quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Utilidade dos saberes inúteis



Quanto à utilidade dos saberes inúteis, bem, é preciso recuar a um ponto em que os "vícios" da cultura ainda estavam em fase de entranhamento. 
Nunca me preocupei com a utilidade, até ao momento em que entrei para a escola e queria que a professora, a madrinha, o meu pai, a minha mãe, o senhor padre, etc..., gostassem de mim.
Nesses tempos, que já lá vão, tudo, para mim, era útil ou inútil, consoante o jeito que desse, naquela espécie de jogo de quimeras e de vaidades (verdades) infantis, não obstante, extremamente relevantes.
Era o jogo da cultura (da vida), mas depressa me apercebi de que era um jogo viciado. O incitamento para aprender (cultura), ou fazer (produzir) cultura era desproporcionado aos desejos e às necessidades. 
A cultura como meio de atingir objetivos, aos poucos, mostrava dois gumes, e o valor da cultura, tinha uma espécie de preço, pessoal e social, como outra coisa qualquer.
Também tive a minha fase "humilde" de servir a cultura como um pedreiro constrói uma fortaleza, ou um engenheiro fabrica uma bomba, ou um médico trata um doente, ou um poeta morre de tristeza por tudo isso.
Mas a cultura é um produto/efeito do homem, produto esse que, por sua vez, produz/induz/condiciona o homem. 
Então, o problema de existir uma cultura boa e de existir uma cultura má torna-se cultural por excelência.
Afinal, é a cultura científica, tecnológica, das construções, das engenharias e das urbanizações, dos transportes e das energias, dos químicos e das fusões nucleares, das máquinas de guerra e das religiões, das organizações financeiras e industriais, do espetáculo e do desporto, da medicina e da saúde, tudo da máxima utilidade, que está a dar cabo de nós, perdão, do nosso planeta.
Que saudades do tempo em que os portugueses davam a volta ao mundo despoluído, levados pelo vento, talvez acreditando na utilidade do estrume!
Em duzentos anos a cultura mudou tudo. Acreditemos que, nos próximos, também.


sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Qual é a arbitrariedade dos factos?


O que não é arbitrário e sem justificação é, por exemplo, os limites do conhecimento. Ou, ainda, o facto (qual é a arbitrariedade dos factos?) do sofrimento, da dor, da felicidade, da crença de que o sofrimento não é, não pode ser, em vão, tal como não é, nem pode ser, em vão, que existe o universo, porque nada é em vão e, mais importante, ninguém acredita no vão. 
Podemos sempre decidir enterrar crenças e descrenças, como quem enterra mortos ou vivos, que a nossa decisão não altera nada sobre a verdade, não temos qualquer poder de interferência sobre as leis que regem o universo e uma dessas leis, suponho, é que as crenças e as descrenças não são parte delas, mas regem-se por elas. Esta ordem não é normativa. Dever ou não dever haver crenças é uma falsa questão. 
Justificar uma crença, ou tentar justificar uma crença, é o que tem feito avançar o conhecimento e é, justamente, acerca do que não se sabe. Para mim, o mais importante continua a ser, depois de tantos anos a calcorrear este esplendoroso planeta (escandalosamente ardente, ou ardido), que é um incrível cemitério, carregado de vida e de sofrimento, não aquilo que sei, mas o que não sei e o que não se sabe. 
De cada vez que alguém me apresenta um deus, as coisas mudam, e mudam de cada vez que um deus morre. 
O que me interessam, verdadeiramente, não são os significados matemáticos das coisas, por mais instrumental que seja a acústica, enquanto ramo da física. 
Basta-me a música, quando não se ouve mais nada.


domingo, 15 de outubro de 2017

O Deus das religiões e os outros


Quando se fala de Deus, seja o Deus das religiões (que é de extrema complexidade e riqueza), seja o Deus dos filósofos (que é uma espécie de incógnita de uma equação cuja consistência tem resistido a todas as tentativas de rejeição), seja o Deus (que não é Deus, mas que são os pressupostos de inteligibilidade) de quem acredita que tudo o que conhecemos procede e funciona de modos cuja explicação e compreensão vamos descobrindo, está em questão qualquer coisa que transcende os limites do conhecimento, mas não só, porque não se trata apenas da explicação das coisas, do mundo e de nós, mas essencialmente do encontro com o criador, o obreiro, a inteligência, o projeto, o quê, quem, quando, como, porquê, para quê... algo de que não prescindimos e até necessitamos para a nossa identidade, para a explicação de nós, para nos identificarmos a nós mesmos, enquanto pessoas, enquanto humanidade, que se mira a um espelho que devolve mais interrogações do que respostas e tudo isto faz sentido, sempre fez, tudo isto é racional e incontornável.
O Deus das religiões, como não podia deixar de ser, é o mais problemático de todos, porque faz parte e influencia e determina, como nenhum outro, a própria organização político-social e a cultura dos povos que o adotam.
É uma espécie de referencial e matriz valorativa de condutas e comportamentos que foi ganhando caráter de justificação e fundamento para a própria estrutura normativa das sociedades, e foi sendo plasmado em normas que, em algumas sociedades, até tiveram ou ainda têm, força jurídica.
Este Deus é, sem dúvida, muito perigoso e foi, durante muitos séculos, devastador e incontrolável. É um Deus que se coloca, ou é colocado, ao serviço de grupos, de exércitos, de ideologias, de poderes, de desumanidades...É demasiado humano.
O Deus dos outros não é menos Deus, nem menos humano e não me parece tão perigoso.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A objetividade é uma terra de ninguém


Há áreas que, na verdade, não queremos tratar com objetividade, porque a objetividade é uma terra de ninguém. O nosso amor (às causas) leva a primazia sobre tudo o mais. E a própria ciência é perigosíssima se não for por amor à verdade.
Há os que defendem aquilo em que não acreditam, porque a função deles é defender tudo o que lhes interessar (muitos políticos e advogados...E também pseudo-cientistas e pseudo-filósofos e pseudo-sacerdotes e comerciantes da banha da cobra e militares, etc...,) e há os que defendem ilusões, convencidos de que estão a defender realidades e os que não defendem nada...
Defender valores supõe uma predisposição criativa e otimista e interpelativa, não ostensiva, nem hostil, para a construção, para a comunicação e a partilha proveitosa. Isto não costuma acontecer nos negócios e no mercado dos egoísmos, nessa esgrima cínica e sádica cujo objetivo é apenas punitivo (das fraquezas, da estupidez, da inépcia, da arrogância, enfim, dos defeitos e dos défices).
A cultura da competição, qual Esparta, encontra na adrenalina e na droga o clímax do nada e do absurdo. A cultura da solidariedade e da alegria das pequenas etapas vencidas, na aprendizagem, na doença, nos trabalhos, nos dias vividos a observar as abelhas e as estrelas, está ameaçada de morte.
Do que eu tenho a certeza é que a maioria das pessoas aspira a que as deixem viver, em paz, nem querem que as ajudem, só querem que não as estorvem, que não as persigam, que não as explorem, que não se atravessem no seu caminho.
A escola é uma instituição mobilizadora, tal como uma igreja, ou um Estado, que tem de saber responder às questões do sentido, do interesse, do valor, da verdade, do presente e do futuro, mais do que do passado, sob pena de ser um instrumento de tortura.

sábado, 9 de setembro de 2017

Os independentes e os outros


Vou pronunciar-me como independente, que não concorre a nada, porque não gosta de concorrer e não quer, embora respeite e valorize quem gosta e quer e o faz de acordo com as regras e a boa fé.
De resto, também os partidos deviam ser independentes. Ser independente não é ser anti nada, é ser a favor daquilo que justifica (deve estar na base) da criação de qualquer associação política.
Unir esforços, intenções, meios, para atingir fins, só por si, não é coisa boa (pode ser péssima).
Fazê-lo como reação a agressões ou forças ameaçadoras, ou como resposta sistematizada a pretensões contrárias, pode ser legítimo, mas não quer dizer que seja bom, necessário ou tolerável.
O mais triste e preocupante sinal da democracia (e criticar a democracia não é ser contra a democracia, no sentido etimológico da palavra, muito pelo contrário, os democratas, hoje em dia, não se deixam entorpecer e revoltam-se contra a lorpice burocrática do número como fator que mais interessa aos partidos e têm de ser "antidemocráticos", por isso mesmo, e porque a democracia dos partidos (não independentes) é um simulacro cuja retórica oca já a destruiu.
Eu não nasci ontem.
Os partidos são organizações de interesses na senda da sua defesa e conquista e cultivam isso cada vez mais, como se essa fosse a sua razão de ser. Nem têm outro discurso. É medonho.
Mas não é suposto que o sejam, nem devem ser.
Eu sou partidário da independência e dos independentes e fico esperançoso que estes ganhem cada vez mais terreno e influência àqueles que promovem, defendem e logram o interesse corporativo e de grupos, à custa dos outros.
Transformar estas realidades gravíssimas num faz de conta de um jogo de sorte e azar em que pode ganhar o palhaço ou o velhaco, mas no fim ganha sempre o mesmo, é do mais cínico e desumano que tem o nosso folclore político.
É tudo uma questão de princípios, de valores de retidão e de verdadeiro sentido e prática social. Vender isto é trocar a ideia bonita e promissora de democracia por uma montanha de ouro escondido dos próprios guardiões. É vender o poder do povo. Como fatalmente (para o povo) tem sido prática.
Enquanto o povo continuar a "acreditar" no negócio a coisa funciona.
A independência, diferentemente dos interesses, é uma coisa que o nosso sistema político praticamente não pensa e não conhece, mas vamos ter de evoluir para lá, porque o que legitima um partido não são os interesses particulares e de grupos (em geral e abstrato, caso contrário, até um partido nazi estaria em pé de igualdade), mas outros, de caráter geral, humano, universal... E são muitos, são de todos, presentes e futuros, como, por exemplo, não permitir que alguém os sequestre, domine e destrua, porque sim, porque "eu quero".

sábado, 26 de agosto de 2017

O azul e o cor de rosa


É do mais aliciante que há, em matéria de estudos, perceber claramente quanto cada gesto ou característica nossa, tenhamos ou não consciência disso (creio que não temos consciência de 99,9% ou mais), é um efeito da natureza que, por acaso, e de modo irracional (porque a racionalidade não entra nestas coisas, embora apareça como um efeito delas) tem dominado e se foi acentuando, obviamente, com sucesso.

Mas mais do que isso, é aliciante estudar e perscrutar por que, a partir de algum momento, a força do ter que ser passou a ceder à força do dever ser, talvez ainda antes de ceder à do querer ser ou, sei lá, à do poder ser.
Somos levados a crer que o ter que ser (fatores físico-químicos) moldou e forjou a realidade sem intervenção de outros fatores (capazes de monitorizar e manipular aqueles). Estou a pensar no crescente papel da memória e da inteligência (emocional, lógica, lúdica, etc.), ou seja, do processo de consciência do poder de agir, não agir, quando agir, como agir, etc..
Grosso modo, e recorrendo a uma linguagem corrente, se considerarmos o destino como aquilo que nos afeta sem nada podermos fazer, porque não está nas nossas mãos, e é imenso, ainda fica uma parte considerável do que podemos fazer (não contra a natureza, porque não há nada contra a natureza) porque está nas nossas mãos.
O azul e o cor de rosa, para meninos e meninas, não foi a natureza, nem foi o ter que ser. As saias e as calças, também não. O futebol feminino e masculino pode facilmente tornar-se misto, sem prejuízo de continuar a ser de um e de outro.
O que me parece irracional é querer reforçar o que está instituído, porque sim, porque a evolução ditou diferenças que a cultura foi cultivando.
De resto, espanta-me que ainda não tenha aparecido investimento em equipas mistas, não porque acredite que as melhores atletas femininas ombreassem com os melhores masculinos, mas porque acredito, ainda assim, que as melhores femininas suplantariam um grande número dos masculinos.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Mitologias antigas


Ainda vivemos num mundo dominado por mitologias antigas e são elas que ditam as reformas "impossíveis", porque nada se reforma a si mesmo. 
Abstrações como "aluno" "professor" "perfectibilidade" "progresso" "crescimento económico"... impedem uma autêntica desmontagem e reconsideração dos problemas que precisamos de resolver e dos que queremos resolver.
Por ex., nem toda a gente está interessada na perfectibilidade da pessoa, o que que quer que isso signifique. Ou no progresso, o que quer que isso signifique. Ou no crescimento económico...
Mas toda a gente sabe que pensar custa muito, escrever não menos, ler talvez mais e que não basta pensar, escrever ou ler para resolver problemas triviais de sobrevivência.
A escola não pode ser um laboratório fora da sociedade e dos problemas reais.
Se os alunos, desde bebés, só conhecerem o espaço da escola, ou coisa parecida, não temos modo de ensinar-lhes quase nada do mundo, nem sobre os vegetais que comem, peixes ou carnes, e se saírem em passeio, não olham para lado nenhum senão para o telemóvel.
Mas se calhar é isto que interessa, preparar a humanidade do futuro, que viva em satélites, sem necessidade do contacto com a natureza (como em parte são já as grandes cidades).
Esta tendência parece estar a ser procurada e reforçada, deliberada ou por força das condições, por estruturas/dinâmicas/processos/mercados de massificação (aliás, muito realistas), que apostam no consumo mínimo, digno (?) e sustentável (?), retirando da mente aquele fantasma devastador de há muitos anos, do "american dream".
Neste aspeto, a tão criticada concentração de riqueza, ao afastar/excluir um grande número de consumidores, ironicamente, contribui para a preservação de recursos do planeta (um dos pontos críticos do nosso tempo).
Uma escola com a pretensão, por ex., de criar génios, seria uma aberração. Com a pretensão de fazer 80% dos alunos doutores em matemáticas, ou medicina, ou física, ou desporto...seria outra aberração. Todos temos a noção disto.
Mas ninguém tem a noção do que a escola pretende.
Em abstrato, sabemos que a escola pretende o ótimo, e o ótimo é tudo o que há de melhor.
E, para cada aluno, em concreto? O que o aluno pretende? Uma utopia?
Ou o ótimo é mesmo deixar que nos processos de ensino-aprendizagem professores e alunos tirem o melhor proveito do que há para aproveitar, de acordo com os seus objetivos, apostas, interesses, motivações, capacidades...?
A escola tem de estar preparada e atualizada para as solicitações do nosso tempo.
Não teria sentido que continuasse a ensinar e a preparar para funções que deixaram de existir (a não ser em cursos de conhecimento pelo conhecimento, ou de arte pela arte, que podem ter imenso interesse).