terça-feira, 25 de maio de 2010

O Velha - V



O primeiro texto que subscreveu como Alberto Caeiro levantou um problema ao professor Ruga. O Velha não compreendia onde estava o problema. Não estava a plagiar. Também não estava a usurpar a identidade de ninguém. Mas o professor não aceitou que ele se fizesse passar por um autor consagrado. Como é que alguém ousava atribuir os seus escritos a uma celebridade das letras?
Para o Velha não havia problema, porque as coisas não eram assim. Ele não atribuía a autoria dos seus escritos ao Alberto Caeiro que, aliás, nunca escreveu nada. Ele atribuía a autoria dos seus escritos a si próprio, verdadeiro Alberto Caeiro. De carne e osso, com larga experiência de pastoreio.
Cão tomara partido pelo Velha e dizia de cor os seguintes versos do poema “Observo”:
               A terra treme a água salta o vento arranca
               A bata branca
               A rã enxuta
               A bruxa manca
               A puta ama a ama puta.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O Velha - IV

                                                                                                                                                                       
Nem ele próprio sabe quando é que percebeu a origem da alcunha o Velha. Mas foi em casa que, carinhosamente, começaram a tratá-lo assim. Nas próprias palavras, quando nasceu, já tinha aspecto de velha. À medida que foi crescendo, esse aspecto acentuou-se e, como ele não dava por outro nome, porque nunca o baptizaram e não saberia dizer outro nome por que fosse tratado ou conhecido, um colega da escola para adultos, zarolho e corcunda, identificava-o por Velha. E Velha continuou. O zarolho era a sua companhia preferida que o tratava assim, não por despeito, mas por genuína simpatia.
Por sua vez, tratava as pessoas por alcunhas que lhes atribuía por associá-las a animais, a coisas e a outras pessoas. Ao corcunda, que se tornou seu amigo, chamava Cão, honrando-o assim com a associação ao notável navegador português que explorou o rio Congo. Apesar de ser zarolho, nunca lhe ocorreu cognominá-lo de Camões. O Cão, como ele lhe chamava, não tinha nada que o pudesse associar ao grande vate, a não ser a deficiência ocular. A associação pelo mais, não pelo menos, anuiu o Velha consigo próprio.
Ao Antunes, um colega sisudo e pouco sociável, que ficava no fundo da sala de aula e se torturava ao computador, com jogos de justas medievais, enquanto fingia trabalhar nas fichas que o professor distribuía, o Velha chamava Lobo Sem Alcateia.
A sua descoberta gloriosa, no entanto, veio a ser que o Alberto Caeiro era ele e que Fernando Pessoa era um dos seus heterónimos.
Foi o começo de uma nova era.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Velha - III

                                                                                                                                                                Até ao dia em que foi à cidade, só tinha convivido com dez pessoas entre família e vizinhos. Habituara-se a falar e a cantarolar sozinho, para os animais, para as plantas e para as coisas. Lembrava-se de quando se mirou no espelho da água do rio pela primeira vez. Teve a sensação nítida de que se tratava de outra pessoa e, mesmo sozinho, sentia-se como se estivesse acompanhado por uma espécie de sombra.
Na cidade, tudo era intensamente novidade. Os seus olhos e o seu cérebro não tinham memória de nada do que viam. Anos mais tarde ainda estaria refém da memória desse encontro fabuloso com a cidade, dessa experiência tão marcante. Via as pessoas a entrar e a sair das casas e das lojas e imitava-as. Sorria para elas como se as conhecesse e achava graça às expressões delas. Entrou num café e não sabia o que fazer nem o que pedir. Era de tal modo o centro das atenções que sentiu algo parecido com felicidade, sentimento que ele praticamente nunca havia experimentado. Em nenhum rosto viu sinais de hostilidade ou desdém. E quando se riam dele, então é que ele gostava. E ria também. Com dificuldade, porque não tinha rido mais de duas vezes na vida. Uma, quando ouviu pela primeira vez a rádio. Outra, quando um missionário passou pela aldeia e o ensinou a fazer o sinal da cruz.                                                                                                                           
                                                                                                                                                                                                                                  

sábado, 1 de maio de 2010

O Velha - II


Um dia teve uma ideia que o fez saltar. Deu um grito e as ovelhas pararam de mastigar. Se estivesse numa grande cidade teria um rebanho imenso de transístores.  Quando teve de ir ao médico, ao passar à porta dos estabelecimentos comerciais, que tinham, quase todos, um rádio a tocar, ficou encantado.  Achou tanta graça à cidade que perdeu o gosto de viver no monte. Assim que saiu do consultório com o diagnóstico de desnutrição crónica, em vez de ir comer, que já o não fazia há mais de cinco horas, deixou-se  perder pelas ruas da cidade de Pérolas Falsas enquanto pensava que todas as pérolas são falsas. 


segunda-feira, 26 de abril de 2010

O Velha - I

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
O Velha apresentava-se sempre como Alberto Caeiro e dizia ser pastor de transístores. 

Para muitas pessoas isso correspondia ao anúncio de uma seita esotérica, religiosa ou política. Mas não era. 
O Velha não era pastor de uma seita, era mesmo pastor de rebanhos de ovelhas e de cabras. 
Com o tempo, foi-se tornando também pastor de transístores e, pouco a pouco, declarava-se a si próprio como pastor de transístores que deixara de ser pastor de gado. 
Na infância, foi pastor de gado. Nunca pertenceu a uma tribo. Aprendeu a viver sozinho e a lidar sozinho com os seus medos. Mais tarde, frequentou a escola para adultos e descobriu que era Alberto Caeiro e que tinha mais que um heterónimo, sendo um deles Fernando Pessoa. 
Mas a maior descoberta da sua vida foi o transístor. 
Desde o dia em que o descobriu que passou a fazer-se acompanhar dele para os montes com os rebanhos. Assim que pôde comprou mais alguns e levava-os todos para os sintonizar em estações diferentes. 
Enquanto as ovelhas pasciam, colocava os transístores em posições estratégicas no solo e ouvia de tudo em simultâneo. 
Se mais estações de rádio houvesse mais transístores teria comprado.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Escuto as dores do mar




É nessas dores que se banha a lua
Nem todas as janelas já estão fechadas
As dores do mar
O balançar das árvores ao alto

É nessas cores que a torda da alegria
Perde peso
E a alma de magreza voa
Do mar
A olímpica fantasia
Que atordoa
Quem poderá domar?


quinta-feira, 1 de abril de 2010

O pregador e o propagandista

                                                                                                                                                                        
Está sol num grande largo povoado de sombras um pregador sob uma árvore adverte em nome do bem como um sol que faz desaparecer sombras no canto de lá um propagandista reclama liberdade como um sol que faz sombras.