terça-feira, 17 de setembro de 2013

Privatizar o Estado? - democracia tetraplégica



O desgoverno de Portugal não espanta, nem o mais analfabeto dos portugueses. Em Portugal, as políticas, em geral, são expressão de uma vontade ficcionada a partir do facto de uma legitimidade democrática que justifica o poder, sem necessidade de outras razões, como por exemplo, documentar e fundamentar exaustivamente as políticas. Em Portugal, a prática corrente é mais do tipo "se este modelo do país X lhes serve também há-de servir a nós, não percam tempo com isso, apliquem isso". Depois, bem, depois se verá. Ajusta-se isto, ajusta-se aquilo e, ao fim de dez, talvez quinze anos, teremos uma coisa como deve ser. É como se as nossas elites políticas soubessem desde sempre que não é preciso escola, nem ciência, nem investigação, porque...tudo isso existe. «Existem respostas e soluções para tudo», diria um líder político, «basta ver o que outros países têm feito e copiar o trabalho deles». Os nossos políticos nunca fazem afirmações ou propostas devidamente acompanhadas de fundamentação sólida, porque não têm o hábito de pensar que as políticas podem e devem ser fundamentadas com as melhores razões. Deter o poder não é e não devia ser a única, nem sequer uma boa razão, nesta democracia tetraplégica.
Falar de privatização do ensino, por exemplo, requer que, antes de mais, se defina claramente, não o que é privatização em geral e abstracto, mas o que seria privatização do ensino. Privatizar é um verbo como outro qualquer, mas privatizar uma empresa é algo mais complexo do que simplesmente privatizar. A ideia de privatização, como a sua 'antagónica' de coletivização, ou nacionalização, ou expropriação, não têm nada de mal ou de inconveniente, de certo ou errado, de mau ou de bom, de vantajoso ou desvantajoso. Só se encararmos as coisas (e os conceitos) sem preconceitos é que poderemos fazer a avaliação necessária do que está em causa e em jogo, para, de seguida, tentarmos escolher uma política, linha de acção, alternativa entre outras... e dizer porquê, na esperança de que a nossa análise e as nossas razões sejam entendidas pelos outros e resistam suficientemente à contra-argumentação dos vários quadrantes.
Se me convencessem, com boas razões, de que privatizar o Ensino, ou a Justiça, ou a Ordem pública, ou a saúde, do mesmo modo que as fábricas de salsichas e de aros de bicicleta são privadas, traziam, não apenas o mesmo nível/valor de satisfação das necessidades, mas um valor acrescido, eu pensaria ainda em muitas questões tão importantes ou mais do que essas. Privatizar, aparentemente, seria fácil. A questão dos custos para o Estado é uma questão cuja resposta devia haver alguém capaz de dar, mas não há. Não é uma qualquer resposta. Mas se a privatização do ensino ou dos outros sectores públicos, feitos os estudos e as contas (e obtidas as garantias adequadas de que assim iria ser) resolvia todos os problemas que é preciso resolver e não trazia outros, ainda que menores, que mal veríamos nessa privatização?
Se os problemas fossem meramente de custos financeiros... Pegar nos problemas do Ensino, Justiça, Saúde, Ordem e segurança públicas pelo lado dos custos financeiros é a pior forma de tentar perguntar por que é que o Estado é preciso.
Chamo a atenção para a diferença (importante) entre 'ensino privatizado' e ensino privado.
O ensino privado sempre existiu e não é proibido. Cada um, ou em associação, sociedade, etc., pode conceber um sistema de ensino ao seu gosto e tentar operacionalizá-lo. Até os partidos políticos podem criar escolas para ensinarem as ideologias ou o que lhes aprouver. E os alunos, que tenham dinheiro e condições para isso, podem sempre procurar aprendizagens e sistemas de ensino ao seu gosto/interesses, nas artes, desportos, ciências, indústrias, etc...

sábado, 8 de junho de 2013

Liberdade a quem a não tem



Tornaram a palavra liberdade tão sacrossanta, tão sacrossanta, que é tão ou mais importante para quem a tem, como para quem a não tem. 
A liberdade sempre existiu e sempre inexistiu. Em todos os regimes políticos. 

O mal da liberdade é quando uns a "ab"usam contra os outros. A liberdade de uns é a sujeição e a opressão dos outros. Quanto maior for a liberdade de uns maior é a sujeição e a opressão dos outros. 

Conquistar a liberdade, a partir de certo ponto, pode ser impossível mas, para quem goza de liberdade, esta deixa de ser uma conquista para passar a ser uma mera consequência. A liberdade é o que tem permitido a uns escravizar os outros. Mas não é por esta razão, certamente, que a liberdade é boa e que devemos lutar por ela. 

Parece-me que os problemas levantados pela liberdade, em grande medida, ainda estão por resolver e a ciência, embora não seja bom que seja instrumento de vontades e de poderes que não respeitem o direito à liberdade de quem a não tem, não tem maneira de escapar a isso.


sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Ter ou não ter razão


As ciências e o método científico têm sido extraordinários meios de resolução de problemas e de resposta a imensas questões. Mas as questões da importância, ou da relevância, ou da validade, ou da verdade, ou da razão, seja do que for, das ciências (da lógica, da ética, da matemática, jurídicas, políticas, físicas, etc...) são questões "viciadas" porque, em vez de autênticas questões, são uma espécie de postulados valorativos, se me exprimo bem. Ou seja, se me disserem que a física ou a química ou a lógica ou a ética são importantes, ou relevantes, isso é como dizerem que a astrologia e a religião e o futebol e a pirotecnia são importantes ou relevantes. A questão da validade, tão cara à lógica, pode ser uma completa inutilidade, uma sucessão de abstrações sem nenhuma relação com a realidade e que não acrescenta um chavo ao meu conhecimento dos astros. A questão da verdade, por sua vez, seja enquanto juízo, seja enquanto informação ou compreensão de fenómenos, também pode ser completamente inócua. Até podemos estar de posse da verdade, tê-la na ponta da língua e não sabermos ou não acreditarmos nela, ou isso de nada nos valer. O ter ou não ter razão também é indiferente numa perspetiva de questões não viciadas por valorações. No mesmo cemitério poder-se-iam encontrar lápides onde se inscrevesse, numa, «aqui jaz um homem cansado de ter razão» noutra, «aqui jaz um homem cansado de ter tudo» ou, «aqui jaz um homem cansado de nada ter».

Num plano prático, de utilidade, instrumental, de engenharias e de técnicas de resolução de problemas, tudo tem o seu valor e a sua importância relativa, de mercado, de regulação social, etc..
Num plano, digamos metafísico, religioso, moral, das fundamentações últimas, tudo muda de figura.
Por outro lado, as ciências, insubstituíveis e poderosas na resolução de problemas, como por exemplo, construir ou destruir pontes, não nos fornecem critérios, nem nos esclarecem sobre o bem e o mal, o justo e o injusto... 
Ser contra a ditadura das ciências é uma falsa questão, porque não há nenhuma ditadura científica. São realidades diferentes. A ditadura é da ordem da vontade e da organização político-social e militar. A ciência é da ordem do conhecimento. 
E não há consenso sobre o que "deve ser" considerado conhecimento. É sabido que um homem "não se mede pelos seus conhecimentos". As pessoas humanas não o são mais ou menos, nem têm mais ou menos mérito ou valor moral, por terem mais ou menos conhecimentos. E não há conhecimentos que o sejam mais ou melhores do que outros. Pela lógica, não haveria conhecimentos contrários entre si. Na prática, a experiência diz-nos que sempre assim foi. Os conhecimentos dão poder e vantagem e há conhecimentos que conferem mais vantagens (de ordem económica e material e política) do que outros a quem os possui. No entanto, os indivíduos, os grupos, os próprios estados não se coibem de, muitas vezes, agirem contra a razão (qual?), contra a justiça (qual?), contra as pessoas, a humanidade, utilizando todos os conhecimentos e todos os saberes, desde a música, passando pela religião e as matemáticas... Disto nenhuma ciência ainda nos livrou.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O ser das coisas, o dever-ser, o poder-ser e o querermos que sejam




Em matéria de política, ciência, moral, religião, filosofia, direito, os problemas são muitas vezes transversais e não ajuda nada a metodologia de os isolar por disciplina. 

Por exemplo, ainda a ciência está a braços com o problema da realidade natural e já não faltam cientistas interessados em dizer como as coisas devem ser, ou seja, ainda não resolveram o problema do ser e já pretendem ter resolvido o do dever-ser. Mas isto é compreensível. Toda a gente se acha autorizada a pronunciar-se sobre como as coisas devem ser, porque e enquanto não se sabe o que as coisas são. Por outro lado, o saber-se o que as coisas são e como são não resolve o problema de como devem ou deviam ser. O problema que apoquenta é sobretudo este e não aquele. A realidade, a maior parte da vezes, ou não nos agrada ou , simplesmente, não nos interessa. Se nos agradasse ou simplesmente nos conformássemos com a realidade, nada teríamos a opor, por exemplo, à doença e às nossas incapacidades. 
Nós queremos que as coisas não sejam, simplesmente, como são. Por exemplo, se pudéssemos decidir sobre o modo como o mundo e a vida funcionam, quantos de nós achariam bem o sofrimento, a doença, a morte?... E a ciência está implicada nesta dinâmica. É acção, instrumentalização, tanto ou mais, do que descrição ou investigação.  É manipulação e "aproveitamento". A ciência funciona com objetivos e finalidades que não são simplesmente de conhecimento. Há um domínio que se exerce crescentemente com a noção de que esse domínio é possível, de que é possível levar a água ao moinho. As coisas, afinal, até podem ser como nós queremos que sejam.

O dever ser da moral não coincide necessariamente e pode até conflituar com o dever ser da religião e do direito e da ciência. O dever-ser, em qualquer caso, depara-se com o querer-que-seja.


De qualquer modo, nenhuma ciência e nenhum dever ser impede que, por nossa vontade, capricho, veleidade, ignorância, maldade, ódio, etc., desejemos ou queiramos outra coisa.

E é sabido que há quem prefira o vício à virtude, a morte à vida, a mentira à verdade, a injustiça à justiça, a destruição à construção. 
Quanto a isto, a ciência não resolve nada, porque tanto serve uns como outros. Tanto serve os bons como os maus, os ditadores como os verdadeiros democratas, os torcionários sanguinários como os benfeitores humanitários...


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

No jogo, na guerra, no mercado


No jogo, na guerra, na política, na economia, nos universos financeiros, no mercado, o interesse submete tudo, ou quase tudo, e até as alianças e os aliados dependem e obedecem em função de alguma estratégia, ou plano. Convenço-me de que não há alianças nem aliados sem razões de ordem estratégica. É "vital" saber exatamente quem são (ou devem ser tidos como tais) os adversários e quem são (ou devem ser tratados como tais) os aliados. Torna-se tanto mais necessário prever e antecipar as decisões e a conduta de uns e de outros, quanto mais vantagem se quiser extrair da possibilidade de as contrariar e de as frustrar. O interesse em manipular, por exemplo, o mercado bolsista, é de tal ordem que é imperioso tentar manipular os manipuladores e os que tentam manipular estes e assim sucessivamente. A perversão faz de tal modo parte da "realidade" humana, que me parece impossível, não só, conceber aquela sem esta, como também, esta sem aquela. E interrogo-me se não é normalmente assumido que, quem é perverso para combater a perversão, tem cem anos de perdão.Eu preferia que as coisas não fossem assim e não acredito que tenham de ser como são.



quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O saber sempre me fascinou III


Perguntam-me pela 
realidade das aparências e eu pergunto pela aparência da realidade. 
Penso que não temos acesso à realidade, mas apenas às aparências e, não raro, ou sempre, as aparências são a realidade, estranha é certo, mas a única que temos. Não me refiro apenas à realidade do que pensamos ou sentimos (o que é o sentimento de justiça, por exemplo? O que é uma mulher sexy, por exemplo? Ou uma boa acção?), refiro-me também à realidade das coisas físicas. Realço que coisa (res) e realidade são termos equivalentes.




segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A (in)Segurança social


Sem enveredar pela teorização (económica, jurídica, social) dos problemas da Segurança Social e dos cortes nas pensões, uma vez que, em teoria, tudo é defensável (embora nem tudo mereça ser defendido), parece que há um "fracasso" do sistema que é também um "fracasso" do sistema normativo se as obrigações (mais do que as expectativas) legal, institucional e contratualmente assumidas deixarem de o ser para ambos os lados e passarem a ser suportadas unilateralmente, por força do princípio da prevalência da "razão" do fracasso do poder. A tentativa de justificar esse fracasso pode ter consequências ainda mais indesejáveis e perigosas para os ordenamentos sociais presentes e futuros, porque tenderá a ser uma justificação para que qualquer pessoa, privada dos seus direitos, adquiridos ou por adquirir, deixe de cumprir (e não deva ser obrigada a cumprir) as suas obrigações. E será muito difícil fazer com que alguém, de livre vontade, entre ou permaneça num sistema desses, sem credibilidade. A noção de falibilidade que todos temos das coisas, ao adquirir tais proporções, não deixa margens para confianças em soluções que, não podendo ser propostas e sendo da esfera da imposição, não se propõem sequer satisfazer condições de direito, imprescindíveis à justiça, à solidariedade e à paz social.