusão, se Putin dispusesse dela (inevitavelmente, não seria ele a dispor dela, mas seria ela a dispor dele) nem teria pensado na invasão como uma solução para os problemas, que também seriam problemas diferentes dos dele, por via dessa inteligência artificial. E assim sucessivamente. 
Os problemas e as suas soluções serão aqueles que a IA determinar. Não vejo aqui nenhuma ameaça aos humanos, pelo contrário, a IA determinará que qualquer ameaça será um problema e, não apenas o sinaliza para que o conheçamos e tenta neutralizá-lo, como até o previne e impede os seus efeitos. A IA e a consciência artificial só têm de o ser e, se o forem, não há problema. 
Na realidade, o nosso problema, os problemas da humanidade, ao longo do tempo, é a nossa incapacidade para resolver os problemas de consciência e de inteligência. 
Cometemos erros atrás de erros, alguns deles brutais, com consequências horrendas e irreversíveis, movidos por visões completamente injustificáveis de qualquer perspetiva de uma inteligência avançada e de uma consciência que não seja vulnerável, nem suscetível a alucinações, individuais ou coletivas.

sábado, 16 de julho de 2022

Valores da literatura

A literatura, para além de outras virtudes, e não estou a pensar em defeitos (que até podem ser vistos como suas principais virtudes) é um exercício intelectual, uma atividade exigente de leitura e interpretação que cada um fará ao jeito e até onde se lhe proporcionar o gosto, a imaginação e a criatividade, sem esquecer a experiência e os conhecimentos necessários para a descodificar/produzir.
Os autores, para mim, são indissociáveis das obras. E, acima de tudo, a literatura é o paradigma da liberdade, tanto na perspetiva do autor, quanto na perspetiva do leitor.
Mas, para isso, para ser paradigma da liberdade, não pode ser uma literatura ao serviço de uma propaganda. Quero dizer com isto que literaturas há muitas e que não me interessa por aí além uma literatura militante, pré-feita, ou pré-formatada, por mais habilidoso, criativo ou genial que seja o escritor a manusear conteúdos e formas e formatos.
Divulgadores de cartilhas ideológicas, militantes de qualquer espécie, doutrinadores e pregadores talentosos capazes de nos fazerem chorar contra nossa vontade e de até nos fazerem termos vergonha disso, como se tivéssemos sido hipnotizados, não há muitos, se é que os há, mas não me seduzem.
Isso de tocar violino num serrote, pode fazer-me arrepiar e até aguar dos olhos, como me acontece nos funerais, mas não é a arte da minha vida.
Há autores de quem gosto e, independentemente das histórias e dos enredos que contam, que pouco me interessam, me transmitem visão, inteligência, humanidade dos bichos e desumanidade dos deuses, irrelevância dos anjos, bravura dos touros, integridade dos burros, coragem dos ignorantes, força dos destemidos, paixão dos simples e ingénuos, espírito guerreiro dos ofendidos, insubmissão dos maltratados, revolta dos empobrecidos, inconformismo dos caluniados, capacidade de abnegação, pela verdade, pela autenticidade, pela justiça e pelo direito, contra tudo e contra todos, sem cedências a partidos, religiões, conluios, arranjinhos e trapaças palacianas ou de alcova, que não perdoam a ninguém que seja um verme, quer ele esteja nas instâncias superiores dos intocáveis, ou não. Se fossem feras eram puras, respeitáveis como leões, ou águias, ou serpentes, que não fazem mal a uma pomba, mas são implacáveis e inclementes com eles próprios, segundo os seus critérios, ainda que só em ficção.
Quem não sonha passar num crivo destes?
Autores que ousaram, ou ousam, enfrentar os poderes, todos os tipos de poderes, seja o poder do sexo, ou do dinheiro, ou das armas, da democracia, ou da ciência, ou da religião, mesmo sem esperança de os vencerem?
Que, inclusivamente, ousaram, ou ousam, enfrentar os poderes da literatura?
Autores que foram vencidos por ela, e ainda bem?
Não só pelos poderes da literatura, mas pelos seus valores, que não cabem na frincha de nenhum mealheiro?

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Poderá um professor ensinar mais do que aquilo que sabe?

O trabalho de um professor, a função da escola pública (não confundir com escola em sentido amplo), a função de uma universidade, a função de um educador, de uma instituição de educação, religiosa, ideológica, científica, ainda são pensadas e entendidas e gizadas segundo moldes de proficiências providenciais, ou providenciadas, ou a providenciar, assentes em pressupostos que devem servir e reproduzir, porque é preciso trabalhar muito para que tudo continue na mesma, embora isto seja uma grande ilusão, porque nada continua na mesma.
Poderá um professor ensinar mais do que aquilo que sabe?
Ou um aprendiz aprender só aquilo que o mestre lhe ensina?
Nenhum aprendiz aprende só o que o mestre lhe ensina, nem tudo o que o mestre lhe quer ensinar.
A maior parte das vezes temos aprendizes que aprendem de inúmeros mestres.
Muitas vezes aprendem com os próprios pensamentos e com a própria sombra, com o eco dos próprios erros.
A questão é então sobre o que se pode e deve potenciar num processo que é inevitável porque é natural.
A base da educação e do ensino é a ideia de que se deve socializar e integrar o indivíduo num determinado sistema social e económico, político e religioso, de modo a torná-lo funcional e proveitoso para o sistema e para si próprio, evitando que ele possa vir a ser um problema para si próprio e para o sistema.
Parte-se da ideia geral e abstracta de que há princípios e valores em que todo o indivíduo deve ser educado e que, desde que os respeite, tem toda a liberdade para agir.
Entre esses princípios e valores estão a honestidade, o trabalho, o respeito, o jogo limpo, a solidariedade e o mérito.
Mas há toda uma casta de valores que, numa cultura de exacerbação da esperteza e da inteligência na viciação do jogo, para disso tirar proveito, não propriamente indevido, mas inacessível ao comum dos mortais, não fazem parte do cardápio de aprendizagens e de práticas institucionalizadas. Ou seja, a escola, a igreja, o tribunal, a catequista, o partido, o professor, o mestre-escola, as estruturas distribuidoras do sentido do dever, cumprem a função de ensinar e educar para as regras dos jogos, ou para as leis da natureza, mas dificilmente, ou nunca, ensinam e preparam para o jogo, para os negócios, para as posições de vantagens e como tirar desforço de um golpe do adversário.
O desfasamento da escola relativamente à vida é brutal quando de um lado da corda estão os mais nutridos e desinibidos traficantes/negociantes de milhões e do outro os anémicos e anacoretas alquimistas, ou lunáticos alfarrabistas.
E não estou a dizer que estes não sejam os activos realmente importantes para os negócios daqueles.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Máquinas pensantes que sentem

Se em qualquer situação, seja de bem estar, de violência, de maus tratos, de ambientes e de interações inteligentes, de paz ou de guerra, de contemplação ou ascetismo, de sonho ou de paixão, o ser humano, como máquina pensante que é, como máquina que discorre e analisa e conclui sobre o que sente e, metodologicamente ou não, reverte o que pensa para a mesa da experiência, numa interação, ou controlo dos sentidos pela razão e da razão pelos sentidos, o problema da educação tem a ver sobretudo com os limites que são impostos pelo respeito devido ao educando, muito mais do que os que são devidos pelo educando ao educador. 
A responsabilidade do educador precede, em toda a linha, a do educando. 
Num primeiro momento, em que este nem sequer tem habilidades e capacidades de entendimento e de vontade e de liberdade, porque a máquina pensante humana é uma máquina biológica melindrosa e delicada, além de ser muito sensível (quanto à inteligência deixo o assunto para especialistas) está na roda viva de uma realidade que o antecede e o condiciona imenso. 
A evolução dessa máquina viva é ditada e determinada, em grande parte, por aqueles que a rodeiam e por aquilo que acontece. 
Gostar ou não das “propostas”, do “menu”, do “cardápio” de credos, disciplinas (o termo disciplina é muito interessante para estas minhas considerações gratuitas), possibilidades, expectativas, é fundamental, mas o que é decisivo é a oportunidade e a capacidade para alcançar o que, nesse horizonte de possibilidades, mais ou menos ilusórias, mais ou menos enganadoras, se deseja alcançar, sem detrimento dos motivos e das razões pelos quais se deseja.
A máquina pensante assemelha-se em tudo a um estômago triturador, cujos refluxos não dependem da vontade, por mais incómodos e indesejáveis que sejam. Mas, com ou sem refluxos, a máquina aprende sempre e aprende com tudo. 
Com ou sem educação, aprende. 
O problema está em saber o que deve aprender (se é que deve), na perspetiva da máquina, que merece todo o respeito, ainda que seja diferente de todas as outras, e na perspectiva das outras máquinas, que sabem o que lhe ensinar (se ela quiser e puder aprender, sem prejuízo daquilo que for seu desejo e sua vontade). 
Não basta ter uma mesa repleta de iguarias, é necessário apetite, vontade de comer, acto de comer e, a parte também complexa, sujeita a muitos percalços, de fazer a digestão, usar a energia e defecar.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Todas as ciências são ciências do homem

Há que evitar uma tentação, que é uma tendência dos processos de pensamento, de tomar a análise pelo analisado e, daí, fazer todo o tipo de inferências, ou colocar um computador a fazê-lo, ad aeternum, no éter. 

Uma sugestão, para o desafio colocado pela ideia de uma hierarquização dos conhecimentos e das ciências, é partir do princípio de que, realmente, todo o conhecimento, todo o discurso, toda a ciência, são humanos e que todas as ciências, em última instância, são tentativas de responder a questões e resolver problemas do homem. 

Neste sentido, todo o conhecimento é "antropologia" e a importância das ciências deriva do serviço ou da utilidade que elas possam ter para o homem, para a sociedade, para a humanidade. 

Neste sentido, seríamos tentados a considerar que nenhuma ciência é tão importante e relevante para o homem como o é a antropologia, ou, em geral, as ciências humanas e sociais. Continua a ser válido o brocardo antigo "conhece-te a ti mesmo" como algo cuja importância não pode ser diminuída nem substituída. 

Só que, como referimos, todas as ciências existem e concorrem para esse conhecimento, apesar de enfoques específicos de cada uma sobre a realidade. 

O nosso modo de conhecer é descontínuo e é em diferido, mas a realidade não.