quarta-feira, 13 de abril de 2022

Aproximações à verdade XVIII

Hilário: estou a pensar no sofrimento, na função que desempenha

Amiga: só os seres vivos sofrem

Hilário: sofrer e sentir são duas funções biológicas complementares

Amiga: sentir dor, mal-estar, é indissociável de sentir bem-estar, alegria, satisfação

Hilário: viver é estar nessa tensão, nessa adaptação constante a graus e tipos de satisfação que não têm de ser dolorosos, mas que podem ser extremamente dolorosos e até insuportáveis

Amiga: o homem tem desenvolvido uma cultura de prevenção de situações em que, por exemplo, a privação de bens essenciais, de água, de alimentos, de cuidados de saúde e de protecção contra as intempéries, seriam rapidamente muito dolorosas e insuportáveis, causando imenso sofrimento

Hilário: mas não é apenas para evitar desconforto, dor ou sofrimento que a cultura produziu mecanismos de prevenção e defesa, grande parte da cultura é um acervo de atividades e de objectos e de formas de dar satisfação aos nossos desejos e vícios, ao prazer pelo prazer

Amiga: nesse caso, o desejo aparece como desconforto e, ao mesmo tempo, como antecipação da satisfação que se obteria ou obterá e, se for muito fomentado, se se tornar obsessivo, pode ser fonte de dor e de sofrimento, moral e físico

Hilário: um prazer, ou uma fonte de prazer, nessas situações transforma-se num desprazer ou numa fonte de sofrimento, como acontece nos vícios

Amiga: parece que estar vivo é um processo em que, por desconforto, mal-estar, ou sofrimento, ao buscar satisfação e ao obtê-la, o ser vivo passa para um estado temporário, relativamente breve e passageiro, de homeostasia

Hilário: se este estado não fosse passageiro, se fosse definitivo, isso corresponderia à morte, ou a um estado fantasmático de consciência sem corpo, em que as religiões do espírito acreditam, mas que ninguém sabe o que é

Amiga: um dos aspectos mais interessantes e preocupantes dessa condição dos seres vivos, em geral, e do homem em particular, é que a dor e o sofrimento têm sido instrumentalizados, ou usados como meio de dominar e de controlar e de obrigar e de sujeitar os seres vivos e os humanos

Hilário: é como se o desconforto, a dor e o sofrimento, e não apenas os desejos e as ambições e os vícios, fossem uma espécie de moeda de troca em relações humanas mercantilizadas

Amiga: mas quando se chega ao ponto de provocar dor e sofrimento e morte, em pessoas que se sentem bem, que estão em paz, porque dessa forma se pretende obrigá-las a realizar algo que elas não querem, nem devem fazer, para satisfação, por exemplo, de um objectivo político-militar-económico de um grupo, ou de uma organização, estadual, ou outra, creio que se atingiu um pico de sordidez e de imoralidade e de aberração, que excede tudo

Hilário: isso é a manipulação perversa das nossas funções biológicas, como a função do sofrimento, que referi no início.

Amiga: nada é tão odioso como a guerra

Hilário: nada é tão nobre e sublime como a guerra defensiva

Amiga: e o que dirias do contra-ataque?

sábado, 9 de abril de 2022

Aproximações à verdade XVII

Hilário: estou a pensar numa estratégia de controlo do riso
Amiga: de controlo do risco?
Hilário: ahahahah
Amiga: ahahahahahaah
Hilário: tento, todos os dias sem excepção, antes de começar a trabalhar, pensar em algo que me faça rir
Amiga: e consegues? Eu tento fazer uma pequena oração, diferente todos os dias
Hilário: quando não consigo, tomo isso como sinal de que algo não está a correr bem
Amiga: é por isso que eu faço uma oração, até é mais fácil nas dificuldades
Hilário: ahahahah
Amiga: ninguém consegue rezar e rir ao mesmo tempo
Hilário: nem chorar
Amiga: nunca tinha pensado nisso
Hilário: e ter dois pensamentos ao mesmo tempo, já experimentaste?

sábado, 26 de março de 2022

Um deus que filosofe

Podes procurar um deus que filosofe

Que diga com que deuses filosofa

E com que deusas se compromete

Que joguem aos dados sem perderem

E não adormeçam

Por terem cuidados

E se entristeçam

Por não saírem de si

Por não fazerem bem

Por não serem ninguém.

sábado, 19 de março de 2022

Fast-Food

Quem está no terreno há muitos anos, desde o ante-xerox até ao pós-windows, passando pelo digital, se a memória não falhar, e tiver interesse nisso, pode dizer que o ensino e a escola, em geral, deixou de ser dos professores.

Os professores que tiveram a oportunidade de o perceber foram poupados a uma angustiante batalha contra gigantes, que outros tomaram por moinhos de vento.

O problema coloca-se de modo simples: o professor, na acepção clássica de profissional do ensino, especializado numa disciplina, a quem compete ensinar e discutir e questionar as matérias com os alunos, para depois os avaliar em função desse processo vivo, interactivo e crítico, acabou de ser banido e não é mais figura grada.

Só não percebe a mensagem, vinda de cima, quem teima em acreditar que ser professor é exercer um múnus cultural e educacional baseado na sua competência e autonomia científica e pedagógica. Foi assim que o professor do século XX aprendeu a ver, a representar e a desempenhar o seu papel, nunca lhe passando pela cabeça que um professor, por exemplo, fosse um mero dispensador de fichas de perguntas ou actividades sobre temas e respectivas propostas de solução, ou de resposta, preferencialmente, ou mesmo obrigatoriamente, produzidas por entidades heterónomas, essas sim, especializadas e exclusivamente credenciadas para o efeito.

Mas é isto que se pretende, que o professor não tenha qualquer intervenção científica no processo, que já nem pode designar-se de ensino-aprendizagem. Pretende-se evitar, senão impedir, que o professor seja algo mais do que um funcionário do ensino pré-formatado, tipo "fast-food", que nem precisa de saber nada sobre aquilo que está a "ensinar".

E isto, sob a bandeira e o pretexto, a meu ver perverso, de que é para aliviar o trabalho do professor e dispensar os alunos da seca de o ouvirem e aturarem.

Na pior das hipóteses, podemos pensar que o professor caiu num descrédito total, ou seja, nada do que ele possa dizer aos alunos merece a garantia, ou sequer o benefício da dúvida, de que não são disparates. E se os alunos (esses sim, instruídos) o disserem ao director da escola, este, prontamente, e sem indagações, acreditará.

Chegamos ao ponto em que a escola se tornou o lugar em que o ensino e a aprendizagem são a parte menos relevante da sua função institucional, não obstante se continuar a perseguir os professores, e mais ninguém, pelos resultados menos bons dos alunos.

sábado, 12 de março de 2022

Aproximações à verdade XVI

Estou a pensar nas aproximações à verdade do Hilário e da Amiga.
Hilário: 2+2=4
Amiga: correcto
Hilário: mas não é um facto
Amiga: facto é tu pensares e dizeres, não o significado do que pensas e dizes
Hilário: independentemente dos factos, de qualquer facto, 2+2=4
Amiga: concordo, não há nada que possa alterar essa relação de necessidade lógica
Hilário: a isto eu chamaria um imperativo categórico
Amiga: mas continua a não ser um facto, não depende, nem interfere nos factos
Hilário: há imperativos categóricos morais e não apenas lógico-matemáticos
Amiga: os imperativos categóricos morais fundamentam os julgamentos ou juízos de imoralidade dos actos humanos
Hilário: à semelhança do juízo de erro, se alguém afirmasse que 2+2=3, que seria fundamentado no imperativo inescapável de 2+2=4
Amiga: os imperativos morais, quando não são respeitados, têm sempre repercussões e implicações e efeitos e consequências danosas, indesejáveis de algum ponto de vista, o que nem sempre acontece no plano dos cálculos meramente abstractos.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Como só a harmonia consegue

Quem há-de dizer

Com todas as letras

Para as estrelas

E daí

Obter resposta

Numa língua que não existe

Aplacar em letra morta

O silêncio

Pisar escombros com a planta dos pés

E como antídoto ensurdecer

Com sofismas

Para dores fantasmáticas

Em doses homeopáticas

Diluídas na metafísica

Do maravilhoso aquário

De argumentos

Sem se molharem

Sem afundarem

Patinando artisticamente sobre uma superfície gelada

De postulados cosmológicos

E imunes às forças opostas

Como só a harmonia consegue

Em parcimoniosos compassos

Ou bélicas coreografias

Quem há-de sacrificar

Tudo o que resta

O que importa salvar

Não é a verdade

Nem do que sabemos

Nem do que dizemos

É o que somos

E o que fazemos

É o que as coisas são

Até se tornarem noutras coisas

Que não reconhecemos senão

Na nossa visão

Por mais desculpável que seja

A nossa falta de visão

Por mais que se agigante

O espectro da invisibilidade

Na luta que se encarniça de olhar para si mesma

Como inimiga

Que não pode evitar

Nem vencer

Nem servir de alimento a uma letra

Para não dizer pomba

Morta

Da paz.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Devia ser proibido mandar fazer guerra

Devia ser proibido mandar fazer guerra, mandar matar. 
Devia ser mais proibido do que matar. E mais condenável e mais inadmissível. 
Temos assistido a guerras que são impiedosas e desumanas máquinas de trituração às ordens de oligarcas de toda a espécie, detentores de faustosos e imerecidos privilégios, numa posição blindada às explosões e aos estilhaços, a que assistem com estrondoso prazer, entre caviar e champanhe, e imensa droga, pondo e dispondo da estratosfera em que se encapsulam, pela simples razão de não terem poder bastante para mais nada. 
Não temos assistido, nos últimos tempos, a revoltas de escravos, ou da plebe, do povo ou do proletariado... 
As revoluções já não são o que eram. 
Assistimos ao deboche e ao sadismo da guerra como violência exercida por criminosos a quem falta o que não conseguem obter pela violência e que, por isso mesmo, são os mais execráveis e miseráveis demónios em cujas mãos o progresso e o desenvolvimento, de tempos a tempos, não conseguem evitar cair. 
Isto vem a propósito de eu ter pensado na causa das guerras, ontem e hoje. 
Amanhã ver-se-á.