sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Do sentir ao pensar

O nosso corpo é maior, é mais, do que a nossa consciência. A realidade é incomensuravelmente maior, mais, do que o nosso conhecimento, do que o nosso saber, mesmo implícito.

A representação que fazemos da realidade é como um fogo de artifício da linguagem.

Do que não esquecemos, ficamos com o osso da memória, essa construção labiríntica de que a humanidade procura a chave, não uma chave, como se a realidade fosse a memória e o seu discurso e não também o corpo e a linguagem à revelia de qualquer consciência.

O corpo e a linguagem são a memória, ainda antes de sabermos que existem e de sabermos o que eles são, o mais complexo edifício que não obedeceu a um projecto, embora possamos tentar desenhá-lo, “a posteriori”, e licenciá-lo nalguma câmara de racionalidade.

A memória é viva o suficiente para acordar, ou adormecer, quando menos desejamos ou esperamos e é muito maior e mais do que a nossa consciência. Não sei se a memória é mais ou maior do que o corpo, mas é mais inteligente do que a consciência e do que a linguagem e o discurso.

Pode ser muito difícil de apagar, sem apagar o corpo e, ainda assim, pode sobreviver através de outros corpos. E pode ser ainda mais difícil de recuperar, o que é desesperante quando dela mais precisamos.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Ornatos e razões puras de uma ideia para enganar crédulos

A meritocracia, a aristocracia e a própria democracia são formas de entronizar nos imensos e superiores poderes do Estado, e de os colocar nas suas mãos, aqueles, indivíduos ou grupos, ou partidos, já posicionados no mais alto nível de privilégios, prerrogativas, vantagens.

Na realidade, são formas de plutocracia e de cleptocracia, com os evidentes perigos que isso representa para a sociedade em geral, sobretudo para aqueles que têm de se sujeitar às condições económicas, políticas, de acesso à justiça e à saúde e ao poder.

O poder do Estado, sendo o "activo" mais valioso que há, nem por isso está a salvo e não vemos mérito, ou confiança que o mereça, nem superioridade moral, intelectual, humana, de alguém, que justifique a colocação do poder nas suas mãos.

Sobretudo porque a guarda e gestão desse bem público não tem sido vista e entendida como tal pelos titulares dos órgãos de poder. O poder tem sido uma oportunidade, legitimada e insindicável, de fazer desse património incomensurável do Estado, a maior fonte de rendimentos, para quem o gere, sob todas as formas, incluindo a corrupção.

Se há uma forma menos perversa de tomada do poder é a que ocorre por efeito da democracia pluripartidária, se esta não estiver instrumentalizada por algum partido que abusa das fragilidades e das contradições do sistema, nomeadamente eleitoral e se o dogma da bondade da democracia não dispensar a vigilância das pessoas induzindo-as a confiar que o poder está em boas mãos. Esta confiança inerente e esta falta de alternativas à democracia garantem a qualquer formação política um monopólio da oferta política com os grandes defeitos e inconvenientes associados.

Os eleitos não apenas se arrogam uma legitimidade, muito para além do formal, como ainda agem em consciência de que não há alternativa, de que mais do que "democráticos", são "aristocráticos"(os melhores) e o preço a pagar pela governação, ou seja, a “entrega” do poder nas suas mãos, são eles que o estabelecem.

Isto tudo é muito triste, na perspectiva dos contribuintes que acreditam na racionalidade do sistema e nos méritos do apregoado Estado de direito democrático.

Que estes méritos pouco mais sejam do que ornatos e razões puras de uma ideia para enganar aqueles, crédulos e fiéis, impotentes, que são sobre quem esses méritos se fazem sentir e justificar, sem escrúpulos, por abuso da subserviência e do temor deles, é ainda mais inaceitável e revoltante.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O positivismo de Auguste Comte e de Platão

O filosofar é uma actividade severamente ameaçada por se desenvolver mediante um discurso cuja linguagem não nos pertence senão na medida em que a utilizarmos e não nos serve senão na medida em que a dominarmos na medida em que os nossos interlocutores a dominarem. Se juntarmos a isto o problema de, ao filosofar, o discurso filosófico ser o objecto do filosofar, porque não se trata de filosofar senão sobre ideias, ou conceitos, ou imagens, cujos contornos e conteúdos é impossível estabelecer, o que retira a esperança de duas pessoas, ao filosofarem uma com a outra, terem a mínima segurança ou certeza de estarem a pensar a mesma coisa ou algo bastante parecido, há motivos para pensar, como parece que Comte pensava, que há que ser positivo, no sentido de adoptar uma atitude construtiva com base na utilidade e no valor daquilo que pode promover a humanidade como aposta ganha.

A proposta dele partiu dessa necessidade de ordem e progresso social e que ele acreditava ser possível apenas através da religião. A experiência da Revolução francesa, que Comte vivera de perto, era a prova de que a igreja católica não tinha conseguido mobilizar a sociedade e menos ainda a Humanidade, em torno de um valor supremo que não ela própria. 

Deus não era suficientemente apelativo, nem suficientemente convincente para ser afectivamente adoptado como bem supremo.

Comte, talvez acreditando que o que move as pessoas são os afectos e as necessidades que geram solidariedades em torno de interesses e objectivos colectivos e individuais, elaborou um catecismo com a doutrina de uma religião universal que, no lugar de Deus, teria o amor por princípio, a ordem como base e o progresso por finalidade.

Essa seria a forma de alicerçar a construção da sociedade humana ideal.

A unanimidade seria obtida por efeito da verdade da ciência, que teria como sacerdotes os cientistas e cujo carácter experimental e verificabilidade não estariam sujeitas a refutação.

As ramificações, os desenvolvimentos, as interpretações, as versões e os sucedâneos desta ideia de positivismo (por oposição a negativismo-que afirma a impossibilidade de conhecer o ser), foram inúmeras e tiveram aplicações adaptadas em regimes políticos autoritários concretos.

Entrevejo algum paralelismo entre a situação histórica de desordem vivida por Comte, a vivida pelos filósofos Sócrates e Platão e o tipo de resposta que deram ao problema de, sendo filósofos, o que sabiam e podiam fazer face à violência e às guerras.                                                  

Sócrates, não tinha escola, dizia que não tinha nada para ensinar e é famosa a declaração “só sei que nada sei”, que lhe é atribuída.                        

No entanto, segundo o oráculo de Delfos, Sócrates era o único sábio. Então, ele terá concluído que, se era o único sábio, era porque só ele sabia que nada sabia. Os outros nem isto sabiam. Com esta alegação, talvez Sócrates irritasse muita gente que acreditava que o oráculo não mentia. 

A filosofia parece ter nascido, assim, da necessidade de fundamentar até à irrefutabilidade as opiniões sob pena de elas não passarem de expressão de interesses, instintos, desejos, paixões, ilusões, frustrações...

Mas Sócrates não acreditava que fosse possível fundamentar o que quer que fosse até à irrefutabilidade, nem a sua ignorância. E, neste ponto, ele parecia brincar com a "infalibilidade" do oráculo a seu respeito. 

Sócrates adoptara uma posição, digamos, “negativa”. Contestava os outros, porque só tinham opiniões e porque ter opiniões não é saber, mas ficava por aí, não sabia mais.   

Platão não aceitava esta saída e entendia que a filosofia “tinha a obrigação” de fazer mais. Esta posição era, digamos, “positiva”, no sentido que me parece ser o do positivismo de Comte.


segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A neutralidade da ciência

A neutralidade da ciência não é um ponto fraco nem um defeito ou uma insuficiência da ciência, bem pelo contrário, é uma condição sem a qual o conhecimento ficaria comprometido, quanto à credibilidade e objectividade. Aliás, quando se trata de ciência física dos objectos materiais, a neutralidade não será um problema de maior, porque a determinação e estabelecimento dos factos não dependem muito da neutralidade dos juízos. O problema coloca-se principalmente nas ciências humanas, sociais e económicas, na medida em que aí os factos são actos humanos ou uma sucessão desses actos. Aqui, a neutralidade da ciência pode ser mais difícil de conseguir e o próprio estabelecimento dos factos pode não ser possível. E, sem factos apurados, provados, incontroversos e incontrovertíveis, não pode haver juízo de valor, seja ético, jurídico, moral, estético, económico, que mereça concordância e aceitação.

A maior parte da história assentou, e ainda assenta, num conjunto de ficções religiosas, crenças, idolatrias, mentiras reiteradas pelos poderes e pelas ideologias de domínio social que, à míngua de investigação e de conhecimento científico, eram impostas por autoridade como factuais e assim cultivadas e admitidas, sob advertência severa de que não poderiam ser postas em causa.

Assim se prova que se pode viver e construir impérios com base em ficções e mentiras.

Mas eu acredito que é preferível viver com base na verdade e, melhor até, sem construir impérios sobre cadáveres de escravos.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A razão de ser e de dever ser

Estou profundamente focado na área de conhecimento das ciências humanas, sociais e económicas e não me distraio de as referenciar às ciências físicas e biológicas. 

A filosofia é a razão a laborar no conhecimento da realidade, do que existe, qualquer que seja a forma, incluindo o próprio conhecimento e ela própria, como realidade que é, ainda que não seja material. 

A filosofia é a razão que descobrimos e buscamos na identificação do domínio do conhecimento com o domínio da realidade (a realidade de cada um nunca será mais ampla do que a que conhece), que nos permite explorar e descobrir e reconhecer a realidade e comunicar representações significativas de factos, e sentenciar como tais (verdadeiros) e emitir juízos de não neutralidade ética, moral, estética, emotiva, sensorial, sobre os mesmos, sem deixar de os explicar, de se explicar, de os justificar e de se justificar. 

A filosofia é a razão à prova, ou exercida sobre constrangimentos (nem a experiência deve ser um constrangimento para a razão, na medida em que o valor, validade, verdade a extrair da experiência dependem da razão, incluindo a experiência da razão; é a razão que valida a experiência e não esta que valida aquela) e sem as limitações do método científico, designadamente, de objectividade, neutralidade e imparcialidade. 

A filosofia não é neutra, porque a razão não é neutra. 

A ciência é neutra porque o método científico é etica e esteticamente neutro.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A razão como critério dos valores

Parece acentuar-se a tendência para pensarmos em abstracto, em detrimento do pensamento das condições concretas da vida e isso pode esvaziar a linguagem, reduzindo-a a jogos inconsequentes de palavras, quando a carne dos interesses é, e não pode deixar de ser, determinante, tanto mais que o império da razão e o império dos valores se miram num espelho de juízos que nem todos conhecem, pelo menos para lá do egoísmo.

Qualquer pessoa normal está dotada da capacidade de fazer juízos de valor, estéticos, éticos, morais, com base numa educação, formação, que todos, de algum modo, têm.

O mesmo não acontece com juízos de carácter científico, juízos de ciência, nem com juízos de verdadeiro falso. Estes requerem o domínio de algumas técnicas de pensamento reflexivo intencionalmente dirigido e controlado, que são menos espontâneas e, quanto mais deliberadas, melhor.

Se se pode viver à margem destas tarefas e destas preocupações “científicas”, já estas não deixam de estar no mercado dos valores, que é ou tende a ser “totalizante”, no sentido em que tudo, antes de mais, tem um valor.

Assim, o universo dos valores, inclui a própria razão e as leis da razão. Mas haverá alguma forma de primazia do valor relativamente à razão? Ou vice-versa? Haverá algo que o indivíduo (à luz da razão) julgue, ou deva julgar (são duas situações distintas) um valor, ainda que prejudicial, desvantajoso para si? Qual é, em suma, o critério da razão e o critério do valor? Razoável é o valor, ou o valor é o razoável? Qual tem sido a demanda dos humanos? A razão ou o valor? Mas o que é a razão senão juízo de valor? Haverá algo (de juízo científico) que seja contra o interesse humano?

Por ex., temos todas as razões para sermos bons? Ou para não sermos maus?

Há um problema quando se tem razão para ser mau.

E um problema maior quando se é mau.

Atualmente, parece-me que há mais pessoas empenhadas em coleccionar razões para serem más do que em procurar razões para o não serem. Já nem falo em procurarem razões para serem boas.

O espectro partidário das forças políticas, a meu ver, é um espectro de hordas que continuam a acreditar na posição dominante para disciplinar o “mercado dos valores”.

Mas a democracia não pode estar sujeita a isto e tem de, ela própria, exigir o respeito intransigível da razão como critério dos valores.

sábado, 19 de setembro de 2020

O amor da sabedoria e a medicina

O amor da sabedoria foi e é um grande amor. 
Esta paixão revelou-se, para mim, o melhor antídoto contra outras paixões. 
Fosse por questões de senso, de nexo, de coerência, de sentido, de valor, de entendimento e de harmonia com quem me rodeava, a forma de haver entendimento e harmonia com a catequista, o padre, as beatas e as professoras, era reproduzir de cor e salteado o que eles mandavam. 
Havia outras pessoas, analfabetas (de escrever, ler e contar), que me transmitiam a noção empírica de que todo aquele teatro, à volta de uma escola e de uma igreja e, lá mais em cima, na sede do concelho, o tribunal, o quartel e a esquadra da GNR, era de tal modo simbólico e cifrado, para não dizer enigmático, que tinha mais pena deles, com as suas plumas e vestes ritualizadas, quando não cheios de jactância na hierarquia das procissões coroadas de interminável e poderoso foguetório, do que dos pedreiros cobertos de pó, a tossicar na taberna, vítimas da silicose e do cancro do pulmão pela sílica, enquanto os filhos deles, que eram meus colegas de catequese e de escola, passavam fome e aprendiam a agradecer a Deus a sorte que tinham. 
As minhas dores e as minhas raivas e as minhas frustrações, por mim e pelos outros (familiares, amigos…) encontravam eco no conforto religioso das pessoas ignorantes que me rodeavam, em casa, na aldeia, na catequese diária, fosse da escola fosse da catequista, ou no castigo de algumas dessas pessoas que exerciam a autoridade, com violência, sem necessidade de a justificarem, fazendo recair sobre mim, criança, jovem, adulto, o ónus de justificar a minha conduta.
Quando entrei na fase de saber que o mundo não tinha começado quando nasci e que não era apenas o meu quintal, a minha aldeia, paróquia, professora, e que havia uma cidade, e médicos e farmácias e hospitais e depois, outra e outra e oceanos e filmes, tudo era mais difícil de conciliar, mas o amor da sabedoria, impaciente, tantas vezes cruel e ingrato, foi-se mostrando vantajoso como uma arma de defesa pessoal, ou de defesa geral, numa guerra. 
A todas as tentativas, mais ou menos reais, mais ou menos disfarçadas de ordem, ou simplesmente perpetradas, de me conduzirem, ou subjugarem, ou ignorarem, ou desprezarem, eu aprendi a perceber que a razão é a arma dos fracos e que a sabedoria é como um grande exército de razões. 
Esta consciência, resultante de muito pensamento construído sobre o pensamento e as ideias de tantos filósofos e pensadores e escritores, permitia-me colocar um médico, ou um juiz, ou um engenheiro, no seu lugar profissional, do mesmo modo que a mineralogia, a zoologia, a botânica, a química, estavam nos compêndios respectivos. 
A minha passagem pelas ciências, numa altura em que o país fervilhava por todo o lado e todo o tempo era pouco para nós, jovens à procura de saber quem tem razão, mostrou-me que a vida, a acção, a dinâmica, os desafios, os combates, a adrenalina, não estavam numa bancada de minerais, ou num laboratório de química, ou na exploração e conhecimento da flora. 
O carácter de urgência de certas situações, altera as prioridades.
Havendo prioridades a considerar na construção de um currículo académico, ou de um plano de formação profissional, estas têm mais a ver com questões de ordem técnica e prática, funcional, do que com razões de ordem teórica ou filosófica. 
Está fora de questão que um estudante, qualquer que seja a função ou a profissão que venha a desempenhar, só por ser estudante deva estudar tudo o que há para saber sobre todos os domínios.
Outra questão será: estará em melhores condições para abordar clinicamente um humano, do ponto de vista das medicinas, um médico robot, que só sabe de medicina (isto é possível?-esta era a provocação de Abel Salazar), ou um médico humano?
Para não me alongar, e deixando implícito muito do que poderia explicitar, não acredito que um robot possa filosofar. Que, tomando a realidade (que equivale ao que conhece) possa definir o ser tendo em consideração: o ser como um poder ser que foi /um dever ser (pelo menos quando falamos de ética) que é, e como ele, robot, quer ou deseja que seja…
Mas o médico, enquanto homem, é um filósofo que vive integrado num sistema de acção e de pensamento e de valores que, em grande parte, já assimilou o que os sistemas de cultura assimilaram ao longo da história. Este sistema de pensamento e de acção é um sistema de linguagens e de lógicas, nomeadamente matemática, cujo domínio varia muito de pessoa para pessoa e de robot para robot.
Não acredito que os robots decidam com base em valorações próprias, que não sejam programadas por humanos, mas os médicos fazem-no.
Neste capítulo, por ex., se é indiferente para o mundo que uma pessoa viva ou morra, já quanto à vantagem política e económica na sua sobrevivência, ainda que enfermo, ou na sua morte, os médicos e a indústria farmacológica e as tecnologias da saúde e todas as profissões que dependem do tratamento das pessoas, tanto ou mais do que os direitos fundamentais do homem e do cidadão, são um baluarte e uma fortaleza, cujos interesses, quando mais não sejam, de facto, garantem o respeito pela saúde e pelas vidas, por mais inúteis ou absurdas que sejam do ponto de vista de qualquer filosofia, religião, ideologia ou sistema de valores.